segunda-feira, 24 de março de 2008

Carvalhal: mais do que a soma das individualidades

Como andam aí papagaios a dizer coisas que não são verdade, é tempo de falar delas, com a atenção que merecem. É opinião algo generalizada que Carlos Carvalhal, actual treinador do Vitória de Setúbal, é um treinador defensivo e que a sua equipa pratica um futebol assente na defesa, feio e de aproveitamento dos erros do adversário. Isto não é verdade.

Já foi tema de um texto neste espaço algo semelhante. Na altura, defendi que Mourinho era tudo menos um treinador defensivo, coisa que, obviamente, ainda mantenho. Com Carlos Carvalhal passa-se actualmente o mesmo. Quem não percebe muito de futebol, tende a achar que treinadores como estes dois são treinadores defensivos. Obviamente, estão equivocados. Os dois têm filosofias de jogo muito parecidas, o que não é novidade, pelo que quem ache que um é defensivo tem tendência a achar que o outro também o é. Estão enganados em relação aos dois.

O futebol do Setúbal é, provavelmente, o futebol mais correcto da Primeira Liga, talvez a par do futebol do Porto. Paulo Bento teve oportunidade de dizê-lo: o Setúbal é a equipa da liga que melhor faz as transições ofensivas. Concordo inteiramente com isto. Mas, assim sendo, como compatibilizar uma equipa supostamente defensiva com uma equipa que faz boas transições ofensivas? Uma destas coisas não pode ser verdade. A não ser que essas transições ofensivas, embora boas, sejam esporádicas, o que não correcto. Acontece, isso sim, que o Setúbal é uma equipa bastante completa. Defende muitíssimo bem, com uma organização estupenda, em bloco, com os jogadores muito juntos, utilizando uma pressão baixa, mas agressiva. Esta forma de defender privilegia a ocupação de espaços recuados, o encurtamento entre linhas e dá a iniciativa de jogo, até certo ponto do terreno, ao adversário. Em vez de começar a pressionar logo no meio-campo, o que concederia alguns espaços entre linhas, o Vitória encolhe-se estrategicamente e só ataca o portador da bola mais atrás. Isto faz com que haja pouco espaço e que o futebol do adversário, se não for dinâmico e envolvente, tenha pouco sucesso.

É verdade que há mais equipas que assentam o seu sistema defensivo num bloco baixo, mas poucas aquelas que conseguem executar o tipo de pressão que o Setúbal executa, a toda a largura do terreno e com uma concentração de jogadores extraordinária. Esse é o grande segredo da consistência defensiva dos sadinos. Agora, se o Setúbal fosse só isto, uma equipa que defende bem, talvez conseguisse alguns empates e, com sorte, ganhasse alguns jogos às custas da inspiração dos avançados. A verdade é que isto não é bem assim. Saíram alguns jogadores nucleares e a equipa, enquanto equipa, continuou a ser eficaz, o que prova que o sucesso ofensivo não estava directamente relacionado com a perícia dos elementos ofensivos. O Setúbal de Carvalhal, além de defender bem, ataca bem. Quando em posse de bola, a equipa não a esbanja desleixadamente. Se o adversário puder ser apanhado em contrapé, o ataque é lançado rapidamente, mas sempre com transições seguras, com passes rasteiros, ponderados, de pé para pé. Mesmo quando a equipa utiliza um futebol mais directo, a bola raramente é lançada para jogadores com poucas possibilidades de a conservarem. Os passes verticais são do melhor que há neste campeonato, normalmente à procura de Pitbull, que depois segura, espera pelo avanço dos companheiros e orienta o ataque. Quando o adversário está melhor posicionado, o Setúbal opta por sair a jogar calmamente, procurando sempre o meio-campo: a bola do lateral raramente percorre a linha; o passe é sempre à procura do médio. O futebol apoiado do Vitória, nas primeiras fases de construção, é de uma precisão espantosa. Depois, raramente a bola sai do médio para as alas; a transição típica é o passe rasteiro vertical, o que possibilita uma subida gradual da equipa. Além disso, sem bola, toda a equipa trabalha muitíssimo bem e há, normalmente, bastantes linhas de passe.

Em termos ofensivos, este é, basicamente, o segredo da equipa: futebol seguro, rápido quando pode sê-lo, mas sempre consciente da importância da posse de bola. A equipa sobe sempre em bloco, provocando poucas rupturas entre linhas, e a movimentação sem bola de todos os elementos é excelente. Além disso, é notável a capacidade que a equipa tem para dar apoios: o jogador que recebe a bola raramente o faz sem ter uma solução de passe imediatamente garantida. Aliás, o jogo em apoios do Setúbal não tem mesmo paralelo em Portugal. E é precisamente este jogo apoiado, este subir e descer em conjunto, como se os jogadores estivessem amarrados, que faz a força da equipa. Defendem bem e atacam bem porque raramente fazem os dois processos isoladamente; defendem e atacam em equipa, como poucos o fazem, com cada jogador a apoiar outro, com e sem bola.

Para quem diz que o Setúbal joga um futebol feio, conte-se os passes falhados, os pontapés sem nexo que a equipa dá. Para os que acham que a equipa só defende, conte-se a posse de bola que conseguem, em cada jogo. Carlos Carvalhal disse, depois de ter ganho ao Sporting após ter perdido Edinho e Matheus, que ficava provado que "uma equipa não é apenas o somatório das individualidades". Para muita gente, isto é uma tautologia e nem sequer se terão preocupado em entender correctamente o significado destas palavras. Mas a verdade é que o Vitória de Carvalhal ilustra isto melhor que qualquer outra equipa neste campeonato. Não estou a falar de vontade, de garra, de motivação, de coragem, de espírito de grupo. Estou a falar de táctica. Há equipas (90% delas) cuja valência se poderia obter somando a valência de cada jogador. Não é o caso deste Setúbal. Com um plantel modesto, a equipa já ganhou uma taça da Liga, está nas meias-finais da Taça de Portugal e reparte o quarto lugar do campeonato com o Sporting. Coincidência? Boa época que não mais se voltará a repetir? Claro que não. A excelente temporada do Vitória é fruto do futebol colectivo da equipa. Muito mais que um extremo de qualidade, quem joga a extremo é toda a equipa; mais do que uma dupla de centrais experiente, quem defende é toda a equipa. Cada processo de jogo é obtido dividindo o esforço por cada jogador. Não há uma bola que se dispute que a equipa não o faça em conjunto. Os jogadores estão sempre perto uns dos outros, sempre preparados para dobrar o companheiro ou para lhe dar uma linha de passe quando ele tiver a bola. Esta coesão, este sentido colectivo, muito mais significativo que a soma de todas as individualidades, é que é a verdadeira valência da equipa. Nenhum jogador está entregue a si próprio, quando tem a bola, ou quando não a tem. Nenhum jogador tem uma função em campo; tudo o que um simples jogador tem para fazer é feito em conjunto. Para bom entendedor, isto basta.

11 comentários:

filipe disse...

"Jogar à defesa" era no tempo em que o futebol se lia nos jornais e ouvia na rádio.
Qualquer estratégia para chegar à vitória é, em meu entender, legítima e o futebol apenas ganha quando todos fazem o melhor para ganhar e não para, como às vezes se lê e ouve, "dar espectáculo".

Uma coisa que não concordo no que escreveste: não há qualquer contradição em dar a iniciativa ao adversário, jogando com um bloco baixo (é a isto que as pessoas normalmente chamam ser "defensivo") e dizer-se que a equipa é forte nas suas transições ofensivas. É, até, a forma mais comum de se ser forte em transição, potenciando ao máximo o espaço livre para atacar.

Sobre o Setúbal, não é defensivo de facto é, isso sim, organizado quer na forma como defende, quer na forma como sai em transição. Duas notas: primeiro frente ao Sporting o Setúbal foi uma equipa que jogou no erro do Sporting, arriscando muito pouco em tudo o que fosse fora desta estratégia. Não critico minimamente, porque, como disse, cada um é livre de definir a melhor estratégia para chegar à Vitória, mas é um facto tão evidente como o próprio Sporting ter revelado receio de arriscar mais no jogo, conduzindo à escassez de remates a que se assistiu. Finalmente, a estratégia do "bloco baixo" de Carvalhal foi preparada pelas características do Setúbal (apontado como candidato à descida no inicio do ano). Por exemplo, em Braga, a estratégia era bem diferente. O mesmo se pode dizer do primeiro ano de Mourinho no Porto e o último no Chelsea. Ou seja, são opções que têm a ver com as equipas e não com filosofias dos treinadores (nem sempre é assim, mas no caso destes dois é...).

Anónimo disse...

Tenho uma opinião diferente da tua. Eu chamo futebol defensivo a um futebol onde a base para chegar à vitória é a defesa!

O mourinho quando chegou ao chelsea venceu jogos e jogos por 1-0. Ele disse que o objectivo era fortalecer mentalmente a equipa para saberem que bastava marcar 1 golo e o jogo estava ganho porque não sofriam! Ora isto é basear um futebol na defesa!
Quando ele diz que quando um jogo acaba 4-4 não é um grande jogo mas sim que as defesas estiveram muito mal, e que se num treino num 3 para 3 estivesse esse resultado mandava os jogadores para o balneáreo por estarem desconcentrados é claramente dar primazia à defesa e não ao ataque!

Não creio que por uma equipa fazer muito bem os processos ofensivos não assente o seu jogo no momento defensivo. Até porque, convenhamos, quantos jogos ganhou o chelsea de bola parada, deixando o resto do jogo para ocupação de espaços e gestão?! Quantos jogos ganhou o chelsea com muita sorte? Sorte, leia-se, no ataque porque na defesa a equipa estava sempre impecavelmente estruturada.

Jogar em bloco e dar iniciativa de jogo não é necessariamente futebol defensivo como as pessoas apelidam. O inter fá-lo e no entanto não é uma equipa defensiva. O inter apesar de ter o momento defensivo e a ocupação de espaços bem trabalhados assenta o seu jogo no ataque! Ganha a maioria dos jogos porque o seu ataque destroi a defesa adversária e não porque a sua defesa é instranponível.

O que tu disses-te está correcto mas simplesmente temos conceitos diferentes de defensivo.

cumprimentos

Anónimo disse...

Pedrinho tanto texto e nem uma ideia de jeito, é obra!!

Gonçalo disse...

Pedro, o chelsea detinha (quase) sempre maior posse de bola que os adversários. Uma equipa que seja defensiva, que se preocupe em dar a iniciativa do jogo ao adversário, irá (quase) sempre ter menos posse de bola que o seu adversário. Penso que misturas organização com atitude defensiva.

filipe, muitas equipas que jogam em bloco baixo não tem transições com qualidade, mas sim transições simples. Porque são as mais fáceis de executar; daí um gd número de treinadores optar por este modelo. É mais por defeito do que por compreenderem bem este tipo de transições. Mas não são muitas as equipas que tenham transições com tanta qualidade como o setubal, seja num bloco baixo, médio, ou alto.

Anónimo disse...

Gonçalo, eu não disse que o chelsea dava iniciativa de jogo ao adversário e também afirmei que tal facto (dar iniciativa de jogo ao adversário) nem sempre implica uma atitude defensiva!

Eu disse que o chelsea era defensivo (na minha interpretação de defensivo) pelas razões que disse mas não me viste a mencionar dar iniciativa de jogo ao adversário. Disse que o chelsea geria e ocupava bem os espaços. Gerir COM BOLA daí ter muita posse de bola evidentemente.

E tal como referi, dar iniciativa de jogo ao adversário não implica necessariamente que a equipa seja defensiva tal como expliquei.

cumprientos

Gonçalo disse...

ok, são interpretações diferentes de defensivo.

TAG disse...

ha quem diga até que o setubal anda assim porque o Mourinho está a morar la na cidade... hehe rumores á parte o que é certo é que o estilo e mentalidade tactica do setubal são bastante similares ao de José Mourinho

filipe disse...

Não disse - nem o poderia dizer - que as equipas que optam por um bloco baixo são forçosamente boas em transição. O que disse foi que não há contradição entre jogar-se com um bloco baixo e ser-se bom em transição.
De resto concordo, como já o havia feito, que o Setúbal tem uma transição eficaz e organizada. Já agora, sobre transições ofensivas, há que referênciar, em Portugal, o Porto. Notável a forma como Jesualdo as prepara, não havendo neste caso, qualquer recurso a um bloco baixo. É algo que já vem do Braga e que, na altura, rendia muitos golos ao Wender...

Nuno disse...

Filipe, o que eu disse que era uma contradição era uma equipa que só defende fazer boas transições ofensivas. Fazer boas transições ofensivas já é atacar. Depois, pode defender da maneira que quiser. Mas se só defender, não pode fazer boas transições ofensivas.

"Qualquer estratégia para chegar à vitória é, em meu entender, legítima e o futebol apenas ganha quando todos fazem o melhor para ganhar e não para, como às vezes se lê e ouve, "dar espectáculo"."

Sim, concordo que qualquer estratégia é válida. Desde que haja ambição em chegar à vitória. Não considero uma estratégia para chegar à vitória o acto de apenas defender, esperando que a sorte, uma bola parada, a inspiração do único avançado, façam o resto. As estratégias podem ser mais ou menos defensivas, mas tem de haver uma forma lógica e concreto de se ambicionar a vitória. E defender apenas não contempla essa ambição. Porquê? Porque depende sempre da atitude do adversário e dos riscos que correr. Se também só jogar à defesa, retira grande parte das hipóteses de a equipa que só defende em ganhar.

"frente ao Sporting o Setúbal foi uma equipa que jogou no erro do Sporting, arriscando muito pouco em tudo o que fosse fora desta estratégia."

Foi, em parte. Acho que a estratégia era esperar pelo Sporting e jogar no erro, sim. Isto porque não era mau ir para penáltis e porque era uma final e o empate não era um mau resultado. Mas também acho que não houve o discernimento habitual nos jogadores. A equipa acusou algum receio e nervosismo e, penso, essa terá sido a principal razão para não terem feito as boas transições ofensivas que costumam fazer.

"a estratégia do "bloco baixo" de Carvalhal foi preparada pelas características do Setúbal (apontado como candidato à descida no inicio do ano). Por exemplo, em Braga, a estratégia era bem diferente. O mesmo se pode dizer do primeiro ano de Mourinho no Porto e o último no Chelsea."

Sim, terá tido a ver com o plantel. No Braga e no Belenenses não foi bem assim. Mas em termos de organização defensiva, foi o mesmo. O que mudou foi a zona de pressão, que passou a ser mais baixa. Mas a qualidade das transições e o jogo em apoios é parecido. Isto tem necessariamente a ver com o plantel, claro. Quanto ao Mourinho, não acho que tenha sido tanto assim. No Porto, a pressão era altíssima, tal como no primeiro ano no Chelsea. Só a partir do segundo ano é que passou a defender num pressing médio, coisa que, creio, teve a ver com vários factores: primeiro, para não desgastar tanto os jogadores e poder ter níveis de frescura aceitáveis no final da época; segundo porque o Chelsea, tirando o primeiro ano, teve muitas lesões, o que condicionou a equipa; terceiro, para a própria equipa saber defender de diferentes formas. Mas o pressing do Chelsea nunca foi um pressing baixo, isto é, baixo como o do Setúbal, por exemplo. Acho que o Mourinho queria preparar a equipa para competições a eliminar, nas quais o pressing médio-baixo e muito útil. Veja-se o Liverpool.

Quanto ao Porto e ao Jesualdo, sim, concordo que é a equipa cujas transições estão melhor mecanizadas. Já no Braga o era, embora sejam muito simples. O problema das transições do Porto é que são sempre iguais e simples. Uma equipa em bloco baixo tem algumas facilidades em anular este tipo de transições. Mas sim, no nosso campeonato, Setúbal e Porto são os melhores. O Sporting, a espaços, teve coisas boas, como os movimentos laterais de Romagnoli, a criar superioridade nos flancos, com triangulações com o lateral e o interior.

pedro silva, acho, de facto, que estás a confundir atitude com organização. Uma equipa pode estar organizada defensivamente, como as do Mourinho, mas não ter uma atitude defensiva. O Mourinho não é um treinador defensivo, embora seja dos que melhor sabe pôr a equipa a defender.

"O mourinho quando chegou ao chelsea venceu jogos e jogos por 1-0. Ele disse que o objectivo era fortalecer mentalmente a equipa para saberem que bastava marcar 1 golo e o jogo estava ganho porque não sofriam! Ora isto é basear um futebol na defesa!"

Não. Isto é basear o futebol num todo. Precisa tanto de uma equipa que defenda bem, como de uma equipa que ataque bem, para depois poder defender.

"Quando ele diz que quando um jogo acaba 4-4 não é um grande jogo mas sim que as defesas estiveram muito mal, e que se num treino num 3 para 3 estivesse esse resultado mandava os jogadores para o balneáreo por estarem desconcentrados é claramente dar primazia à defesa e não ao ataque!"

Também acho que um 4-4 raramente é um bom jogo, porque, a não ser com equipas com processos ofensivos geniais, revela que as defesas não estiveram bem. Agora, isto de mandar os jogadores para o balneário não é necessariamente dar primazia à defesa. É reforçar a ideia de que para atacar bem, para jogar bem, é preciso defender bem. É dizer que de nada vale atacar bem se não houver qualidade para defender esse bom ataque.

O Mourinho defende isto:

"Para mim, a beleza no futebol passa sobretudo por ter o controlo do jogo através da posse de bola, dos ritmos de jogo, trocas de passe e os jogadores criativos terem preponderância dentro do colectivo."

Não creio que isto seja uma atitude defensiva, pedro. Agora, em termos defensivos, porque para atacar bem, há que defender bem, ele pretende concentração absoluta e organização.

Bad-Religion, se há treinador que tem uma filosofia parecida com o Mourinho, é o Carvalhal. Não espanta que as equipas deles tenham uma forma de estar tão parecida, salvas as devidas proporções.

Pedro disse...

É dificil ter uma táctica defensiva qd se tem a posse de bola e joga-se sempre no meio campo adversário.

Era isto q o Chelsea nos dois primeiros ano de Mourinho fazia.

Mister Fred disse...

Concordo Pedro.
Sobre o Vitória de Setúbal, subscrevo, tudo que foi dito, pois penso que é das melhores equipas do campeonato, a nível táctico.
Penso, que toda a gestão desportiva, para esta época foi também boa.
Aliás, escrevi um artigo sobre isso no meu blog, acho que seria interessante passarem por lá, e procurarem esse artigo, já que os assuntos coincidem.
Cumprimentos,