terça-feira, 16 de setembro de 2014

O professor Manuel Sérgio

O professor Manuel Sérgio, que de há uns tempos para cá ganhou a fama de saber alguma coisa de futebol, escreve com assiduidade num jornal desportivo. Além da tendência para gostar um pouco de tudo, como se nada fosse suficientemente mau para merecer a sua censura, tendência da qual Luís Freitas Lobo é o principal cultor, o professor Manuel Sérgio gosta de defender que a teoria e a prática andam de mãos dadas. Apesar do truísmo, o professor repete a ideia em todos os seus artigos, como se estivesse a dizer alguma coisa que a maioria das pessoas não percebesse. A ideia, em si, não só não é extraordinária, como é absolutamente vaga. O professor Manuel Sérgio acha que não, acha que ela contém os mistérios do universo, e não é capaz de aceitar a possibilidade de haver um mau treinador que alie a teoria à prática. Do seu ponto de vista, maus treinadores são aqueles que só têm prática, ou aqueles que só têm teoria. Os que aliam a teoria à prática são necessariamente bons. José Mota, cuja teoria podia ser resumida através da fórmula "Futebol = Luta de Galos", costuma saber passar dessa teoria à prática, pondo os seus atletas a jogar qualquer coisa desse género. De acordo com o argumento do professor Manuel Sérgio, isto é um bom treinador. De acordo com o argumento que reforçarei de seguida, o professor Manuel Sérgio é um tontinho.

A Academia, em termos gerais, tem o hábito de criar este tipo de tontos. São pessoas que, por se terem destacado dentro da Academia, acham que ela tem valor por si. E tudo aquilo que dizem é influenciado pela crença de que a formação que têm lhes dá uma determinada autoridade. Para dar um exemplo, o professor Manuel Sérgio costuma inundar os seus textos com citações de pensadores famosos, acreditando que coisas ditas por pessoas que toda a gente conhece, mesmo que fora de contexto, ajudam a enobrecer o que diz e dão força às teorias que sustenta. Este tipo de vício, o de achar que uma frase de Platão ou Nietzsche é lei, é aquilo que estou a tentar dizer que abunda em muitos académicos. Habituaram-se a ouvir pessoas a defender teorias com base no que os antepassados mais célebres diziam, um hábito, aliás, de outro regime, e acham agora que defender ideias é uma espécie de concurso para ver quem consegue citar mais antepassados. A Academia é muito isto. E o professor Manuel Sérgio, que desde que começou a escrever sempre lembrou que era académico, e que isso o distinguia de alguma maneira, costuma defender as suas ideias assim. Argumentar, para ele, é atirar com tralha antiga aos outros. Influenciado por aquilo que antigamente se achava ser um argumento, e que de facto é um argumento em regimes totalitários, o professor Manuel Sérgio chegou aos jornais desportivos e à opinião pública de pança cheia, como se a sua sabedoria acerca do jogo se justificasse por ser um velho jarreta, por ser académico e por conhecer algumas frases de gente que acha que é importante. 

No seu artigo mais recente, insurge-se contra Jorge Valdano, ainda que conte uma história patusca acerca do dia em que o conheceu, e da elegância do argentino, que muito respeita, e tal e tal. A razão pela qual se insurge contra Valdano é uma frase proferida por este num livro: "Nunca ouvi Mourinho dizer uma frase sobre futebol, digna de ser recordada". Mourinho é o campeão pelo qual a donzela Manuel Sérgio torce porque, evidentemente, o fenómeno Mourinho, como a muitas outras pessoas medíocres (o conselheiro Acácio, por exemplo, que agora comenta assiduamente na SportTV), tornou-o famoso. O sucesso de Mourinho foi tal que, para o explicar, deu-se voz a algumas pessoas que, até aí, ninguém conhecia. Desde treinadores a professores, todos ficaram a ganhar com isso. E o professor Manuel Sérgio foi um deles. Foi, digamos assim, o responsável por explicar o lado filosófico do sucesso de Mourinho. Como Mourinho o trouxe para a ribalta, o professor Manuel Sérgio decidiu que devia intervir a favor do seu protegido. E desatou a dizer disparates, uns na forma de argumentos à pedrada, outros na forma de citações sem nexo, a maioria deles revelando a senilidade que o define. Eis um exemplo:

"Há muitos anos já, o José Mourinho me escutou: "Quem só teoriza não sabe, quem só pratica repete"

Não obstante a brasileirismo do português, o professor Manuel Sérgio é suficientemente vaidoso para achar que ensinou o que de mais importante Mourinho aprendeu. Decidiu proteger Mourinho, portanto, porque acha que Mourinho pôs em prática os seus ensinamentos. Decidiu proteger Mourinho porque acha que o futebol das equipas de Mourinho foi, de alguma maneira, influenciado por ele. Eis outro exemplo dos disparates do professor Manuel Sérgio:

"No conhecimento científico, não há teoria sem prática, nem prática sem teoria, se bem que (e volto a palavras minhas) a prática seja mais importante do que a teoria e a teoria só tenha valor, se for a teoria de uma determinada prática."

Ao professor Manuel Sérgio, que gosta tanto de citar autores, bastava que se lhe citasse Aristóteles para que percebesse que estas três linhas não têm pés nem cabeça. Isto para não falar da implicação maior destas afirmações, a de que toda a gente devia ir para cursos profissionais. Para o distinto professor, tudo é prática. E a única teoria que tem valor é a teoria que se debruça sobre uma prática. Na insigne indústria do sapato, por exemplo, só há espaço para sapateiros e para teorizadores do sapato. E o modelo de sociedade que daqui decorre é um em que cada indivíduo ou vai para sapateiro (ou para outra profissão prática qualquer) ou para teorizador de sapatos (ou de outra arte qualquer). É mais ou menos o modelo proposto por Platão, com a importante diferença de só conceber a classe dos artesãos. Isto faria do professor Manuel Sérgio um pedagogo de tontos, não fosse o azar de fazê-lo um pedagogo tonto, como se vê no exemplo seguinte:

"se associarmos, no treinador de futebol Jorge Valdano, a teoria à prática, podemos aplaudir a teoria, até o seu humanismo, mas a prática (como treinador de futebol, repito-me) rasa o sofrível"

Jorge Valdano não teve grande sucesso como treinador, logo tudo o que diz é inconsequente. Para o professor Manuel Sérgio, o que autoriza uma pessoa a falar e a ter razão não são as ideias e os argumentos; são os resultados práticos. Seja o que for que Valdano diga, é necessariamente falso porque ainda não teve sucesso com essas ideias. Não sei o que o professor Manuel Sérgio acha que sabe, mas toda a História da Ciência consiste em pessoas que formularam teorias, que foram ridicularizadas enquanto essas teorias não foram aceites e que passaram à posteridade quando se percebeu que tinham razão. Toda a História da Ciência é sobre teorias que, depois de corroboradas, transformaram a prática para sempre. Valdano pode nem nunca ter sucesso como treinador, mas isso só implica que não diga coisas acertadas na cabeça tacanha de quem não sabe nada do que pensa que sabe. Veja-se mais um exemplo:

"Vejamos agora, sem irmos até ao pormenor, o que de mais significativo fez José Mourinho: completou 100 jogos, na Liga dos Campeões; foi campeão em Itália, em Inglaterra, em Portugal e em Espanha; venceu duas vezes a Liga dos Campeões e uma vez a Taça UEFA (hoje, Liga Europa)"

Para o professor Manuel Sérgio, o currículo de Mourinho fala por si. Com um currículo destes, tem necessariamente de ser bom treinador e de ter boas ideias sobre o jogo. Não interessa muito como e com que meios conseguiu o que conseguiu. O que interessa é que teve sucesso. Há cerca de três quartos de século, também houve quem tivesse dominado a Europa quase toda. Por isso, para o professor Manuel Sérgio, a máquina nazi também deve ser elogiada. Não interessa o poderio bélico desigual; só interessa o sucesso das manobras militares. O que Mourinho fez no Porto, e também na sua primeira passagem no Chelsea, é evidentemente invejável. O que fez depois disso é banal. E é-o não porque passou a ter piores resultados (o que aconteceu), mas porque passou a conceber o jogo de maneira diferente, ou seja, porque passou a teorizar de maneira diferente. Passemos para o último exemplo:

"E se consultarmos o livro Mourinho - a descoberta guiada, do prof. Luís Lourenço, aí encontraremos, na força expressiva das palavras, uma admiração incontida dos seus jogadores, pelo treinador e o homem que José Mourinho é".

Não sei se isto é desonestidade intelectual, se infantilidade. Gostava de conhecer um livro sobre uma pessoa que contivesse testemunhos de outras pessoas que dissessem mal dessa pessoa, mas não conheço. O professor Manuel Sérgio, pelos vistos, deve conhecer, ou não acharia que palavras elogiosas de jogadores num livro sobre um treinador pudessem servir de argumento para comprovar a qualidade desse treinador. Enfim... O professor Manuel Sérgio é um tontinho que tem hoje espaço na opinião pública porque teve a sorte de alguém que conhecia ter tido sucesso. Admira Mourinho não porque Mourinho seja um grande treinador, mas porque acha que Mourinho ilustra a única teoria que tem, e que repete ad nausea, uma teoria que, além de vaga, é falaciosa. Além de tonto, é por isso um bocado parasitário. A sua existência, pelo menos a sua existência pública, depende de outros. Não obstante, acha-se um intelectual de primeira água. Muito da sociedade contemporânea se explica pelo tipo de fénomeno que o professor Manuel Sérgio afinal incorpora: uma pessoa que dá ares de saber alguma coisa, mas que não sabe nada, e que de repente chega a milhares de outras. O melhor que podia fazer o professor Manuel Sérgio era, por isso, pedir que o empalhassem.