quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Carrosséis Imaginários e a Desmarcação como Engodo

Não há equipa, actualmente, que promova discussões teóricas tão interessantes como o Barcelona. Toda a revolução conceptual que a equipa de Guardiola encetou, sobre a qual parece agora haver consenso, embora há três anos, quando o sugerimos aqui, ninguém acreditasse nisso, deu ocasião a várias ideias acerca das suas virtudes. Uma delas, muito comum, tem a ver com a ideia de carrossel. Para muita gente, onde este Barcelona se distingue é na dinâmica circular que os seus jogadores apresentam, no exercício de um carrossel, ao estilo do futsal, que faz com que os jogadores não tenham posições fixas no terreno, baralhando as marcações. Escusado será dizer que discordo disto, como aliás o título do texto o sugere. Na minha opinião, não existe qualquer carrossel. E, apesar de concordar que a dinâmica da equipa é fortíssima, faz-me sempre confusão que se defenda a dinâmica como uma virtude porque me parece sempre que as pessoas que falam de dinâmica usam a palavra para designar qualquer coisa que não percebem bem. Aqueles que dizem que a dinâmica deste Barcelona é fantástica parecem-me sempre, por isso, pessoas que são capazes de reconhecer que a equipa é extraordinária, mas que, por não perceberem ao pormenor o que a torna extraordinária, usam uma palavra de um modo vago para explicarem a elas próprias o desconforto que sentem. A teoria do carrossel vem na sequência disto.

Não sou especialista em futsal, nem percebo o suficiente do jogo para ter opiniões interessantes acerca dele, pelo que me absterei de falar dele em pormenor. No entanto, não posso deixar de referir que o futsal, nem que seja pelas dimensões do campo e pelo número de jogadores em cada equipa (o que faz com que a interacção entre jogadores e entre equipas seja diferente de um jogo em que o número de jogadores é diferente), é um jogo muito diferente do futebol. Como se joga com os pés e como muitas das regras são semelhantes às do futebol, as pessoas têm a tendência a achar que são jogos parecidos. Eu acho que as parecenças são superficiais, e que, no que há de essencial, o futebol é tão distinto do futsal como do basquetebol. É também por isso que a ideia de que este Barcelona tenta emular o carrossel que tipicamente as equipas de futsal utilizam me parece francamente absurda. No futsal, a ideia de cobertura (ofensiva ou defensiva) muito provavelmente não faz sentido (ou tem um sentido muito diferente); no futebol é fundamental. Para ser justo, as pessoas não acham que o Barcelona utilize um carrossel em que todos os seus jogadores intervêm. Mas muitas acham que, pelo menos do meio-campo para a frente, é assim que a equipa joga, sendo por isso que causa tantos problemas aos adversários. Se o Barça utilizasse um carrossel, pelo menos do meio-campo para a frente qualquer jogador poderia passar por qualquer posição. E isso não é verdade. Ninguém vê o médio defensivo à frente dos médios ofensivos. Ninguém vê o extremo a fazer cobertura ao médio defensivo. Saber aproveitar os espaços interiores é muito mais importante do que fazer a equipa circular como um carrossel.

Falar em carrossel para definir o futebol do Barcelona ou é falso ou profundamente vago. E por isso absurdo. Resulta essencialmente de as pessoas perceberem que a equipa de Guardiola se movimenta de forma esquisita, para aquilo que é normal, e de darem demasiada importância a isso. Outro dia, quando via o clássico contra o Real Madrid, disse-me uma das pessoas com quem via o jogo que parecia que o passe nunca era feito para o jogador que se desmarcava. Não vale a pena falar do privilégio que é ver futebol com quem consegue fazer observações deste tipo. Mas é muito mais relevante, e sobretudo muito mais concreto, falar disto do que falar de carrosséis imaginários. Esta, sim, é uma observação sobre a qual vale a pena reflectir, e que pode explicar muito melhor o que é esta equipa. Durante décadas, aceitou-se quase religiosamente a ideia de que o portador da bola devia respeitar a desmarcação do colega, endossando-lha. O Barcelona de Guardiola também veio quebrar com esse preconceito, e usa a desmarcação como ilusão, para sugerir uma hipótese de passe que depois não utiliza. O trabalho sem bola, seja para a receber, seja para atrair atenções, é fundamental nesta equipa. E esse trabalho sem bola é muito mais complexo do que um mero carrossel em que os jogadores se movimentam em círculo, complementando-se uns aos outros. Não é raro que um avançado baixe para que dois médios entrem nas costas; não é raro que um extremo faça uma diagonal para o lateral receber na profundidade; não é raro que um jogador se movimente horizontalmente entre linhas para que um médio, vindo de trás e com um movimento vertical, receba a bola no exacto local de onde o colega partiu.

Quando se fala em sistemas tácticos sem avançados, dá-me, por isso, vontade de rir. Do facto de o Barcelona entrar em campo sem jogadores com características de avançados não se segue que não jogue com avançados. O que define um avançado é a posição relativa aos colegas em que joga, não as suas características. Quando se diz que a revolução operada por Guardiola consistiu principalmente na utilização de um modelo de jogo sem avançado, ou num modelo de jogo sem avançados, erra-se grosseiramente. Guardiola jogou sempre com avançados, ainda que avançados com movimentações e características diferentes das que habitualmente os avançados têm. Aquilo que me parece, de facto, revolucionário na dinâmica desta equipa não tem, portanto, a ver com um sistema táctico sem avançados, nem com um modelo de jogo semelhante a um carrossel, mas sim com uma certa arte de atacar. Tal como me parece que a equipa usa a bola como um engodo, para puxar os adversários para onde deseja e para arranjar os espaços que pretende, parece-me que usa igualmente a desmarcação como engodo, para sugerir linhas de passe que não utiliza e para levar adversários a tentar antecipações que não ocorrerão. Ao fazê-lo, causa necessariamente a ilusão de que os seus jogadores se movimentam sem lei, como se não tivessem posições, e de que a dinâmica da equipa assenta nessa desordem. Ora, a desordem é apenas aparente, e serve para levar as defesas adversárias a desorganizarem-se. O Barcelona é organizadíssimo. E é por sê-lo que aproveitam de forma tão sistemática a desorganização que os movimentos sem bola dos seus jogadores causam nas defesas contrárias. Se jogassem em carrossel, como muitos acham, o Barcelona seria uma equipa muitíssimo mais previsível, mais fácil de parar, e muito mais permeável em termos defensivos.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Certezas (25)

Não é propriamente uma novidade, mas há muito que merecia a honra de ser falado aqui. Não o fiz antes essencialmente porque queria perceber melhor qual seria o seu enquadramento no plantel da sua equipa, este ano, até porque tinha ideias a esse respeito. O seu valor é inquestionável e serão poucos os que acharão alguma novidade nesta referência. Não é, como o seu ídolo, Xavi, um jogador tão inteligente e criterioso no momento do passe. Nem me parece que seja em fases de construção tão prematuras que pode fazer a diferença. Claro que pode jogar aí, e claro que aparecerá sempre em zonas baixas, mas a sua qualidade de drible, sobretudo, merece um aproveitamento diferente. Não o considero tão rápido a ler o jogo como outro colega com quem cresceu e com quem coabitou no meio-campo, Jonathan dos Santos, mas parece ter maiores recursos que o mexicano, e uma personalidade mais forte. É atrevido, tem uma capacidade técnica invulgar, e é assaz inteligente para jogar em qualquer posição do meio-campo, mas é entre linhas, enfiado entre as defesas contrárias que gostaria de vê-lo mais vezes. É fortíssimo no último passe, muito criativo, e individualmente desembaraça-se de situações difíceis sem problemas. Como médio, não tem ainda a maturidade nem a qualidade para poder ombrear com os habituais titulares, e ficaria durante muitos anos na sombra deles. Mas encostado à esquerda, como no último jogo, partindo depois para dentro, ou à frente dos dois médios, percorrendo sem bola os espaços entre os médios e os defesas adversários, oferecendo-se para tabelas curtas e puxando as marcações adversárias para onde interesse à equipa, acho que tem tudo para crescer. Em qualquer uma dessas posições, a sua responsabilidade é menor, e as suas melhores qualidades podem continuar a ser trabalhadas. O seu treinador não parece concordar, utilizando-o quase sempre como médio-ofensivo, mas nunca como aquele jogador que joga à frente dos médios, menos posicional, deambulando pela frente de ataque com menores amarras, mais preocupado em solicitar linhas de passe do que em ter ele a bola. Agora que é claro que Guardiola valoriza como ninguém a utilização de jogadores com características de médios nas posições mais ofensivas do seu modelo, assim como valoriza a criação de espaços ofensivos, os movimentos sem bola dos atacantes, a utilização da bola como um engodo, cabe-lhe talvez a missão de fazer de Thiago Alcântara um jogador mais decisivo na manobra ofensiva da equipa, especialmente naquilo que se passa no último terço do terreno, precisamente onde os espaços são mais curtos, a quantidade de vezes que se toca na bola é menor, e a técnica individual mais preponderante.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

A Sorte e os Problemas Digestivos

Sou o primeiro a reconhecer que a sorte desempenha um papel muitas vezes decisivo numa partida de futebol, e sou também o primeiro a dizer que aquilo que muitas vezes parece competência tem muito mais a ver com sorte do que com outra coisa. Não é raro uma equipa dominar um jogo, fazer tudo bem feito, mas não ser capaz de marcar, e sofrer um golo por um escorregão, ou por um ressalto impróprio. Em futebol, a sorte é muitas vezes negligenciada, e é muitas vezes o factor chave no desfecho de um jogo. Como dou tanta importância à sorte, sempre acreditei num modelo de jogo que procurasse depender o menos possível das incidências da mesma. Esse modelo, está claro, passa necessariamente por ter mais tempo a bola, por jogar o mais curto possível, com os jogadores próximos, por abdicar da vertigem de um jogo de transições constantes, pela paciência, pela calma, pela frieza e pelo raciocínio. Em suma, um modelo que, nos dias que correm, o Barcelona de Guardiola tão bem põe em prática. E é sobretudo por acreditar que um jogo jogado nestas coordenadas se defende o melhor possível desse factor a que se chama "sorte" que discordo inteiramente das observações de José Mourinho no final da partida do passado fim-de-semana, que explicou o resultado do clássico dizendo que fora a sorte a ditá-lo.

Os argumentos de Mourinho dizem sobretudo respeito aos golos falhados por Ronaldo, quando estava 1-0 a favor dos merengues e quando estava 2-1 a favor dos catalães, e ao segundo golo do Barcelona. Não sei muito bem se faz sentido falar em sorte e não em aselhice ou em falta de pontaria, no primeiro caso. De qualquer maneira, justificar a derrota baseando-se em dois golos falhados, quando o Barcelona teve o triplo das oportunidades para marcar, não me parece que faça muito sentido. Sim, Ronaldo poderia ter feito o 2-0. Mas se Ronaldo falhou um golo que, no entender de Mourinho, faria com que a partida, com 2 golos de vantagem para os da casa, se tornasse diferente, minutos antes Casillas tinha livrado o Real do golo do empate, após lance de Messi. Se Mourinho falasse do falhanço de Ronaldo, mas se lembrasse da defesa de Casillas, a partida não ficava assim tão diferente quanto isso. Se Ronaldo falhou o 2-1, numa cabeçada a responder a um cruzamento, que por si só não é um lance de execução tão fácil como isso, quantos lances não tinha já o Barcelona tido para ampliar a vantagem? E se pode Mourinho justificar a derrota recorrendo a falhanços ofensivos, é legítimo ignorar que chegou à vantagem após um erro não-forçado do guarda-redes adversário? É engraçado que se justifique a derrota deste modo quando o único golo que se conseguiu se deveu unicamente a um lance infeliz do adversário, um lance em que não só há um mau passe a propiciar a recuperação da bola numa zona perigosa, como dois ressaltos que favorecem claramente os merengues. Enfim, por aqui me parece plausível sugerir que as observações finais de Mourinho não foram proferidas num total bem-estar digestivo.

Mas falemos do lance do segundo golo do Barcelona, lance que, no entender de Mourinho, determinou o resultado e que foi fruto unicamente da sorte. Disse Mourinho que não houve talento, que não houve competência, que não houve erros defensivos, que a bola entrou apenas porque a sua equipa teve azar. Bom, em primeiro lugar, não é nada certo que Casillas fosse capaz de defender o remate de Xavi, caso a bola não desviasse no defesa do Real, enganando-o. Mas o importante do lance parece-me estar antes do desvio decisivo em Marcelo. Esquece-se Mourinho, e esquecem-se aqueles que concordam com ele, de que o lance nasce após a insistência, tão habitual nos catalães, de entrar no bloco adversário recorrendo a tabelas curtas, colocando os jogadores próximos uns dos outros; esquece-se de que o alívio de Coentrão, que leva a bola até Xavi, é forçado pela excelência do lance em si, e que, sem esse alívio, Fabregas ficaria isolado na cara de Casillas; esquece-se de que a bola sobra para uma zona onde o Barcelona, pela forma como joga, tem constantemente superioridade numérica; esquece-se de que o Barça, nessa jogada, envolve 7 jogadores no processo ofensivo (Abidal, Fabregas, Iniesta, Alexis, Daniel Alves, Messi e Xavi), com 5 jogadores para lá da linha da grande área e outros 2, Messi e Xavi, logo à entrada dela; esquece-se, no fundo, de que tudo o que precede o desvio decisivo é fruto da excelência do modelo catalão, e é, por conseguinte, fruto de talento, competência individual e qualidade colectiva. Sorte? Sim, mas antes de haver sorte há todo um conjunto de condições que propiciam o aparecimento dessa sorte. Não é por acaso que os jogadores catalães parecem ganhar mais ressaltos que os outros, deixando jogadores como Fábio Coentrão com os nervos em franja. Jogam mais juntos, posicionam-se melhor, e, por arrasto, protegem-se melhor da contingência da sorte.

Outra das coisas que explica o sucesso catalão, e que explica também por que razão falar de sorte, neste caso, não é legítimo, é o que fez Valdés ao longo do jogo. O seu erro, na sua primeira intervenção, foi decisivo para o Real ganhar vantagem, mas nem por isso se atemorizou. Continuou a arriscar, a procurar os colegas, mesmo quando o passe envolvia perigos, porque desse risco depende muito do jogo catalão. Guardiola foi claro: prefere que Valdés insista em fazer aquilo, mesmo havendo a possibilidade de isso originar erros decisivos. E prefere que se cometam erros assim porque não o fazer implica comprometer todo o jogo da equipa. O Barcelona, mesmo oferecendo um golo dessa forma, não mudou a sua identidade; manteve-se fiel aos seus princípios e procurou jogar como sempre joga, sabendo que só assim é superior. O golo de Xavi e o domínio catalão dependeram desse tipo de insistência muito mais do que dependeram da sorte. A sorte criou-a o Barça, ao jogar como joga. Na primeira parte, não foi capaz de ser tão dominador como é costume, e errou muitos passes (embora mais por intranquilidade do que por acção do adversário). Mas a segunda parte foi avassaladora. Sorte? Pelo que aconteceu na segunda parte, sorte teve o Real de o resultado não ser mais expressivo e de a humilhação em sua casa não ter sido maior.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Lições de Mestre (9)

A pergunta que lanço é: a quem pertence o golo, neste lance? O lance é o do primeiro golo do Bayern de Munique, este fim-de-semana, frente ao Werder Bremen. Contra-ataque, dois para dois, e Ribery a resolver. Terá sido assim? A meu ver, metade do golo, no mínimo, é da responsabilidade de Thomas Müller. E o extraordinário é que o é sem sequer ter tocado na bola, em todo o lance. Exagero meu? Não creio. Sem a movimentação de Müller, e aquela movimentação em particular, tenho sérias dúvidas de que o francês conseguisse solucionar o lance do mesmo modo. É por estas e por outras que os marcadores dos golos recebem excessivos louvores pela introdução da bola na baliza. A acção dos colegas (e nem sempre acções com bola) é determinante para que a jogada acabe no fundo das redes. Sempre! Para meu espanto, a movimentação de Müller foi uma das coisas que o comentador desportivo de serviço enalteceu, após o lance. Não sei se terá, de facto, percebido a influência da mesma no desfecho do lance, mas ter, pelo menos, reparado nela é já algo digno de nota.


szólj hozzá: Bayern Munich 1-0 Werder Breme

A jogada é rápida, e assim que Ribery recebe a bola no centro, Müller, que era o jogador mais adiantado e estava descaído para a direita, espera pelo colega, vem para o centro, e passa-lhe nas costas. Esta movimentação é quase absurda, para muitos. Mas é a coisa mais correcta a fazer, numa jogada deste género. Normalmente, faz-se quando dois jogadores estão lado a lado, e aquele que está sem bola passa por trás do que a conduz. Mas quando o jogador sem bola está mais avançado (e é o único nessa posição favorável), é raro esperar, recuar, e passar por trás do portador da bola. É também por isso que o que Müller fez é tão extraordinário. Depois, foi o que se viu. Ao passar por trás de Ribery, cria um momento de indefinição no defesa, que ficou sem saber se Ribery ia fazer o passe, ou se ia driblar para dentro. É esse momento de hesitação que quem conduz a bola deve tentar aproveitar, e foi isso que Ribery fez. Muitas vezes, acha-se que o portador da bola deve obrigatoriamente respeitar a movimentação de um colega nas costas, e dar-lhe a bola. Discordo disto. A movimentação nas costas não serve para dar uma solução de passe obrigatória; serve para deixar o defesa momentaneamente indeciso. Pode parecer que Ribery se desembaraçou facilmente do defesa que lhe saiu ao caminho, e que finalizou sem oposição porque não foi importunado devidamente. Mas tal não foi o caso. A movimentação de Müller criou um momento de hesitação, um momento em que o defesa teve de tentar adivinhar as intenções do francês, e isso foi-lhe fatal. Ficou imediatamente fora do lance, e não pôde importunar o portador da bola. Sem a movimentação de Müller, o defesa aguardaria a acção de Ribery, esperaria pela iniciativa do francês, e reagiria em conformidade. Talvez desse golo na mesma, mas é certo que não remataria tão à-vontade, nem gozaria da aparente liberdade para concluir o lance de que gozou. Metade do golo, se não mais, é do alemão, mas isso, por mais que se enalteça, jamais entrará nas contas de quem interpreta o rendimento de um jogador sem ter em conta a forma como interage com os companheiros.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

O Clássico e os Detalhes

Não tenho muito a dizer do clássico do passado fim-de-semana, a não ser que, embora emotivo, embora bem disputado, não foi propriamente bem jogado. Ambas as equipas arriscaram o menos possível, e o que acabámos por ter foi um jogo dividido, com muitas disputas de bola, muita luta, muito choque, e pouco futebol. O número de passes acertados foi certamente baixo, e as duas equipas preferiram sempre jogar no erro adversário. Ainda assim, nenhuma delas se entregou às evidências, procurando condicionar a posse adversária o melhor possível. Num jogo com estas características, diria eu, os detalhes são importantes, claro. E foi num detalhe, num lance de bola parada, que tudo se decidiu. Mas os detalhes não ocorrem apenas porque sim. O Benfica venceu num detalhe, mas foi também a equipa que mais fez para contar com a benesse dos "detalhes".

É evidente que a vitória podia ter sorrido a qualquer uma das equipas, e que, mesmo estando onze para onze, não houve uma superioridade significativa, em termos da quantidade de oportunidades de golo, dos encarnados. O resultado mais justo, mesmo sem contar com o que o Sporting fez após a expulsão de Cardozo, talvez até fosse o empate. Mas o jogo do Benfica, ainda que sem a qualidade desejável, procurou o mínimo de racionalidade. Fosse por a bola ter chegado mais vezes a Aimar do que a Matías Fernandez, fosse porque Witsel, Aimar e Gaitan se entenderam melhor entre eles, fosse porque os hábitos encarnados são diferentes, a verdade é que o futebol do Benfica foi menos precipitado. O Sporting nunca se interessou por construir fosse o que fosse. Apostou numa pressão alta, excessivamente condicionada pelas referências ao homem, a meu ver, e por conduzir os seus ataques após recuperações de bola, o mais rapidamente possível. Tudo o que vimos, do lado dos leões, foram solicitações dos homens mais adiantados, cruzamentos largos para a área, correrias de Capel, movimentos verticais de Elias e Schaars, e pouquíssima imaginação. É verdade que conseguiu criar algumas oportunidades nestas condições, mas também é verdade que não foi capaz, precisamente por causa deste tipo de decisões, de criá-las em condições minimamente favoráveis.

Como disse anteriormente, a diferença entre as equipas não se traduziu em número de oportunidades de golo. As melhores oportunidades que o Benfica criou foram ou de bola parada, ou após recuperações ou perdas do adversário (lances de Cardozo e de Rodrigo, por exemplo). Mas sentiu-se sempre que o Benfica chegava às imediações da área leonina em melhores condições, que trabalhava melhor os lances, que era mais criterioso, que se preocupava mais em fazer as coisas de modo racional. A sofreguidão leonina podia ter conduzido a outro resultado, até porque a racionalidade dos encarnados não foi assim tão concludente, mas a verdade é que essa mesma sofreguidão condicionou a equipa, e tem de ser introduzida na conversa sobre detalhes. O jogo decidiu-se num detalhe, sim, mas a própria estratégia de Domingos implicava a aceitação de um jogo decidido pela "lotaria" dos detalhes e deixava a equipa menos preparada para os mesmos.

Fala-se demasiado em detalhes, como se os detalhes merecessem uma análise à parte do resto do jogo. Mas a verdade é que, para que uma partida se decida num detalhe, algo tem de acontecer para que esses detalhes se possam verificar. A meu ver, o principal mérito do Benfica na partida foi precisamente o modo racional como tirou partido da sofreguidão do Sporting. Nem sempre o fez bem, obviamente, e tenho até dúvidas de que o tenha feito conscientemente. Mas fê-lo, nem que tenha sido apenas pelas características dos seus jogadores. Jogando com isso, puxou convenientemente o jogo para o tipo de decisões que mais lhe eram favoráveis, e fez pender os pratos da balança para o seu lado. O jogo foi, de facto, repartido em termos de oportunidades de golos, em termos de emoção junto às balizas, mas foi melhor controlado pelo Benfica. A decisão do mesmo através de um detalhe não pode por isso ser demasiado restrita. Decidiu-se num detalhe, sim. Mas um detalhe que o resto do jogo e o comportamento das duas equipas em campo potenciou.

P.S. Não se tem falado muito da ausência de Saviola do onze encarnado, e tem-se gabado o Benfica desta temporada mais do que me parece razoável. De facto, o melhor Benfica da época foi o dos primeiros jogos, altura em que o argentino ainda fazia parte das primeiras opções de Jorge Jesus. Como sempre disse aqui, a principal arma encarnada no primeiro ano de Jesus, aquilo que introduzia diversidade na equipa, eram as combinações curtas entre Aimar e Saviola, assim como a liberdade de que os dois gozavam no modelo de jogo. No segundo ano, Jesus procurou potenciar em excesso aquilo que a equipa já fazia bem, e deu menos liberdade à criatividade dos dois argentinos, evitando até, o mais possível, que os dois jogassem em simultâneo. Esta época acentuou apenas essa tendência. O Benfica deste ano ganhou alguma inteligência e capacidade de gestão de ritmos com os reforços (sobretudo Witsel, Bruno César e Nolito), mas perdeu ainda mais criatividade no último terço do terreno. Parece uma equipa menos dependente das correrias de outrora, menos interessada em jogar a uma velocidade altíssima, mais competente a gerir a bola em zonas baixas do terreno, mas é uma equipa menos forte a penetrar em blocos mais densos, menos imaginativa. Privar as pessoas daquilo de que Aimar e Saviola, juntos, são capazes, é hoje o maior crime de Jorge Jesus.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

A Utilidade Invisível de um Avançado

Para muita gente, o papel de um avançado resume-se a fazer golos, e a avaliação do seu rendimento depende exclusivamente desse factor. Para outros, mais moderados, o avançado deve fazer golos, mas deve também ser capaz de oferecer outras coisas à equipa. Para um terceiro grupo de pessoas, nas quais me incluo, um avançado, como aliás qualquer outro jogador, deve essencialmente ser alguém que oferece coisas à equipa, sendo os golos que marca um mau critério para lhe definir o rendimento sobretudo porque, dependendo do modelo de jogo da equipa, dos companheiros, daquilo que lhe é pedido, etc., tal competência pode não ser o que de mais importante tem para dar. No Real Madrid, por exemplo, acredito que Cristiano Ronaldo tem tendência a render mais quando Benzema joga (em vez de Higuain), pois o tipo de movimentos e de preocupações do francês facilitam as características do português. E isto mesmo durante os largos meses em que Benzema não fazia golos. O rendimento de um avançado, portanto, não pode ser avaliado nem pela quantidade de golos que marca, nem pela quantidade de outras coisas que oferece à equipa, mas pela forma como se enquadra nessa equipa, pela forma como, de acordo com o tipo de coisas que oferece, facilita ou dificulta o rendimento colectivo. É por pensar no rendimento colectivo e só nele que, por norma, avalio rendimentos individuais de modo muito diferente da grande maioria das pessoas. E é por essa razão que, uma vez mais, quero falar de Hélder Postiga.

Tal como nunca achei Benzema um mau finalizador, não acho sequer que Postiga o seja, como o sabe quem acompanha este blogue. Falha tantos golos como qualquer outro avançado de renome, e se não marca mais é essencialmente porque não está tantas vezes como outro tipo de avançados em posição privilegiada para o fazer. Sobre golos, aliás, a sua prestação na selecção sempre desmentiu a teoria de que era perdulário. E, aliás, a sua prestação em Espanha, até ao momento, tem sido boa para calar certas vozes. Recentemente, outra crítica lhe tem sido feita: a de que está constantemente fora-de-jogo. O que é curioso é que não me lembro de alguém criticar isto em Liedson, que era apanhado em fora-de-jogo muito mais vezes do que Postiga, e que era apanhado essencialmente por distracção, ao contrário do português. A meu ver, releva esta crítica essencialmente de dois tipos de coisas: um preconceito generalizado contra o jogador, e a incapacidade de analisar ao pormenor os lances em que tem sido apanhado em fora-de-jogo. Sobre a primeira dessas coisas, é pouco interessante falar. Postiga pertence ao tipo de jogadores sobre os quais as opiniões que se formam dependem de uma opinião pública negativa previamente formada. Como tenho pouca paciência para demover multidões, e como já escrevi o suficiente, no passado, acerca dos equívocos generalizados em relação ao jogador, não vou voltar ao assunto. Sobre a questão do fora-de-jogo, é verdade que Postiga, nos últimos tempos, tem sido apanhado muito mais vezes em fora-de-jogo do que antigamente. Mas é preciso analisar as situações e perceber os porquês dos factos. Tal como, na época passada, passou a rematar mais do que rematava porque Paulo Sérgio, inclusive publicamente, lhe ordenou que o fizesse, modificando-se portanto de maneira a tentar responder às críticas, parece-me que esta situação advém precisamente de uma tentativa de se tornar mais próximo dos golos, de procurar mais certos movimentos nas costas dos defesas, de modo a criar melhores condições de finalização para si. E da mesma forma que não se critica que Inzaghi, em 6 lances, tenha de ser apanhado 5 vezes em fora-de-jogo para poder usufruir de um sexto lance em condições de finalização privilegiadas, acredito que é injusto criticar Postiga pelas mesmas razões. Veja-se o quarto golo frente à Bósnia. Postiga tem arriscado mais certos movimentos, e isso tem feito com que esteja a ser apanhado em fora-de-jogo mais vezes. Mas se calhar também tem tido mais rendimento em termos de golos porque tem arriscado mais esse tipo de movimentos. Por isso, convém que as críticas se decidam. Se gostam de um avançado que faz golos, que joga no limite do fora-de-jogo para poder estar mais perto dos golos, então não podem criticá-lo por estar precisamente a fazer isso. Se não se importam com os golos que um avançado faz, então deixam-no em paz quando não faz golos.

Voltemos bruscamente ao tema do texto, que tem essencialmente a ver com o tipo de coisas que um avançado pode oferecer a uma equipa, mas das quais as pessoas raramente se apercebem. Diz o Filipe Vieira de Sá, para quem o Postiga, pelas acusações praticamente diárias, deve ser presença assídua nos seus pesadelos, o seguinte acerca do avançado da selecção nacional:

"Os avançados são quem tem menor participação no jogo colectivo, o que é normal, mas na Selecção a sua acção não tem conduzido, nem a qualquer ocasião criada, nem tão pouco a um acréscimo positivo na fluidez de jogo. Ou seja, o contributo positivo do ponta de lança, na Selecção, tem-se resumido à finalização, e apenas à finalização."

Para o Filipe, o avançado, no modelo de jogo da selecção, tem pouca participação no jogo colectivo porque as acções sem bola, as movimentações, as acções com bola longe da baliza, e tantos outros pormenores aparentemente irrelevantes, não entram nas contas que faz para atribuir rendimentos individuais. Como discordo disto, e como acho que Ronaldo e Nani têm tudo a ganhar com a utilização de um ponta-de-lança que se preocupe com movimentos interiores, que sirva de apoio vertical aos médios, e que saia da sua posição, arrastando consigo adversários, é natural que tenha uma opinião diferente. O lance que trago, e a interpretação que vou dar do mesmo, têm por fim, essencialmente, mostrar como há mais do que golos, assistências, e coisas vistosas que devem entrar na análise do rendimento de um avançado, tornando ainda claro por que razão é Postiga útil a esta equipa, como o seria a muitas outras, caso houvesse uma percepção melhor das coisas extraordinárias que tem para oferecer.


szólj hozzá: 3-1

Que eu tenha conhecimento, não se elogiou, no lance do terceiro golo da selecção, senão o passe de Moutinho e a conclusão de Ronaldo. De facto, quem vê o jogo, está atento à bola, e é por esses dois jogadores que ela passa até chegar ao fundo das redes. Evidentemente, tanto um como outro, definiram bem a jogada, e são os principais responsáveis pelo lance. Mas, e agora pergunto eu, não haverá quem tenha facilitado que aquilo acontecesse como aconteceu? Isto é, será o mérito apenas dos dois jogadores, ou terá havido alguém que, muito discretamente, sem tocar nem sequer se ter aproximado da bola, tenha permitido à equipa gozar daquela oportunidade? A meu ver, isso é inequívoco. Estou a falar, naturalmente, de Postiga. Quando a bola está a ser disputada no meio-campo, já Postiga, tendo percebido o espaço que havia entre os médios e os defesas bósnios, se disponibilizara, ocupando esse espaço, para vir receber a bola, na eventualidade de um colega ter tempo e espaço para executar o passe na sua direcção. Ao mesmo tempo, inadvertidamente ou não, o seu posicionamento baixo criou hesitação no defesa central que estava mais perto de si. Foi por isso que Ronaldo, ao receber o passe de Moutinho, se isolou de imediato, porque o defesa, hesitando entre dar um passo à frente para apertar Postiga e ficar recuado, vigiando o posicionamento de Ronaldo, acabou por reagir demasiado tarde. Ao se colocar onde se colocou, ao perceber o espaço que deveria ocupar e ao se disponibilizar para o fazer, muito antes de ser evidente que a equipa ia ficar com a bola, Postiga forçou a indecisão do defesa, o que, por sua vez, facultou a Ronaldo o espaço suficiente para arrancar sozinho para a baliza. Se, por outro lado, Postiga tivesse ficado enfiado entre os centrais, se não estivesse interessado naquele espaço, o defesa, até porque tinha a ajuda do outro central, facilmente se teria concentrado apenas em Cristiano Ronaldo, e nunca ficaria para trás apenas com o passe de Moutinho.

Naquilo que Postiga fez, porém, ninguém reparou. Como não tocou na bola, como Moutinho nem sequer olhou para ele, para a grande maioria das pessoas não teve qualquer acção no lance. Para mim, que não vejo as coisas com a mesma linearidade, teve, e teve muita. Não digo que se tenha posicionado com a intenção de dificultar o comportamento ao defesa. Mas, porque estava preocupado com a equipa, com o dar o apoio certo, com a ocupação do espaço certo, naquele momento, acabou por ajudar a equipa, mesmo que o seu posicionamento entre linhas não tenha sido utilizado para fazer passar a bola. A simples colocação correcta em campo de Postiga, naquele momento, permitiu à equipa (sim, à equipa!), que os dois jogadores que intervieram activamente no lance gozassem das condições ideais para criar uma ocasião de golo. E isto, porque é invisível, é para muitas análises uma acção inútil. É por estas e por outras que as análises que estão preocupadas apenas com acções com bola são redutoras. Neste caso específico, sem ter tocado na bola, sem sequer ter estado perto da zona por onde a bola passou, Postiga foi decisivo para o desfecho do lance. De resto, é este um bom exemplo, a meu ver, de como um avançado não precisa de fazer golos, nem precisa de assistir os colegas para que estes façam golos, nem precisa de ganhar bolas de cabeça, nem precisa de ir ao choque com os defesas, nem precisa sequer, cúmulo dos cúmulos, de tocar na bola para ser útil, enquanto avançado, às necessidades da equipa. A utilidade de um avançado, e aliás de qualquer jogador, nem sempre é visível a olho nu, nem se caracteriza por acções evidentes. E é por isso que o rendimento individual não pode ser condignamente avaliado senão tendo em conta toda a utilidade, visível e invísivel, que esse indivíduo tem na obtenção do rendimento colectivo.

domingo, 13 de novembro de 2011

João Pereira e a Melhor Oportunidade da Bósnia

Há quem ache que João Pereira é isto e aquilo, o melhor lateral-direito de Portugal e arredores, um lateral moderno, veloz, agressivo, intenso, que dá profundidade ao corredor. Não alinho em tais disparates. Reconheço que pode ser uma mais valia colectiva em termos de profundidade, se a equipa o souber potenciar, como por exemplo era Bosingwa no Porto, mas pouco mais. Com bola, raramente decide pelo melhor e só a sua boa capacidade técnica faz com que se safe minimamente. Sem bola, então, é francamente mau. Defensivamente, por exemplo, e apesar de jogar há vários anos em equipas em que se exige dos defesas que saibam ocupar os espaços e relacionar-se com os colegas a cada momento, de ter tido treinadores tão exigentes a esse respeito como são Jorge Jesus e Domingos Paciência, continua muito displicente.

O início de época no Sporting, apesar de pouca gente parecer ter reparado, foi desastroso, com a grande maioria dos golos sofridos pela equipa a resultarem de maus ajustamentos defensivos precisamente de João Pereira, de erros que, a este nível, normalmente se pagam caros. Quis-se justificar o mau início leonino com os bodes expiatórios do costume, a falta de eficácia, a baixa estatura dos centrais, a inexperiência dos jovens, o Carriço, o Postiga, etc., e ignoraram-se todas as asneiras de João Pereira. Não é, contudo, sobre o início de época do Sporting que quero falar. Há dias, referi os erros de principiante de Bosingwa, e muitos podem achar que a minha opinião acerca do melhor lateral direito português coincide com a de Paulo Bento. Não coincide. Acho que, defensivamente, tanto um como outro são jogadores banalíssimos, que cometem erros que ao mais alto nível não se deviam cometer, e que estão sobrevalorizados por isso mesmo. São rápidos, e muitas vezes isso ajuda a compensar o mau posicionamento, os disparates e as distracções. Mas cometem demasiados deslizes para o que se deve exigir em equipas de topo. Aliás, o melhor lateral-direito português, em meu entender, é Sílvio.



O lance que trago ocorre aos 80 minutos do jogo com a Bósnia (aliás, quanto mais perto do final da partida, maior me parece a tendência de João Pereira para errar), aos 9:15 do vídeo, e resulta naquele que foi, talvez, o principal lance de perigo dos bósnios, a par de outro lance pouco tempo depois. A bola vem da esquerda para um jogador bósnio que ocupa um espaço entre linhas, e este, de primeira, isola o avançado. João Pereira está 3 metros atrás da linha defensiva portuguesa, e é ele quem coloca o avançado em jogo, e quem permite que os bósnios transformem um lance aparentemente controlado numa ocasião clara de golo. É verdade que Pepe sai à última da hora (embora Pepe não deva ser exemplo para ninguém), mas, num lance que é conduzido pela esquerda, a responsabilidade do lateral-direito (assim como da linha defensiva), é perceber a referência dada pelo lateral-esquerdo. Se Coentrão e Bruno Alves estão adiantados, e a jogada é conduzida pelo lado deles, Pepe e João Pereira têm de subir para a linha destes. Não o fazendo, permitem que um avançado que se coloque entre Bruno Alves e Pepe adquira uma vantagem decisiva no caso de a bola ser metida pelo meio. João Pereira, provavelmente preocupado com o jogador bósnio que andava ali perto, não percebeu a referência defensiva certa, e ficou 3 metros atrás da linha defensiva. Não subindo no terreno, não só não ajudou a apertar o espaço onde a bola entra em primeiro lugar, permitindo, juntamente com Pepe, que houvesse um espaço entre o meio-campo e a defesa para os bósnios aproveitarem (há também responsabilidades do meio-campo, e nomeadamente de um jogador que não fecha tão dentro quanto devia), como possibilitou que o avançado bósnio escapasse por entre os centrais, pelo simples facto de estar a colocá-lo em jogo.

É por este tipo de lances, frequentíssimo para quem acompanha com atenção os jogos de João Pereira, que não consigo compreender como é que, hoje em dia, havendo tanta informação, havendo tanta preocupação com o detalhe, tanto interesse em questões tácticas, se continua a achar que João Pereira é isto e aquilo, só porque sabe correr, sabe mostrar os dentes, e sabe dar dois toques numa bola. O futebol, pelo menos o futebol moderno, é mais, muito mais, do que velocidade, força de vontade e habilidade. Numa selecção que aspira a pertencer, se não a mais, a um segundo grupo de selecções candidatas a vitórias em certames internacionais, não pode dar-se ao luxo de ter entre os seus titulares indiscutíveis alguém que comete erros sistemáticos deste tipo, erros básicos que podem prejudicar todo o trabalho feito em 90 minutos. E é por ter jogadores como este, jogadores que ombreiam com os melhores do mundo em termos técnicos e em termos atléticos, mas que possuem carências intelectuais relevantes, e por ter não um, mas vários destes jogadores entre os seus titulares, que não me parece que Portugal deva aspirar a tanto quanto tem aspirado nos últimos anos. Sim, em termos atléticos e em termos técnicos, Portugal está entre os melhores do mundo. E, sempre que conseguir levar um jogo para a dimensão física do mesmo, terá possibilidades de vencer qualquer outra selecção. Mas em termos intelectuais está mais perto de uma selecção sul-americana do que do rigor e da eficiência das maiores potências europeias. Temos hoje mais jogadores conceituados do que, por exemplo, há dez anos, mas esquecemo-nos que os jogadores que temos hoje se distinguem por atributos muito diferentes. Apesar, por isso, de mais reputada, de ter mais jogadores espalhados pelos melhores clubes europeus, parece-me esta selecção bem mais pobre do que algumas selecções anteriores. Se continua a ser suficiente para marcar presença nos maiores torneios de selecções, creio que sim. Mas sobre isso tiraremos todas as dúvidas dentro de poucos dias.

domingo, 30 de outubro de 2011

Dois Lances

O Chelsea perdeu ontem em casa com o Arsenal por 5 a 3, num jogo esquisito, com mais incidências do que aquelas que certamente André Villas-Boas desejaria. A primeira parte foi, na maior parte do tempo, dominada pelo Chelsea, mas na segunda o Arsenal mandou no jogo e acabou por justificar a vitória. Os comentadores de serviço passaram os 90 minutos a maldizer o Arsenal, a falar da falta de competitividade da equipa, do mau arranque de campeonato, dos insucessos dos últimos anos. Esquecem-se que a equipa de Wenger, apesar de não ganhar nada há algum tempo, andou a lutar com Manchester e Chelsea nos últimos anos, até às últimas jornadas, pelo campeonato, e com um orçamento francamente inferior. Este ano, o campeonato começou pior e muitos apressaram-se a dizer que era o fim da era do francês. Esquecem-se, uma vez mais, que o Arsenal perdeu Fabregas e Nasri, que praticamente ainda não pôde contar com Wilshere, Diaby e Vermaelen, e que, por exemplo, na goleada sofrida em Old Trafford, jogava sem oito habituais titulares. Ontem, frente ao Chelsea, apesar de todos os problemas defensivos que a equipa continua a ter e que justificam a sua incapacidade para se superiorizar aos adversários mais poderosos, o Arsenal voltou a mostrar por que não pode ser tão facilmente descartado das contas do título. É que não há equipa, em Inglaterra, com princípios ofensivos tão interessantes como os "gunners".

Trago os lances do primeiro e do segundo golo do Arsenal, o primeiro para mostrar como é evoluída, ofensivamente, a equipa de Wenger, e o segundo para pôr em evidência um erro individual primário em que não se parece ter reparado e que permitiu que o Arsenal regressasse ao jogo. Chamo ainda a atenção para os comentários feitos pela equipa inglesa, no vídeo, e para a incongruência dos mesmos, criticando os defesas no primeiro golo do Chelsea e no primeiro golo do Arsenal por não terem marcado em cima o avançado, e criticando igualmente Bosingwa no segundo golo do Arsenal por ter saído da sua posição para ir marcar em cima o avançado. Vamos aos lances.



O primeiro golo do Arsenal é uma boa demonstração de como o futebol vai evoluir no futuro. Na altura, disseram os comentadores que o Chelsea deixou o Arsenal jogar, e que, portanto, o primeiro golo surgiu na sequência de certa permeabilidade defensiva. Não concordo com isso. A equipa de Villas-Boas está bem organizada, e é suficientemente agressiva a tentar condicionar o portador da bola e a efectuar a zona de pressão central. Se há, no momento em que Ramsey recebe a bola, algum espaço entre linhas é porque Mikel acabara de tentar tirar a bola a Gervinho, ligeiramente à frente. Mas veja-se que é Fernando Torres quem vem tentar fechar a linha de passe. O Chelsea não poderia estar mais compacto. O que aconteceu foi que o Arsenal soube arranjar os espaços de penetração certos, e nesse capítulo não há outra equipa igual em terras de Sua Majestade. Ramsey vem do espaço interior para receber e Gervinho, que antes atraíra Mikel para a zona dos médios, deixando o espaço entre linhas momentaneamente desprotegido, vai explorar esse espaço. Ramsey utiliza-o e Gervinho fica isolado, oferecendo o golo a Van Persie. Há quem diga que atacar pelo meio é errado, e que se devem explorar as alas para abrir brechas no bloco contrário. O Arsenal mostra que não é bem assim, que mesmo contra um bloco muito compacto e organizado, é possível, com toques curtos e sabendo aproveitar o espaço entre as diferentes linhas do adversário, forçar o bloco a abrir pequenos buracos pelo centro. Claro que isto, para resultar, tem de ser feito com muitos toques, com muito rendilhado. Atacando pelo meio, o truque consiste precisamente em tocar e devolver, para desposicionar o adversário, para se trazer os jogadores adversários para onde se pretende, criando espaços nas zonas que mais nos convêm.

O segundo golo do Arsenal é diferente e, embora não haja, como foi sugerido pelos comentadores da Sporttv, sempre empenhados em dizer disparates, problemas colectivos alguns, há um erro individual que compromete todo o lance. É pena que a câmara aérea, neste vídeo, abra apenas no momento em que Song faz o passe. Uns instantes antes serviriam para se verificar que a equipa de Villas-Boas está extraordinariamente bem posicionada, toda praticamente do lado esquerdo do campo, onde se desenrola a jogada, com todos os espaços bem fechados, utilizando a linha lateral para asfixiar os comandados de Wenger. A pressão é, também ela, bem executada, obrigando o Arsenal a recuar, por não ter soluções ofensivas nem espaço entre linhas a explorar. Colectivamente, a resposta da equipa não podia ter sido melhor, neste lance. Lampard obriga Djorou a dar no apoio recuado, Ramires obriga Song a rodar sobre si, mas depois aparece André Santos, o lateral esquerdo, completamente isolado na esquerda. Colectivamente, o Chelsea defendeu-se o melhor que podia. Não houve mau posicionamento, nem falta de agressividade, uma vez mais. Houve, contudo, um erro primário de Bosingwa, que foi atrás de Gervinho para o espaço entre linhas, não mantendo a linha defensiva, e desguarneceu o seu flanco, por onde o Arsenal acabou por entrar. Um passe do trinco que deixa o flanqueador na cara do guarda-redes, num lance de ataque organizado, só é possível com erros deste tipo. Bosingwa não cumpriu o seu papel no lance, que era de defender perto de Ivanovic, mantendo-se na mesma linha, e sentiu necessidade de ir atrás do seu opositor directo. Isso permitiu à equipa de Wenger, cujo lance ofensivo fora muito bem condicionado pela pressão colectiva dos jogadores do Chelsea, chegar facilmente a uma ocasião de golo. Bosingwa tem atributos atléticos notáveis, mas a má leitura que faz de grande parte dos lances continua a impedir que seja um lateral de eleição.

De resto, creio que ainda é cedo para tecer conjecturas acerca do futuro de André Villas-Boas. Mas passou já tempo suficiente para que se possa fazer uma análise do seu trabalho até ao momento. A intenção é clara e passa por tornar o Chelsea uma equipa mais competente na gestão da bola, mais dominadora com bola, mais autoritária. No entanto, parecem-me faltar soluções colectivas, no momento ofensivo, para que isso possa ser feito com mais eficácia. E parece também que, perante as adversidades, Villas-Boas não tem insistido muito para que a equipa se mantenha fiel aos seus princípios. A inclusão das dinâmicas de Mata no onze são, para já, a única boa notícia no futebol ofensivo da equipa. Torres não é um avançado que se sinta bem entre os centrais, e o Chelsea ainda não conseguiu tirar partido dos seus abaixamentos. O espaço entre linhas continua a ser pouco povoado (geralmente apenas por Mata) e a equipa, embora com mais bola, continua com índices de criatividade muitíssimo baixos. Talvez fosse útil, como resposta a este momento, perceber não só onde se errou, mas de que modo é possível melhorar. E aí a resposta pode estar precisamente no modo em que o Arsenal explora os espaços ofensivos. Neste momento, estas duas equipas parecem estar fora da corrida do título, que para já tem nos dois clubes de Manchester os mais sérios candidatos. Mas o campeonato inglês é longo e não é crível que as diferenças actuais não possam ser recuperadas. Colectivamente, a forma como o Chelsea defende, apesar dos cinco golos (não esquecer que houve erros individuais, escorregadelas e incidências esquisitas), é já muito boa, a meu ver, e a equipa tirará dividendos disso no futuro. Se for capaz de evoluir, em termos colectivos, no que diz respeito ao capítulo ofensivo, aproximando-se daquilo que o Arsenal faz, por exemplo, talvez possa, no final, estar de facto a discutir o campeonato inglês.

domingo, 23 de outubro de 2011

De quem é a Responsabilidade?

O lance é o do segundo golo do Braga no jogo que opôs a equipa comandada por Leonardo Jardim ao Feirense, este Domingo, e o exercício que proponho é a análise da perda de bola que origina o golo. Trago o lance à discussão precisamente porque a esmagadora maioria das pessoas, em lances deste tipo, nem pensa duas vezes: se aquele que transporta a bola a perde, seja por uma má decisão, seja por um mau passe, seja por que razão for, a responsabilidade deve ser-lhe imputada. Discordo, obviamente, desse tipo de generalizações, e há lances em que as responsabilidades não podem nem devem ser tão facilmente atribuídas. Este é um deles.



Começo por explicar a jogada, pois o vídeo não a mostra na sua totalidade. Diogo Rosado recebe um passe à queima, e acaba por se conseguir desenvencilhar da alhada em que o meteram, mas o pior estava ainda para vir. Obrigado a flectir para a esquerda, no meio de vários jogadores bracarenses, devia ter recebido apoios e linhas de passe imediatamente. Mas tal não sucedeu. No momento em que o vídeo começa, parece que Diogo Rosado teria tido tempo para jogar na frente, entre os dois médios do Braga, mas ao se libertar anteriormente (coisa que o vídeo não mostra) perdeu espaço de execução, e quando voltou a tocar na bola já só podia fazer um passe recuado ou lateralizado. Perante isto, o único apoio que tinha perto, o médio-defensivo Varela, inicia subitamente um movimento vertical, passando à frente de Diogo Rosado e forçando-o a ficar com a bola (é neste momento que o vídeo começa). Não sei o que passou pela cabeça de Varela, até porque a sua posição em campo implica o fornecimento de constantes coberturas e apoios recuados aos médios mais ofensivos, mas esse movimento absurdo foi decisivo não só para a perda de bola como depois para o deficiente posicionamento da equipa na resposta à perda. Mas há mais. Impossibilitado de jogar curto no colega que lhe deveria ter dado um apoio recuado, Diogo Rosado ficou apenas com uma opção de passe: precisamente a do lateral-esquerdo. Agora veja-se o que fez Stopira. Vendo terreno livre à sua frente, desatou a correr pelo flanco, e ignorou o mais básico dos princípios de um jogador sem bola: dar uma linha de passe. Em vez de oferecer um apoio lateral, permitindo que a bola entrasse no flanco, foi-se "esconder" no espaço em que a bola jamais entraria, pois a posição de Alan assim o inviabilizava. Diogo Rosado, obrigado a decidir rapidamente, acabou por respeitar o movimento inadequado do colega, e a bola embateu em Alan. Entre esse momento e o remate vitorioso do brasileiro pouco mais havia a fazer.

Como comecei por dizer, pouca gente hesitará na hora de atribuir responsabilidades. Diogo Rosado perdeu a bola, logo a responsabilidade foi dele. Quim Machado não o disse, mas referiu-se ao lance como uma "infelicidade nossa", e tenho quase a certeza que sei quem vai pagar as favas por essa infelicidade. Para os que gostam de fazer continhas e acham que o futebol é matemática, este é um lance como tantos outros. A Diogo Rosado atribui-se uma perda de bola, a responsabilidade por um desequilíbrio defensivo, e a Varela e a Stopira não se atribui nada, porque não tiveram participação na jogada. Até por isto, este é um bom lance para demonstrar a fragilidade das continhas de matemática. Na minha perspectiva, qualquer análise séria ao lance não pode deixar de perceber o erro grosseiro quer de Varela, quer sobretudo de Stopira. Talvez Diogo Rosado pudesse ter sido mais rápido a decidir, não sei. A jogada começou embrulhada e ele acabou por ter de reinterpretar tudo após sair do meio de dois adversários. Não era fácil ter sido mais rápido. O que não pode acontecer é a infantilidade que se seguiu, até porque ele não se precipitou e fez o melhor para a equipa, tentando manter a bola controlada. O primeiro colega passa-lhe à frente, em vez de ter ficado quietinho. Por alguma razão se ensina a miúdos de 6 ou 7 anos que nunca se deve passar à frente do portador da bola. Neste caso, não só Diogo Rosado deixou de ter atrás de si alguém a quem, em último caso, podia recorrer, como terá, com toda a naturalidade, ficado momentaneamente baralhado. Mas o pior de tudo, a meu ver, é o movimento do lateral. É que o jogo está a vir para a esquerda e é evidente que a bola vai ser endossada ao lateral. Mas este, em vez de esperar o passe, inicia uma corrida sem nexo e deixa o portador da bola sem outra solução que não improvisar. Não podendo fazer o passe lateralizado, que deixaria a bola nas costas do lateral, que já arrancara, Diogo Rosado tentou a última coisa que poderia ter tentado: fazer a bola passar por baixo de Alan, com todos os riscos implicados. O resultado foi o que se viu.

Como já se deve ter percebido, não só não concordo com a ideia de que a responsabilidade da perda de bola é unicamente de Diogo Rosado, como não acho que ela deva sequer ser repartida entre Diogo Rosado e os colegas que não lhe deram os devidos apoios. A responsabilidade é toda de quem falhou o fornecimento de apoios e ignorou as linhas de passe. Quem tem a bola tem a responsabilidade de decidir o melhor possível, claro. Agora, se os colegas impossibilitarem uma boa decisão, a responsabilidade de uma eventual má decisão é toda dos colegas. Se um jogador fica sem possibilidade para fazer um passe, se todos os colegas negligenciam aquilo que devem fazer quando estão sem bola, ou seja, fornecer linhas de passe, a responsabilidade nunca é do portador da bola. Quem vê futebol com pouca atenção, é natural que veja na acção de um passe apenas a decisão do jogador que faz o passe. Eu não penso assim. Um bom passe depende de uma boa decisão, de uma boa execução, mas evidentemente também das linhas de passe e das desmarcações dos colegas. Como levo bastante a sério a questão dos apoios e este é um assunto que me é bastante caro, não tenho quaisquer dúvidas em dizer o que vou dizer de seguida: com colegas idiotas, que não percebem sequer a absoluta necessidade de uma linha de passe, dificilmente um grande jogador adquire o reconhecimento que lhe é devido. Neste caso específico, o que o lance demonstra, para além de tudo o que já disse, é que o futebol não é um jogo assim tão simples de interpretar, e que muitas vezes aquilo que é mais evidente é, na realidade, totalmente falso. É por estas e por outras que as pessoas têm tantas opiniões equivocadas acerca do jogo, e é também por coisas deste tipo que métodos científicos de aferição de rendimentos individuais são ou muitíssimo imperfeitos, ou francamente desonestos.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Certezas (24)

Dizer que faz lembrar Kaká é pouco. Foi o jogador que mais me impressionou no recente mundial de sub-20, e impressionou-me sobretudo por conseguir misturar no seu jogo as competências técnicas com um nível de maturidade muitíssimo aceitável para a sua idade. Não era o jogador mais vistoso da sua selecção, nem aquele sobre quem recaíam maiores expectativas. Mas pareceu-me sempre o mais esclarecido de todos eles. Quando faltava o espaço, argumento necessário para que outros pudessem brilhar, a sua clarividência mantinha-se intacta. Se não o tinha, arranjava-o. Sempre de cabeça levantada, muito rápido a decidir e a executar, e veloz também a conduzir a bola, pareceu sempre poder modificar as coordenadas de um jogo, assim lhe apetecesse. Foi exactamente o que fez na final do torneio, onde por fim lhe foi prestado o devido reconhecimento. É apesar dessa final, e apesar das razões pelas quais acabou por ser reconhecido, que acho que o seu valor deve ser entendido. Marcar golos e contribuir de forma evidente para o sucesso da sua equipa foi apenas o somar de muitas outras coisas. Gostei sobretudo do privilégio pelo passe vertical, sempre a procurar os apoios frontais dos colegas, e a preocupação em solicitar os companheiros nos espaços entre linhas. Não há muitos jogadores, mesmo os mais dotados tecnicamente e os mais arrojados, que optem tantas vezes pelo passe vertical rasteiro para progredir. Normalmente, quando os espaços estão fechados, a opção é circundar o bloco adversário, fazer a bola chegar aos extremos de modo a que estes desequilibrem individualmente ou de modo a que, esperando pelo lateral, possam criar situações de superioridade numérica no flanco. Ele, porém, pareceu sempre perceber que há mais soluções do que as óbvias. E pareceu sobretudo perceber que progredir pelo centro é sempre uma opção válida, desde que se saiba como. Tivesse nos colegas companheiros capazes de entender o jogo tão bem como ele e teria dado ainda mais nas vistas. Não sei o que o futuro lhe reserva, principalmente porque o futuro de jogadores que se destacam pelos seus atributos intelectuais é sempre mais incerto do que o futuro de outro tipo de jogadores. Acho que tem qualidade mais do que suficiente para vir a ser dos melhores jogadores do mundo daqui a uns anos, mas não sei se isso acontecerá incondicionalmente. Enquanto que jogadores mais individualistas e mais vistosos podem vingar em praticamente qualquer equipa, desde que, para isso, mereçam a confiança do treinador que apanharem, jogadores como este, jogadores que, apesar de tecnicamente evoluídos, fazem uso sistemático das suas qualidades colectivas e privilegiam acima de qualquer outra coisa a criatividade, estarão sempre dependentes do tipo de colectivo em que acabarem inseridos. Vejamos então que caminhos desbravará o talento de Óscar...

domingo, 2 de outubro de 2011

O Fundamentalismo da Transição Rápida

O Professor Jorge Castelo, que nos intervalos de pôr os alunos a fazer pesquisas para os seus novos livros vai à televisão despejar banalidades, sugeriu esta semana, enquanto jogava o Benfica, que Nico Gaitán, por conseguir meter a bola onde quer, tinha um pé que parecia uma colher. Ora, eu consigo perceber a metáfora que consiste em dizer que alguém rematou "em colher", mas um pé em forma de colher é outra coisa. Ainda para mais quando, alegadamente, a razão pela qual um pé se parece com uma colher é a precisão com que o jogador a quem pertence o pé-colher põe a bola onde quer. Não consigo muito bem perceber como é que uma colher é um instrumento de precisão, mas se calhar sondar a mente de Jorge Castelo também não é a melhor maneira de ficar a sabê-lo. Enfim, colheradas à parte, aborreceu-se às tantas Jorge Castelo com um ataque mal conduzido pelo Benfica, segundo a sua opinião. O aborrecimento de Jorge Castelo deveu-se ao não aproveitamento do espaço disponível, e à pouca velocidade imprimida no lance. Segundo este extraordinário professor, todos os lances em que se recupera a bola devem ser conduzidos o mais velozmente possível. Ora bem, é aqui que me parece interessante parar um pouco, pois é uma opinião que me parece cada vez mais consensual, e absolutamente mal fundamentada.

A famigerada "transição", isto é, a passagem de uma situação ofensiva para uma situação defensiva, ou vice-versa, está, nos dias que correm, excessivamente valorizada. Não são poucos os treinadores e os opinadores que concordarão com a ideia-base de Jorge Castelo de que, havendo a possibilidade de partir rapidamente para o ataque, é isso que uma equipa deve fazer. Como já se deve ter percebido, não concordo particularmente com a ideia. Sim, uma transição rápida permite aproveitar os espaços que a equipa que perdeu a bola concede enquanto não recupera posicionalmente. Mas às custas de quê? A meu ver, os fanáticos da transição (e são muitos) raramente são capazes de calcular os custos de um comportamento que prime pelo aproveitamento dos momentos de transição. Acham que há uma vantagem grande em aproveitar os desequilíbrios defensivos que se originam nesses momentos, e acham também que não há vantagem nenhuma em não aproveitá-los. Não penso assim. A meu ver, ter por princípio imprimir velocidade sempre que se recupera a bola é um disparate. Há ocasiões em que, naturalmente, a melhor opção é fazê-lo, e há outras em que não, havendo para isso que ter em conta várias coisas. Por exemplo, apesar de o adversário estar desorganizado, será útil à equipa que recupera a bola utilizar uma transição rápida numa situação em que coloca apenas dois jogadores no lance contra quatro defesas? Será vantajoso procurar uma transição rápida que implique que o jogador que receba o passe mais longo o receba junto a uma linha, com um defesa por perto, e sem apoios próximos? Será de todo aconselhável passar de um momento defensivo a um momento ofensivo só com um ou dois passes, implicando isso lances de ataque de definição rápida, e consequente conclusão ou perda de bola? Uma equipa que, por definição, utilize transições rápidas, fica usualmente refém do que conseguir fazer nesses lances, ou seja, refém da inspiração dos jogadores que colocar nessa acção. Lances de transição são, por norma, lances com mais espaço, lances em que quem defende o faz com menos jogadores, em menos linhas, e com menos capacidade de cobertura, mas são também lances em que quem ataca tem menos referências ofensivas e menos apoios recuados consolidados. Se oferecem a vantagem a quem ataca de o fazer com mais espaço do que se o adversário estivesse arrumado posicionalmente, possuem a desvantagem de consistir em lances em que se privilegiam as capacidades individuais de dois ou três atacantes em detrimento de competências colectivas.

Ganharia o meu respeito o treinador que um dia viesse à televisão dizer que a estratégia da sua equipa passava essencialmente pelo melhor aproveitamento possível de transições lentas. A lentidão parece hoje, a muita gente, um defeito que tem de se erradicar de uma equipa. Mas há virtudes na lentidão. Uma transição que abdique de ser feita em rapidez assegura que o portador da bola fica com mais gente perto de si, que a posse de bola se mantém do lado de quem acabou de recuperá-la, que é o adversário quem vai ter de se desgastar para voltar a ter bola. Sim, abdicar de atacar em transição implica atacar mais vezes com o adversário organizado defensivamente. Mas isso não é necessariamente mau. Para além de considerarem que o risco é menor, as pessoas que preferem atacar em transição acham invariavelmente que é mais fácil atacar quando o adversário tem menos jogadores atrás da linha da bola e ainda não se organizou defensivamente. Ora, o equívoco está precisamente em presumir que é mais difícil criar situações de golo em organização do que em transição. Subjazem a este equívoco dois juízos errados: 1) quanto menos jogadores envolvidos numa jogada, mais espaço para um atacante se desmarcar há, logo é preferível uma situação de 3 para 3 do que uma situação de 6 para 6; e 2) que um passe, uma recepção e uma finalização em situação de transição são exactamente iguais a um passe, a uma recepção, e a uma finalização em organização. Deixem-me refutar estes dois juízos no parágrafo seguinte.

Em relação ao primeiro dos juízos, devo começar por dizer que, a menos que haja uma movimentação extraordinariamente bem feita da parte dos atacantes (e são raríssimas as equipas no mundo que o conseguem fazer sistematicamente), dificilmente uma situação de superioridade numérica de, por exemplo, 4 para 3 se traduz uma situação de perigo. Num 2 para 1, ou num 3 para 2, é diferente, mas numa situação de 4 para 3 já há defesas suficientes para congelar maior parte das intenções atacantes do adversário. O que quero com isto dizer é que a capacidade de desmarcação de um conjunto de atacantes não depende do espaço de que dispõem nem da quantidade de defesas que cobrem esse espaço. O erro está, obviamente, em presumir que sim. Numa situação de 6 para 6, dir-se-ia, há mais defesas e menos espaço, logo há menos sítios para onde os avançados se podem movimentar a fim de receber uma bola. Isso não é verdade. Há mais defesas e há menos espaço, mas há também mais avançados envolvidos no lance. Logo, a situação é mais complexa. E o truque é saber utilizar essa complexidade a seu favor. Quem defende que é mais fácil atacar em transição, está apenas a considerar a menor complexidade do lance para os seus avançados. Mas o lance também é menos complexo para os defesas. E é isso que é negligenciado. Em ataque organizado, o que uma equipa que tem a bola deve fazer é criar sistematicamente situações de superioridade numérica na zona da bola. Com isso, terá melhores condições para continuar a ter a bola, evitará mais facilmente a pressão defensiva do adversário, e arrastará defensores para onde lhe convier. Fazendo isto bem, abrir-se-ão naturalmente os espaços certos para que os atacantes se possam desmarcar. E tudo isto sem a vertigem, a incerteza e o risco de perda de bola que envolve uma situação de transição. Sim, por norma, o público exalta-se sempre que assiste a uma transição com 3 para 3. Mas o público não é um bom barómetro. É claro que, numa situação de 3 para 3, um passe pode chegar para criar uma situação de golo, ao passo que, numa situação de 6 para 6, um passe normalmente não é suficiente. E é isso que o público interpreta. O que o público não interpreta é que, por norma, o sucesso desse único passe que basta para criar uma oportunidade de golo, numa situação de 3 para 3, é muito mais incerto do que o sucesso de qualquer passe num lance de ataque organizado. O que estou a defender é que o público não interpreta que o lance é mais fácil de resolver, mas sim que pode ser resolvido mais depressa. A exaltação nas bancadas não mede possibilidades de êxito, mas sim a iminência do golo. E uma coisa não está necessariamente relacionada com a outra. O equívoco do segundo juízo é mais fácil de explicar. Numa situação de transição, a jogada é mais rápida, os passes são normalmente mais longos, a precisão que se exige é maior, etc. Todo o passe ou recepção que não seja óptimo compromete imediatamente o lance, coisa que não acontece numa situação de ataque organizado, que permite sempre a possibilidade de recomeçar a jogada. Numa situação de transição, portanto, apesar de haver mais espaço, há também uma menor margem de erro, quer seja em cada um dos passes, em cada recepção, ou mesmo em cada finalização efectuada. São lances que mais rapidamente originam uma ocasião de golo, mas não necessariamente lances de maior probabilidade de êxito. A excelência técnica requerida é superior e, naturalmente, o sucesso da jogada é mais incerto.

Concluo assim afirmando que uma equipa que ataca preferencialmente em transição, ataca com mais espaço, arrisca menos ao não integrar tantos homens no processo ofensivo, mas, em contrapartida, não só perde a bola com mais frequência, como também não promove situações de complexidade elevada, não cria necessariamente situações de golo mais favoráveis, e fica mais dependente da inspiração dos seus atacantes e do rigor e da precisão com que estes executarem os lances de que dispuserem. Utilizar transições rápidas por princípio parece-me, por isso, um fundamentalismo sem sentido, assente em premissas erradas. Em meu entender, numa equipa inteligente, numa equipa que se preocupe em depender o menos possível de factores incontroláveis, como a sorte, o erro do adversário, ou a inspiração, a transição rápida deve ser um recurso e não um princípio; deve ser utilizada criteriosamente, em condições adequadas, e não necessariamente com a finalidade de criar situações de golo. Além de, como argumentei, me parecer que não são situações que criem oportunidades de golo mais favoráveis (têm apenas a potencialidade de criar situações de golo mais depressa), não deviam sequer ser encaradas apenas tendo em vista a proximidade (em termos de quantidade de passes) com o golo. O objectivo do jogo, como há muito defendo, não é o golo, mas jogar bem a cada instante. Se assim é, aproveitar o espaço que existe no momento de transição só é uma boa opção se permitir que o portador da bola, no momento seguinte, continue a possuir condições para jogar bem. E a menos que seja uma situação de superioridade numérica clara, sobretudo de 2 para 1 ou de 3 para 2, ou uma situação de 3 para 3 ou de 4 para 3 conduzida pelo corredor central, dificilmente a situação promoverá uma oportunidade de golo interessante. Utilizar a transição rápida como recurso implica por isso uma competência colectiva normalmente negligenciada: mais importante do que saber fazer transições rápidas, uma boa equipa deve saber identificar situações em que é útil fazer uso de uma transição rápida. E, já agora, por que não utilizá-la com outros fins, meramente para obrigar o adversário a deslocar-se e a desgastar-se, esperando depois pelos apoios para iniciar uma situação de ataque organizado? Veja-se de que modo o Barcelona de Guardiola utiliza os momentos de transição, por exemplo, e como raramente se preocupa em chegar rapidamente a uma situação de golo, mesmo quando tem espaço à sua frente para o fazer. O Barcelona "trava" muitas das suas transições não apenas porque se sente mais confortável em ataque organizado, mas sobretudo porque identifica com relativa facilidade todas as desvantagens de tentar aproveitar essas situações. Atacar desenfreadamente assim que se recupera a bola, apenas porque nesse momento o adversário não está organizado e há mais espaço, é por isso um erro teórico cuja correcção só está ao alcance de alguns. No futebol actual, poucos são os treinadores, e poucas as equipas, que enjeitem deliberadamente esse momento do jogo. Os que o fazem e, sobretudo, os que o fazem percebendo por que o fazem, estão porém mais perto de conseguirem construir uma equipa verdadeiramente adulta, uma equipa que percebe que, quanto mais complexidade puser na partida, mais as diferenças de competência em relação ao adversário se tornam evidentes.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Ricardo Carvalho: o Patriotismo e o Respeitinho

Estava à espera de alguém com uma opinião tão lúcida como esta dissesse alguma coisa para falar do assunto, mas pelo vistos estava difícil. Vamos por partes. Há duas razões para toda a histeria em torno do caso, e duas causas para que todos, ou quase todos, apontem agora o dedo ao jogador português: a falta de respeito enquanto membro de uma equipa, e essa coisa esquisita a que chamam patriotismo. Sobre a falta de respeito, falarei no final, até porque é sobre isso que há mais a dizer, e é sobre isso que todas as análises não-hipócritas ao caso devem incidir. Mas, para já, quero falar em patriotismo. Eu percebo por que razão é que um bolo, para saber bem, precisa de levar açúcar. Também percebo que, para cantar, é preciso ter boa voz. O que eu não percebo, e dificilmente virei a perceber, é por que razão é que a qualidade de uma pessoa depende, entre outras coisas, evidentemente, dessa virtude a que chamam patriotismo. Não sou, nem nunca fui, que me lembre, patriota. E acho, como Oscar Wilde achava, que o patriotismo é a virtude dos infames. Por que razão absurda é que uma pessoa tem de nutrir sentimentos pela nação em que, por mera contingência, nasceu? Não percebo, nem nunca percebi, o que é o amor à pátria. Honestamente. Nutro sentimentos por um ou outro sítio onde morei, por uma cidade, vá, pelas pessoas com quem me cruzei, etc. Mas pela pátria? Eu nem sei o que a pátria é! Sei que tem uma bandeira, que tem um "território", que tem oito ou nove séculos de História. Tirando isso, pouco ou nada sei. Ser, por outro lado, uma entidade abstracta, também não ajuda. Como é que se tem amor por coisas abstractas? Até consigo perceber que alguém possa ter amor por um escaravelho, por uma mesa de cabeceira, sei lá. Acho difícil é ter amor pela filosofia de Platão, ou pelo conceito de Infinito. A meu ver, o patriotismo não é senão uma parvoíce religiosa que, como todas as parvoíces religiosas, serve meramente para domesticar os impulsos anti-gregários das pessoas. Como já devem ter percebido, não acho que faça qualquer sentido o argumento de que o que Ricardo Carvalho fez foi errado porque faltou ao respeito à pátria, precisamente porque a pátria não é nada. Como é que se falta ao respeito a uma coisa que não existe? Aliás, ganharia o meu respeito o jogador que, em início de carreira, renunciasse à selecção por achar hipócrita representar algo pelo qual não nutrisse qualquer tipo de sentimentos. Isto tudo para dizer que as pessoas que acham que o Ricardo Carvalho desrespeitou os portugueses porque desrespeitou a selecção se enganam ao achar que há algum tipo de relação entre a selecção e o país. Pois não há. No fundo, isto não passa de um argumento puritano, um argumento que consiste em achar que existe sacralidade no mundo, um argumento de gente católica que, não sabendo muito bem porquê, acha condenável o comportamento do jogador.

Católico é também o "respeitinho" com que dizem que todos se devem comportar. É outra das ideias que nunca me entrou na cabeça, mas admito que faça ligeiramente mais sentido que o argumento do patriotismo. Para muitos, Ricardo Carvalho é um subordinado e, como todo o subordinado, deve respeitar os superiores. Pois é esta relação hierárquica que não faz sentido nenhum, a meu ver. O respeito não é do tipo de sentimentos que se tem sem qualquer espécie de reciprocidade. Não acredito mesmo que haja uma única pessoa que respeite quem não a respeita. Por isso, não é o tipo de coisa que se possa exigir numa relação hierárquica. Numa relação desse tipo, pode exigir-se obediência, nunca respeito. E é isso que está errado nesta história toda. Para mim, não se tratou de um problema de falta de respeito, nem do jogador para com a equipa técnica, nem da equipa técnica para com o jogador. Tratou-se, sim, de um conflito acerca de um ideal de liderança. Ao chegar a Inglaterra, disse Mourinho que os jogadores ingleses, por oposição aos latinos, que precisam de acreditar na competência do líder, são obedientes por natureza e aceitam a liderança com base numa relação hierárquica estipulada a priori. Significa isto que há, pelo menos, dois tipos de liderança bem distintos: uma liderança de tipo militar, com superiores hierárquicos e subordinados de quem se exige obediência absoluta e cumprimento de ordens, e uma liderança menos conservadora, cooperante, assente na ideia de que os liderados têm um papel a desempenhar na liderança. Conta ainda Mourinho que, desde cedo, percebeu que o fosso que se criava entre treinador e jogadores não era benéfico, que ao contrário de Van Gaal, que não se relacionava com os jogadores senão enquanto general das tropas, ele ia na parte de trás do autocarro com os jogadores, confraternizava com eles, partilhava problemas, etc.

É fácil de perceber que estou a distinguir o tipo de liderança de Paulo Bento do de Mourinho, e que considero que Paulo Bento lidera muito mais à Van Gaal. Para Mourinho, nada excede ou está acima do grupo, e nada importa mais que o grupo. Paulo Bento, pelo contrário, lidera pela força, pela exigência incondicional, pela imposição de regras. Mesmo que as regras, como o próprio já o disse, não sejam impostas ditatorialmente, mas confiando e responsabilizando. Garantiu Paulo Bento que não entra nos quartos dos jogadores, para ver se estão deitados às horas certas, que não controla o que comem, etc. Mas isso não faz dele um líder menos autoritário. Não são as regras que dita, mas a posição de superioridade em que se coloca que fazem dele o tipo de líder que é. Quero com isto dizer que o tipo de liderança de Paulo Bento sempre me pareceu deste género: tem pulso forte, exige acima de tudo respeito e profissionalismo, é contra vedetismos, etc. Não que isto seja mau por si, mas há jogadores que têm feitios que não são compatíveis com isto. E, muito sinceramente, acho que este tipo de liderança deixou de ser a mais adequada. O jogador de futebol não é hoje o que era há duas ou três décadas, tem uma exposição mediática, um orgulho e uma vaidade que não tinha antes. E, sobretudo, tem opiniões próprias, está muito mais informado, percebe muito melhor intenções e competências técnicas. Perante este cenário, o único tipo de liderança que, a meu ver, faz sentido, nos dias que correm, é uma liderança que se exerça pela competência. Os jogadores precisam de sentir que aquele que conduz o leme tem competência para o fazer, que não faz as coisas porque lhe apetece, porque tem autoridade para as fazer, porque tem "feelings", mas que dá satisfações, justifica decisões, pede conselhos, que exige dos jogadores que compreendam as suas opções, os seus exercícios, as suas estratégias; os jogadores precisam, actualmente, de um treinador que mantenha com eles uma relação horizontal, que se coloque ao nível deles e assuma que os próprios jogadores, porque são eles que têm de interpretar no campo o que lhes vai ser pedido, podem ter opiniões melhores, podem sentir coisas que o façam mudar de estratégia, etc.

Paulo Bento não é nada disto. Acha, porque era assim que as coisas funcionavam há uns anos, porque foi assim que foi educado enquanto jogador, que um treinador não tem que dar satisfações, que um treinador está numa posição hierárquica superior, que a relação entre jogadores e treinador é uma relação vertical. Creio que esse tipo de liderança pode ter efeitos positivos sobretudo em jogadores humildes, em jogadores a quem lhes interesse ver um líder forte, um líder inabalável, um líder em quem possam sentir fé. Não creio, porém, que tenha o mesmo efeito em jogadores mais inteligentes, em jogadores menos conservadores, em jogadores com opiniões mais bem formadas e personalidades mais fortes, em jogadores que creiam mais na competência do que na fé. Neste tipo de jogadores, mais irreverentes por natureza, não creio que o tipo de liderança que Paulo Bento preconiza funcione bem. Não foi por acaso que se incompatibilizou com quem se incompatibilizou no passado, precisamente os jogadores do Sporting menos capazes de aceitar a sua liderança incondicional: Beto, não por irreverência, mas por ser o capitão e estar acostumado a certas regalias, mas essencialmente Carlos Martins e Vukcevic, jogadores mais irreverentes, com feitios especiais, que precisam de estímulos de outro tipo. Paulo Bento "premiou" frequentemente excelentes exibições de Vukcevic sentando-o no banco no jogo seguinte. Não querendo discutir opções técnicas (e terá sido por uma questão de opção técnica), isso só pode funcionar com alguém que aceita servilmente as ordens de um superior. Com jogadores de personalidades tão vincadas, é natural que não desse bom resultado. E é aqui que é importante chegar: nem sempre a opção técnica deve ser o primeiro critério de um treinador. Quando a opção técnica põe em causa a integridade do grupo e a confiança no líder, então talvez não seja a melhor opção técnica. Nesta situação concreta, Paulo Bento teria de "mostrar" ao jogador que tinha gostado do que ele tinha feito pondo-o a jogar. Compare-se com o exemplo de Benzema, no Real Madrid. Mourinho teve de recorrer ao francês na segunda metade da época passada, por força da lesão de Higuaín. O francês demorou a justificar a aposta, mas acabou por ser importante para a equipa, sobretudo na fase final da temporada. Este ano, voltou a começar bem a época. Mourinho não pode, simplesmente, tirá-lo sem mais nem menos da equipa, apesar de Higuaín, no passado, lhe ter dado garantias de um rendimento superior. Estaria a minar a confiança que o jogador deposita em si, e até a confiança do grupo.

Quando Paulo Bento fala em responsabilidade, esquece-se que a responsabilidade não é unilateral, que têm tantas resposabilidades os jogadores como os treinadores. O seu tipo de liderança é mais autoritário do que imagina precisamente porque "exige" responsabilidade incondicional, ou exige-a a troco de uma alegada "confiança" no atleta. O problema é este, é não perceber que os atletas se estão borrifando para a gratuidade da "confiança". Aquilo por que deveria trocar a responsabilidade deles não era pela liberdade que lhes concede, mas sim pela sua própria responsabilidade. Para exigir que os jogadores lhe devam responsabilidade, precisaria de lhes demonstrar que ele próprio é responsável. E isso faz-se com pequenas coisas, todas elas intimamente relacionadas com competências de treinador: reconhecendo de que modo pode estimular cada atleta, percebendo particularidades de feitios, tratando cada jogador de forma diferente, consoante a sua personalidade, conversando, justificando as suas decisões, pedindo opiniões, dando satisfações, aproximando-se dos jogadores, entrando na sua intimidade, falando acerca dos seus problemas, etc. Com Ricardo Carvalho, por exemplo, talvez tivesse bastado conversar, talvez tivesse bastado informá-lo previamente acerca das intenções da equipa técnica, talvez tivesse bastado explicar-lhe quais as razões técnicas pelas quais se achava melhor jogarem Pepe e Bruno Alves. Negligenciou-se a personalidade individual de um atleta e deu no que deu. E não foi por acaso que aconteceu com Ricardo Carvalho: tratava-se de um jogador inteligentíssimo, com uma personalidade muito forte, e certamente com opiniões muito claras acerca do jogo; tratava-se de um jogador habituadíssimo (cresceu assim) à liderança de Mourinho, que é o completo oposto da de Paulo Bento. Eu não advinharia isto, mas agora que aconteceu, parece-me absolutamente natural que tenha acontecido. Há um conflito evidente de gerações, e um conflito acerca de ideias de liderança. A falta de respeito de que Ricardo Carvalho se disse vítima não foi originada por não ser opção para o Chipre; foi por essa decisão ter sido tomada arbitrariamente, sem que se lhe dessem satisfações, e principalmente por perceber que o treinador acha, por princípio, que os jogadores têm de respeitar as suas decisões e não merecem saber as razões dessas decisões. Mais do que uma questão de falta de respeito (quer do treinador para com o jogador, quer do jogador para com o treinador) creio que este episódio foi resultado de uma incompatibilidade acerca de um ideal de liderança.

Muito resumidamente, usar o patriotismo e o respeitinho para argumentar que Ricardo Carvalho se comportou indevidamente é um equívoco. E a mim irrita-me que a opinião pública seja tão favorável, neste caso, mas também na grande maioria destes casos, ao treinador e não ao jogador. Sempre que há episódios de insubordinação, o réu é invariavelmente o jogador. Eu, que nunca fui treinador, mas que tenho uma experiência, enquanto jogador, suficientemente consolidada, fico normalmente do lado dos jogadores, neste tipo de casos. E isso não por me conseguir colocar no papel de uns e não de outros, mas porque percebo a frustração que existe em de ter de reconhecer liderança a alguém só porque sim. De um treinador um jogador inteligente espera competência, ideias, e muita responsabilidade. Se, em vez disso, percebe autoritarismo, caprichos e obsolescência, é natural e absolutamente legítimo que lhe perca o respeito. Este caso explica-se muito mais por estas coisas do que propriamente por um acto irreflectido e por uma atitude injustificável.

P.S. Para a opinião pública que, apressadamente, se colocou do lado de Paulo Bento, tenho uma pergunta que talvez incomode: e se, em vez de Ricardo Carvalho, a coisa tivesse sucedido com Cristiano Ronaldo? Eu sei que a probabilidade de o Ronaldo ir para o banco é menor, mas imaginem a possibilidade. Imagine-se que passava pela cabeça de Paulo Bento deixar Ronaldo no banco porque achava que era melhor opção ele não jogar, e imagine-se que Ronaldo, não gostando da ideia, até porque o treinador não a justificara, decidia abandonar o estágio. Muito sinceramente, gostava de ver se, nessa altura, vinham com patriotismos e respeitinhos. Aliás, actos de insubordinação de Ronaldo foram coisas que não faltaram na era de Queiroz. E não me lembro de alguém se colocar do lado de Queiroz nessa altura.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Abidal, Fabregas, a Vaidade e o 343 Losango de Guardiola

Queria começar por dizer que este texto é uma fusão de dois outros, um sobre a vaidade de um jogador de futebol, outro sobre o sistema táctico testado por Guardiola no primeiro jogo do campeonato. Tendo em comum o serem sobre o Barcelona, aproveito para falar das duas coisas ao mesmo tempo. Começando pela questão da vaidade, creio que haveria bastante a dizer nesse sentido. Vou tentar ser o mais resumido possível. Para muitos, sobretudo para aqueles que têm predilecção por ideais católicos, a ideia de um jogador vaidoso é pouco agradável. A vaidade é, para a grande maioria destas pessoas, sinónimo de egocentrismo, de falta de humildade e de incapacidade de sacrifício. Não concordo com isto, embora ache que há certos tipos de vaidade que signifiquem exactamente isso. Para mim, a vaidade é das coisas mais importantes num futebolista, para não dizer em qualquer pessoa que tenha ambições de qualquer tipo. Não obstante, há jogadores que usam a vaidade como um fim em si mesmo, e nestes, de facto, o atributo não é minimamente saudável: um caso flagrante será o de Mario Balotelli.

Não é destes, porém, que pretendo falar. Podia falar do caso de Diogo Rosado, jovem jogador emprestado pelo Sporting ao Feirense, que ainda há pouco mais de uma semana deu um recital na Luz, mas creio que, também nisto, é em Barcelona que os exemplos melhor frutificam. Compare-se o futebol de Eric Abidal há dois anos com o seu futebol actual. Tirando as parecenças morfológicas, eu diria imediatamente que se trata de outro jogador. A "lavagem cerebral" a que foi sujeito modificou-o radicalmente. E estamos a falar de um jogador na fase final da sua carreira profissional, um jogador que acumulou hábitos e vícios ao longo de todo o seu percurso. Abidal era um lateral certinho, forte do ponto de vista atlético e muito concentrado. Subia pela certa, arriscava pouco, e garantia à equipa solidez. Nos primeiros dois anos de Guardiola, não se modificou significativamente, e cheguei a sugerir que Maxwell era melhor opção que o francês, sobretudo pelo jogo interior que possibilitava. No final da segunda época e, sobretudo, no início da terceira, Maxwell "ganhou" o lugar de lateral esquerdo, e Abidal passou a ser mais utilizado como central do que como lateral. Penso que essas duas coisas terão influenciado decisivamente a mente de Abidal. Primeiro, terá percebido por que razão um jogador francamente mais débil do ponto de vista físico e menos sólido defensivamente lhe tinha roubado o lugar; depois, forçado a jogar numa posição que não era a sua, obrigado a pensar de uma maneira diferente, uma vez que o Barcelona força a saída pelos seus centrais e exige que estes entreguem sempre jogável, Abidal terá começado a modificar os seus hábitos e as suas crenças. Sensivelmente a meio da época passada, e ainda a central, Abidal revolucionou-se. E, de lá para cá, tem sido sempre a melhorar. Agora, joga com uma classe que não tinha, tanto a central como a lateral, deixou de esticar o jogo no extremo ou de devolver ao central; agora, fica com ela, vem para dentro, joga no meio, provoca o adversário que o vem pressionar, arrisca dentro da área, faz "cabritos" no meio de uma multidão. Num ano, motivado pelas circunstâncias que referi acima, Abidal compreendeu que lhe faltava, para poder servir esta equipa ao máximo, adquirir uma vaidade que nunca tivera. E hoje é, de longe, o melhor lateral esquerdo do plantel (para não ir mais longe), porque percebeu que este modelo de jogo exige de cada uma das suas unidades um certo envaidecimento.

Outro bom exemplo é o de Cesc Fabregas. Quem via Fabregas a jogar o ano passado, e sobretudo se se tivesse deliciado com o seu futebol no passado, percebia nele uma tristeza qualquer. A sua enorme qualidade continuava lá, mas havia qualquer coisa em Fabregas que se atrofiara. A meu ver, o espanhol foi melhorando progressivamente o seu futebol precisamente até à época transacta. É verdade que foi fustigado por algumas lesões, e que a época não lhe correu da melhor maneira, mas a sua evolução estagnou, a meu ver, por outras razões. É sabido que Fabregas ambicionava voltar à Catalunha no início da época passada, e que ter permanecido em Londres não o terá deixado satisfeito. Mas o que perdeu, penso, foi uma certa alegria em jogar. E perdeu-a porque percebeu que o seu futebol só poderia evoluir verdadeiramente no ambiente que o Barcelona de Guardiola propiciava. O que desapareceu, na época anterior, foi a sua vaidade de jogar, a vaidade de ser cada vez melhor. E desapareceu, em meu entender, porque percebia que, para se tornar cada vez melhor, para poder potenciar ao máximo as suas qualidades, teria de mudar de ares. Ainda que o Arsenal seja das equipas que mais privilegia o tipo de futebol de que gosta, era na Catalunha que iria encontrar dez almas-gémeas, dez colegas dentro de campo que compreendem tudo o que faz. Sem a vaidade. que só jogando num modelo como o do Barcelona, poderia voltar a ter, Fabregas acomodou-se, e, não fosse a mudança para Espanha esta época, acredito que pararia de evoluir. Na Catalunha, ainda é cedo para perceber até onde pode chegar. Mas é certo que está no local mais propício para continuar a sua afirmação enquanto jogador.

Sobre vaidade, é tudo. Ou quase tudo. Podia acrescentar, fazendo a ponte do tema anterior para o que se segue, que só com onze jogadores a quem foi incutido um certo tipo de vaidade era possível uma equipa jogar, com sucesso, num esquema táctico tão arrojado como o 343 losango. À demonstração de força do Real Madrid no sábado, com uma vitória categórica por 6-0 no terreno do Saragoça (e foram 6, mas podiam ter sido 10), uma demonstração de força que, apesar de tudo, carece de consolidação, uma vez que o adversário facilitou em demasia o trabalho dos merengues, respondeu o Barcelona com uma das maiores lições tácticas dos últimos 20 anos. Pela frente, não tinha um adversário desorganizado, que defendia apenas com cinco jogadores, que não formava uma linha defensiva, que não tinha preocupações com coberturas, que não juntava os sectores, como o teve o Real Madrid no dia anterior. Tinha, sim, o quarto classificado do ano passado, uma equipa muito bem organizada, com excelentes princípios de jogo, com os sectores bem juntos, colectivamente forte. E o que fez Guardiola? Aproveitou as ausências forçadas de alguns titulares do sector defensivo para testar o seu 343, com que jogará certamente muitas vezes esta época. Os resultados do teste, adiante-se, não poderiam ter sido melhores.

O sistema não é um 343 vulgar, ou seja, um 343 em linha, nem o 343 utilizado por Marcelo Bielsa na selecção chilena, que, embora em losango, utilizava alas. É um 343 losango à Cruyff, no Barcelona, e à Van Gaal, no Ajax, um sistema que caiu em desuso nos últimos 15 anos, principalmente, a meu ver, pelos excessivos riscos de uma linha de 3 defesas, e pela natural evolução táctica do jogo. Hoje em dia, com a evolução que o jogo teve, só uma equipa muito competente a pressionar pode dar-se ao luxo de jogar neste esquema sem correr sistematicamente o risco de ver os avançados adversários enfrentar os seus 3 defesas. Por essa razão, desapareceram praticamente os sistemas tácticos com 3 defesas. Mas, se há equipa em que isso parece poder ser uma realidade, essa equipa é o Barcelona. Mas quais são as vantagens deste sistema táctico, em relação ao habitual 433, ou 442 losango? A meu ver, são vários. Não falando da saída de bola, aquando do pontapé de baliza, que passa a ter pontos de referência diferentes, creio que é a nível de pressing e a nível de formação de apoios em zonas mais ofensivas que se encontram as principais vantagens. Neste esquema, a pressão é mais alta, feita com mais homens na zona da bola, e é mais eficaz a constranger toda e qualquer circulação baixa. Contra equipas que preferem sair a jogar, que gostam de trabalhar o jogo, como o Villareal, penso que os resultados só podem ser positivos, como foram. Falta testar contra equipas que joguem mais directo, contra adversários que não tenham a preocupação de construir desde trás. Mas mesmo aí, penso, a profundidade não fica mais desguarnecida por se jogar com uma linha defensiva de três jogadores e não com uma linha de quatro, desde que a equipa recupere toda em bloco. Além disso, e porque as coisas estão ligadas, ao jogar assim o Barcelona "arrasta" sistematicamente mais adversários para zonas recuadas, tornando menos eficaz a resposta destes quando recuperam a bola. No que diz respeito aos apoios, em situação ofensiva (e aqui parece-me, de facto, a grande virtude do sistema), o Barcelona passa a jogar não só com um jogador a entrar nos espaços entre linhas, como até aqui, mas com dois. Formando um losango no meio-campo, ganha uma estrutura de apoios de maior densidade, e torna ainda mais fácil o futebol de toque curto da equipa, em organização ofensiva, e a tendência para fazer da bola um engodo. Contra o Villareal, foi assustador o modo como a equipa encostou literalmente o adversário à sua área, mesmo tendo este o desígnio de não fazer descer a linha defensiva abaixo de um determinado ponto. O Barcelona só jogou 60 minutos (a partir daí descansou com bola), acumulou uns impressionantes 71% de posse de bola contra a melhor equipa espanhola, a seguir aos catalães, a trabalhar a bola, venceu por 5-0, mas, mais do que isso, empurrou ostensivamente uma das equipas mais bem preparadas em termos tácticos para onde bem lhe apeteceu. O domínio foi, por isso mesmo, avassalador. Mais até do que esta equipa já nos tinha habituado. É uma demonstração inequívoca de força, sim, mas, mais do que isso, é mais uma lição táctica, mais uns quantos preconceitos quebrados, mais uma manifestação de como há ainda caminhos por desbravar, em termos conceptuais, no que diz respeito ao jogo.

sábado, 27 de agosto de 2011

Oportunidades de Golo

É vulgar que o principal critério usado para justificar o mérito de um resultado sejam as oportunidades de golo criadas por uma equipa, quando cruzadas com as oportunidades de golo criadas pelo adversário. E é comum que se defenda que a equipa que mais justifica a vitória seja a que mais oportunidades de golo consegue criar. Embora concordando que as oportunidades de golo criadas por uma equipa digam algo acerca da sua produção ofensiva, e que as oportunidades de golo concedidas ao adversário digam algo acerca da sua produção defensiva, discordo deste critério. Para além do problema óbvio do critério utilizado para avaliar aquilo em que consiste uma oportunidade de golo, parecendo difícil, em muitas situações, dizer se um determinado lance constitui ou não uma oportunidade, a minha discordância diz respeito sobretudo à quantificação da coisa. O que quero dizer é que as oportunidades de golo não sao todas iguais, que há diversos factores que devem ser pesados, e que me parece perfeitamente defensável que uma equipa que crie uma oportunidade de golo mereça mais a vitória do que outra que consiga criar dez. Deste ponto de vista, o critério que estou a defender é um que substitua a análise quantitativa das oportunidades de golos criadas pelas duas equipas por uma análise qualitativa.

Não é isto, como é fácil de perceber, uma conversa sobre vitórias morais. O argumento consiste essencialmente em defender que há equipas que, por mais perto que andem da baliza adversária, por mais que rematem, por mais que metam a bola na área, não fazem o suficiente para criar verdadeiras oportunidades de golo. Cruzamentos para área, a pedir uma resposta de cabeça, sobretudo quando a densidade populacional na área é grande e sobretudo quando o adversário está de frente para a bola e organizado, raramente são oportunidades de golo claríssimas. Mesmo originando confusão, mesmo causando calafrios, mesmo que um avançado consiga cabecear e levar a bola a passar perto da baliza, mesmo que o guarda-redes a defenda. A menos que o avançado cabeceie em condições favoráveis, com espaço e tempo para escolher o sítio para onde quer enviar a bola, dificilmente concordaria que um desvio de primeira, no meio da confusão, equivalha a uma oportunidade de golo clara. Há equipas que conseguem ter um caudal ofensivo grande, que conseguem passar grande parte do desafio no meio-campo adversário, mas que têm pouca imaginação nas imediações da área e as oportunidades que criam são invariavelmente deste tipo, que dependem mais de um desvio feliz do que do talento finalizador, da frieza, da qualidade do avançado. Quando se diz, portanto, que uma equipa conseguiu criar lances suficientes para vencer um jogo, é preciso primeiro ver que tipo de lances foram esses, de que condições aquele que finaliza dispôs para finalizar, quais as probabilidades de êxito de cada acção, etc..

A meu ver, uma equipa que não seja capaz de deixar aquele que finaliza numa posição frontal para a finalização, com espaço e tempo para poder decidir minimamente para que lado quer enviar a bola, seja através de um passe de ruptura pelo corredor central, com o avançado a desmarcar-se nas costas da defesa, seja através de um cruzamento recuado, junto à linha de fundo, seja através de uma tabela, seja através de um cruzamento para a zona entre o guarda-redes e a defesa, uma equipa que não seja capaz de criar situações de golo deste tipo, que todos os lances de perigo que cria são provenientes de lances de bola parada, de cruzamentos a pedir um desvio no meio da confusão, de remates de meia-distância, de ressaltos, uma equipa que, no fundo, não seja competente a propiciar situações de finalização favoráveis, pode criar dezenas de oportunidades, mas as probabilidades de ser bem sucedida manter-se-ão reduzidas. Fala-se excessivamente de problemas de eficácia, quando uma equipa não marca golos, mas domina os jogos e até consegue fazer com que a bola ronde a baliza adversária. Cada vez mais discordo do tema da conversa. O problema dessas equipas não está na eficácia, não está nos golos que podia marcar mas que não marca; o problema está antes, está no tipo de oportunidades que cria. Quando se diz, por isso, que uma equipa tem tido azar, que os postes ou os guarda-redes adversários têm estado insuperáveis, que os seus finalizadores não andam inspirados, que bastava que uma bola entrasse para que tudo fosse diferente, talvez fosse melhor analisar bem o tipo de oportunidades que se têm criado. É que o problema, na maior parte das vezes, não está na falta de eficácia, mas na falta de imaginação em tudo o que antecede o momento em que é preciso ser eficaz. Se se souberem criar situações mais favoráveis, verdadeiras situações, diria até, depender-se-á menos da eficácia. É evidente que estas equipas podem ganhar muitos jogos sem criar oportunidades de golo em melhores condições. Mas dependerão mais daquilo que não podem controlar, da sorte de um desvio instintivo do avançado não ir direito ao guarda-redes, por exemplo. O que estou a afirmar é que não é o volume do jogo, a capacidade para fazer a bola rondar a baliza adversária, a criação de quaisquer situações de perigo, que reduz a dependência de uma equipa da sua eficácia ofensiva; é, isso sim, a capacidade de criar "certas" oportunidades de golo. E o vocábulo "certas" é aqui - perdoem-me a redundância - o mais acertado: pode ter não só a função de pronome indefinido, significando "determinadas", como de adjectivo, significando "verdadeiras". Na minha opinião, portanto, o melhor remédio para os problemas de eficácia de uma equipa raramente é a substituição de um finalizador por outro ou raramente consiste em qualquer afinação do momento de finalização. Pelo contrário, problemas de eficácia resolvem-se criando condições para que não se dependa tanto de momentos de finalização pouco favoráveis. A menos que se trate de um caso de aselhice colectiva - e tal pode eventualmente acontecer - nenhuma equipa perde sistematicamente pontos por falta de eficácia no momento de atirar à baliza. Jogue-se bem e criem-se oportunidades de golo a sério, que os problemas resolver-se-ão por si mesmos.

Para terminar, o texto tem uma aplicação universal e abstracta, mas há dois bons exemplos recentes com que posso ilustrar o que estou a dizer. O início de época do Sporting trouxe ao de cima, para muita gente, determinados problemas de finalização da equipa. A fraca produção de golos - dizem - sobretudo com tanto volume de jogo ofensivo, só tem justificação pela falta de pontaria dos avançados. Discordo inteiramente disto. O problema do início de época do Sporting, a meu ver, está muito mais relacionado com o que antecede esse momento de finalização. Quantos lances conseguiu o Sporting produzir em que aquele que finaliza o faz em posição frontal, com espaço para escolher o lado para onde enviar a bola? Quantas vezes se isolaram os avançados do Sporting? Quantos cruzamentos rasteiros, a pedir um gesto técnico mais simples que o cabeceamento? Quantas verdadeiras oportunidades de golo teve o Sporting até agora? Domingos, a maior parte dos comentadores futebolísticos e alguns feiticeiros garantem que a equipa tem produzido inúmeras oportunidades evidentes de golo. Eu conto pouquíssimas. Nos dois jogos do campeonato, então, conto apenas duas, uma que deu golo de Postiga, contra o Olhanense, mas que foi anulado, outra em que o defensor do Beira-Mar cortou o remate de Capel em cima da linha de golo. O resto são respostas a cruzamentos ou remates à entrada da área, a maior parte das quais em condições francamente deficientes. O segundo exemplo é o jogo de ontem da Supertaça Europeia. Foi sugerido que o Porto merecia vencer, pois criou mais oportunidades que os catalães. Mesmo em número de ocasiões, duvido que isto seja muito exacto. Mas o que me impressiona é a ausência de espírito crítico da análise. Sejamos honestos: o Porto não criou uma única ocasião de golo flagrante. Fez alguns remates de longe, um ou dois mais promissores, teve um cruzamento em que Valdez falhou o tempo de saída da baliza e Mascherano cortou de cabeça, e pouco mais. O Barcelona, sem ter feito um grande jogo, teve 5 ou 6 oportunidades bem mais significativas, e é inquestionável que tenha merecido vencer o troféu. Nada disto tira mérito ao que o Porto fez, principalmente em termos defensivos. Defensivamente, o comportamento da equipa foi exemplar: controlou a posse catalã recorrendo a uma estratégia de pressão muito bem planeada, manteve os sectores juntos, a resposta colectiva aos momentos de pressão foi incrivelmente boa, e conseguiu mesmo provocar erros na construção do adversário que poderiam ter ocasionado lances de perigo a seu favor. Infelizmente, sobretudo em ataque organizado, a equipa voltou a denotar uma esterilidade preocupante, e foi absolutamente inconsequente. Fica, apesar de tudo, o exemplo a seguir da estratégia sem bola.