De um deles, disse há pouco mais de um ano que era o meu maior ídolo na actualidade e que seria um prazer poder vê-lo em Portugal, mas que temia que o seu futebol não fosse apreciado e valorizado no contexto nacional e no contexto particular da equipa para onde vinha. A época transacta deu razão às minhas reservas, mas, felizmente, tudo mudou desde Agosto. Do outro, sempre fui fã incondicional e não tinha dúvidas do seu valor. Como em relação ao primeiro, cheguei a temer que a mentalidade retrógrada do país não soubesse retribuir-lhe a qualidade. Felizmente, uma vez mais, encontrou o espaço ideal e a mentalidade ideal na equipa para a qual veio habitar.
Por esta altura, qualquer pessoa sensata saberá já que estas palavras de apreço não poderiam ser dirigidas senão a Pablo Aimar e a Javier Saviola. Os dois argentinos são, a uma distância que não consigo sequer qualificar, de tão vasta, os melhores jogadores deste campeonato. Com eles, o Benfica não é só um candidato ao título normal; é uma equipa mentalmente saudável, imaginativa como muito poucas no mundo. O futebol encarnado tem, colectivamente, uma qualidade considerável e Jesus está, por isso, de parabéns. Mas a principal virtude deste conjunto são estes dois pequenotes. E não estes dois, cada um por si; estes dois, sim, mas quando relacionados um com o outro. O Benfica torna-se especialmente poderoso quando estes dois conseguem combinar entre si, quando se conseguem entender. A relação entre eles é que é formidável. As suas qualidades mais interessantes, por isso, são aquelas que lhes permitem perceber-se um ao outro e não aquelas através das quais conseguem, ocasionalmente, resolver situações individuais.
O principal mérito de Jorge Jesus, de entre os muitos que tem, é ter confiado incondicionalmente o seu Benfica à arte destes dois enormes jogadores. Ao contrário de Paulo Bento, que parece desenhar a sua equipa sempre em função de Liedson, o mérito de Jesus consistiu em perceber em função de quem é que vale a pena desenhar equipas. Se uma equipa de futebol deve ser pensada em função de alguma coisa, deve sê-lo em função do talento. E é de talento que tem de se falar quando se fala nos nomes de Aimar e de Saviola. Estes dois artistas não têm muitos dos atributos que, hoje em dia, muita gente considera essenciais a um jogador de topo. Não são extraordinariamente velozes, não são agressivos, não são capazes de jogar intensamente durante 90 minutos, não são fortes fisicamente, não são altos. No fundo, são dois pequenotes. Acontece que, ao contrário do que muita gente pensa, o futebol é essencialmente para os pequenotes. E Aimar e Saviola encontraram na Luz quem percebesse isso.
O sintoma que mais fielmente denota a saúde desta equipa não é a capacidade de pressionar alto durante 90 minutos, não é a resistência física dos seus jogadores, não é a organização táctica da equipa, não é a quantidade absurda de golos marcados, não é a capacidade de criar jogadas de perigo a toda a hora. Tudo isto são, de facto, indícios positivos. Mas aquilo que melhor espelha o potencial desta equipa não é nenhuma destas coisas. Aquilo que faz pensar que, de facto, o Benfica poderá fazer uma época extraordinária e medir forças com quase todas as equipas do mundo é um pormenor que tem passado despercebido a quase toda a gente. Falo de Aimar e de Saviola, claro. Mas falo deles não por tudo o que é normal dizer deles, mas por outra coisa. Vejam como trocam a bola entre eles descomplexadamente, como jogam para trás quando podiam progredir, como parecem divertir-se ao mesmo tempo que decorre a competição, como se procuram um ao outro em campo, como tabelam com uma destreza inigualável, como confiam um no outro e endossam a bola ao outro mesmo quando este se encontra rodeado de adversários, como jogam à rabia entre adversários, como iludem tudo e todos negligenciando a ideia de progressão e preferindo repetir o passe para trás. Parecem almas gémeas. Entendem-se na perfeição e podem dar-se ao luxo de levar esse entendimento para patamares de complexidade incompreensíveis para a maior parte dos adversários. Ao fazê-lo, tornam-se muito difíceis de parar. Quando se pensa que Aimar vai definir a jogada, com um passe para as costas da defesa, eis que procura Saviola; quando se pensa que este se vai virar para o adversário e forçar a verticalidade, eis que devolve em Aimar; quando se pensa que, agora sim, Aimar vai dar profundidade, eis um passe para o lado para o amigo Javier; quando se pensa que Saviola, após tanta cerimónia, vai finalmente procurar ser objectivo, eis mais um toque curto para o amigo Pablito. E estão nisto o tempo que for preciso. E os adversários à roda, à procura da bola, com a língua de fora e já sem discernimento para perceber que, com tudo isto, se desorganizaram por completo. A consequência deste tipo de futebol é precisamente esta: desorganizar, pela imprevisibilidade, pela estranheza da coisa, toda uma defesa. O futebol curto de Aimar e Saviola, as tabelas e as contra-tabelas, o exagero de passes e devoluções entre eles, tudo isto corresponde ao maior trunfo deste Benfica. Ser capaz de fazer isto é ser capaz de fazer o que há de mais difícil e eficaz em futebol. Há pouquíssimas duplas que o conseguem. Neste momento, só me ocorrem os nomes de Xavi e Iniesta.