sábado, 31 de julho de 2010

Certezas (19)

A cara de miúdo, a alegria a jogar e a coragem são os atributos que mais transparecem. Por trás deles, está o enorme talento em que se funda toda a sua qualidade. Possuidor de um pé esquerdo finíssimo, é um jogador elegante, que trata bem a bola e com muitos recursos técnicos. Não é malabarista, como muitos, até porque a sua nacionalidade parece ser à prova dessas inconsequências, mas é extremamente habilidoso. Usando essa habilidade pelas razões certas e nas alturas certas, deslumbrou esta época ao serviço do seu clube, motivando a cobiça dos grandes do seu país. Acabou vinculado a um deles e tem agora todo um futuro promissor à sua frente. Distingue-se dos outros jovens da sua idade por parecer mais maduro, por ter chegado ao escalão sénior e se ter imposto sem dificuldades. A sua margem de progressão, até por estas características, é por isso muito grande. Joga preferencialmente como segundo avançado e seria um erro, pelo menos nesta fase da carreira, fazê-lo actuar como médio organizador de jogo. Trata-se de um jogador mais vertical, excelente no drible e que procura muito o último passe. É principalmente um desequilibrador e é, por isso, em zonas mais adiantadas do terreno que o seu potencial deve ser aproveitado. Como médio organizador, falta-lhe alguma lucidez e alguma capacidade para ponderar a melhor solução de passe em zonas mais recuadas. Não raras vezes, mesmo estando ainda consideravelmente longe da área, procura protagonizar o último passe, procura excessivamente o movimento de ruptura decisivo. Actuando na frente, com liberdade para aparecer ora nas linhas, ora no espaço entre linhas, ora a aproveitar as costas de um avançado mais fixo, pode explorar todo o seu talento sem prejudicar a equipa mais atrás. A sua evolução passa por isso por jogar como avançado móvel e, tratando-se de um jogador muito imaginativo, inteligente e com boa capacidade técnica, depressa crescerá o suficiente para perceber como deve actuar em zonas mais recuadas. Para já, é como atacante e não como médio que Mourinho deverá tentar tirar todo o proveito dele. E talvez daqui a uns anos a selecção espanhola tenha mais um prodígio na sua principal selecção. Assim evolua Sergio Canales...

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Beware the Jabberwocky

Tal como na edição anterior da Liga dos Campeões, ficará mais para a História uma das meias-finais do que propriamente a final da prova, neste caso, a eliminatória que opunha Barcelona a Inter de Milão. A esmagadora maioria das pessoas, após o apito final que carimbou a passagem do Inter, em pleno Camp Nou, à final de Madrid, não teve dúvidas: o Inter era um justo finalista. Creio, porém, que muitas destas opiniões estão viciadas por animosidades próprias. Só assim se explica o favorecimento tão vincado a uma equipa que, na segunda mão, só defendeu e, por pouco, por muito pouco, não foi eliminada. Que o Inter passou e que faz parte do futebol equipas que só defendem passarem, tudo bem. Que tenha merecido, incontestavelmente, essa passagem, é que me parece francamente duvidoso. Afinal, de um modo muito parecido, foi assim que a Grécia de Otto Rehhagel se sagrou campeã da Europa em 2004, e na altura não só a maioria das opiniões afirmava que a Grécia não merecera ganhar, como a própria balança das opiniões estava bem mais equilibrada. Enfim, do meu ponto de vista, isto só se explica porque o Barcelona de Guardiola incomodava, de maneiras diferentes, grande parte dos que vêem futebol.

Entre aqueles que defendem que o Inter foi um justo vencedor, haverá certamente simpatizantes incondicionais de José Mourinho. Este é o modo mais comum de se observarem factos errados e de se terem opiniões não fundamentadas e é muito parecido, em abono da verdade, com o sentimento de clubismo que tolda a visão a tanta gente. Em minha defesa, e para que não suscite precisamente o argumento contrário, quero deixar claro que o meu apoio ao Barcelona de Guardiola não é incondicional e que, caso o Barcelona não tivesse jogado bem, ou pelo menos o suficiente para merecer passar, não estaria aqui a defendê-lo. Não há, por isso, simpatia excessiva por uma das equipas a dificultar a observação objectiva do que se passou. No ano passado, com o Chelsea, o Barcelona jogou bem pior e teria aceitado muito mais facilmente a sua eliminação, embora o jogo da primeira mão fizesse com que merecesse, ainda assim, a passagem. Mas este ano o Barcelona, não tendo feito um jogo brilhante, fez o suficiente para marcar os dois golos de que precisava e só a sorte protegeu o Inter. Como tal, é-me até difícil perceber o argumento dos que dizem que Mourinho deu uma lição táctica em Camp Nou, quando na verdade perdeu o desafio, por pouco não era eliminado e só passou por causa da primeira mão.

Tirando estes, tirando também os que não suportam o próprio Barcelona, e tirando talvez ainda os que, convencidos de que o Barcelona fora ajudado na época passada (o que no fundo é uma mentira grosseira que maior parte das pessoas decidiu perpetuar), só consigo perceber tamanha posição por aquilo a que, em tempos, designei como um certo medo do desconhecido. É sobre isso que quero falar, pois é sobre isso que acho que se deve falar nesta altura. Os comentários imbecis acerca do que se passou em Camp Nou continuam a circular e criou-se agora uma tendência ignominiosa de vilipendiar e rebaixar o trabalho de Guardiola. Fala-se em Chygrinsky, como se algum dia tivesse sido expectativa de alguém o ucraniano ir para Barcelona para ser central de caras, esquecendo-se, por exemplo, que em sentido contrário ninguém esperava nada de Piqué e agora é, muito provavelmente, o melhor do mundo no seu posto; fala-se na época menos conseguida de Ibrahimovic, como se o sueco algum dia se tivesse evidenciado por ser um goleador extraordinário e como se o Barcelona não tivesse lucrado, em termos de jogo, com a presença deste; fala-se da ingenuidade de Guardiola, que não foi perspicaz estrategicamente, como se a insistência nas suas ideias não fosse a principal razão para o Barcelona ser a melhor equipa de todos os tempos e para que tivesse ganho tudo o que ganhou. Subjaz, a todas estas críticas, uma só coisa: o Barcelona transformou-se num monstro e, para o ser humano comum, que não compreende senão o que tem diante dos olhos, todo o monstro incompreensível tem de morrer, sob pena de nos deixar sem saber o que fazer com a sua presença.

É isto que é, para 99% das pessoas, esta equipa. Reconhecem a sua grandeza, mas ainda assim desejam intimamente a sua queda. Respeitam-na por medo e não por reconhecerem nela a grandeza humana que lhe está por trás. Admitem a sua força, mas torcem para que um herói qualquer, humano como eles, embriagado de uma humanidade que possam compreender e suportar, a liquide. Faz parte da pequenez humana, e fez sempre, estar contra os que estão para além da mediania; é parte integrante da vida comunitária a repressão da singularidade, o conduzir ao desterro os mais brilhantes. O Barcelona, para o mundo do futebol, é um monstro que tem de ser derrotado pela simples razão de que lhe lembra a mediocridade própria. É esta e não outra a principal causa de tanta exaltação com o insucesso europeu de Guardiola. O Barcelona ofuscou de tal modo o passado futebolístico que o precedeu que criou à sua volta uma aura que, para aqueles que habitam o mesmo tempo, se tornou insuportável. Por não compreender nem poder irmanar aquilo que é este Barcelona, o resto do mundo sentiu nesta equipa uma ameaça à sua existência medíocre. Todas as hostilidades que se seguiram à eliminação catalã são somente a activação do instinto de auto-preservação de uma espécie que, sentindo correr perigo de vida, viu neste acontecimento a oportunidade ideal para espezinhar definitivamente o predador que temiam.

O futebol é, a meu ver, uma das coisas que melhor representa a evolução civilizacional a que se chegou, ainda que, naturalmente, conserve em si instintos primitivos evidentes. No entanto, é no próprio futebol e neste caso em específico que o ser humano demonstra que, apesar dos 3000 anos de civilização, continua, na sua raiz, uma espécie animal conservadora e estúpida, uma espécie bárbara que, apesar de viver em comunidade, ter leis, andar vestida e ter inventado a linguagem, permanece mais próxima dos mamutes do que do ideal de uma civilização avançada. Somos uma espécie que precisa de se saber segura, que precisa de aniquilar o que é do domínio do misterioso, que precisa de saber palpáveis todos os cantos do mundo. Temos medo de monstros e só estamos bem quando expulsamos do nosso círculo de gente gorda e que procria esses monstros que não compreendemos. Ora, é precisamente sobre isso que versa "Jabberwocky", o célebre poema contido em Through the Looking Glass, o segundo livro das aventuras de Alice no país das maravilhas:

JABBERWOCKY

'Twas brillig, and the slithy toves
Did gyre and gimble in the wabe;
All mimsy were the borogoves,
and the mome raths outgrabe.

'Beware the Jabberwocky, my son!
the jaws that bite, the claws that catch!
Beware the Jujub bird, and shun
the frumious Bandersnatch!'

He took his vorpal sword in hand:
Long time the manxome foe he sought -
So rested he by the Tumtum tree,
and stood awhile in thought.

And as in uffish thought he stood,
The Jabberwock, with eyes of flame,
Came whiffling through the tulgey wood,
and burbled as it came!

One, two! One, two! And through and through
the vorpal blade went snicker-snack!
He left it dead, and with its head
he went galumping back.

'And hast thou slain the Jabberwock?
Come to my arms, my beamish boy!
O frabjous day! Callooh! Callay!'
He chortled in his joy.

'Twas brillig, and the slithy toves
Did gyre and gimble in the wabe;
All mimsy were the borogoves,
and the mome raths outgrabe.

Em nenhuma parte do poema se diz o que é o Jabberwocky e grande parte das palavras que o compõem não existe. Não é possível inferir do poema senão que existe algo que se chama Jabberwocky, que tem mandíbulas que mordem, garras que agarram e olhos flamejantes. Ainda assim, a presunção é de que se trata de um ser hostil, com o qual tem de se ter cuidado e que é preciso matar. Não é incomum, em adaptações para cinema dos livros de Lewis Carroll, que o Jabberwocky, ainda que não tenha existência nas aventuras de Alice e que seja apenas esta figura difícil de descrever que só aparece num poema dentro dessas mesmas aventuras, apareça como um dragão horrendo, um bicho medonho e o ser mais malévolo do País das Maravilhas. O Jabberwocky, como se pode comprovar pelo poema, não é nada disto. É a interpretação excessiva e errada das pessoas que transforma mandíbulas, garras e olhos em dragões, que pega em dois ou três pormenores de algo que desconhece para construir uma imagem que lhe é familiar.

O Barcelona de Guardiola é o Jabberwocky e o mundo que não o compreende é o pai que adverte o filho para que tenha cuidado com ele. Como não o compreende, teme-o e não pretende senão matá-lo com uma "espada vorpal". Depois de morta a besta, resta ao ser humano que matou o conforto dos braços do pai, o que mais não é que a consolação de reconhecer que sobreviveu mais um dia. A pequenez do mundo, que se regozijou com a derrota dos catalães, pôde assim, com tal derrota, preservar a sua existência e, por conseguinte, a sua pequenez, isto é, a sua própria essência. Tal como qualquer espécie ameaçada, os cânticos de glória em torno do monstro caído mais não são que o testemunho da própria estupidez de uma espécie que não compreende outra espécie e tem, por instinto e não por racionalidade, a conservação dos seus hábitos estúpidos e a intolerância dos hábitos dos outros. Os seres humanos raquíticos e pobres de espírito que agora saltam eufóricos em cima do corpo do monstro, cantando e bebendo alacremente, são só os justos descendentes da torpe seita humana que, no passado, fez o mesmo com espécies diferentes das suas, raças diferentes das suas e famílias diferentes das suas. Trata-se do reflexo inequívoco do mais interiorizado vício humano: a intolerância com a diferença. E o que preside a essa intolerância é a incompreensão, filha primogénita da estupidez, mãe de todos males humanos.

O futebol do Barcelona (assim como, em parte, o futebol apresentado pela Espanha campeã do mundo) não é só mais um estilo de futebol. Trata-se de uma evolução conceptual, com diversas inovações que rompem com o passado. O futebol de toque curto, para o lado e para trás, privilegiando a posse de bola acima de tudo, é talvez a imagem de marca desse futebol. Não é a única característica extraordinária deste modo de jogar, mas é o mais desconcertante. A aparente inconsequência, em muitos momentos, dessa circulação, é uma absoluta novidade. Nunca a inconsequência fora vista como uma virtude. Para os que não conseguem pensar por si e que estipulam verdades de acordo com o que conhecem, um futebol que assenta, em parte, na inconsequência, é alvo de suspeição. É por isso que o "tiki-taka" não é unânime. Para muitos, é demasiado elaborado e escapa ao princípio máximo do jogo, que devia ser o ataque constante. No fundo, são as mesmas pessoas que não conseguem perceber que no futebol há mais do que o objectivo do golo que não percebem a utilidade da "inconsequência" desse tipo de futebol. O mesmo se poderia dizer em relação aos poucos remates, aos poucos passes longos, ao abdicar dos momentos de transição, etc. O comum mortal acha que o futebol é um conjunto fixo de ideias e, por achar isso, não é capaz de compreender o quão revolucionária é a filosofia do Barcelona de Guardiola. Por não a compreender, intuindo-lhe porém a força, teme-a. E por temê-la, na sua pequenez e na sua impotência, só pode regozijar-se com a sua queda.

P.S. O Barcelona não ganhará sempre. A Espanha não ganhará sempre. Mas é notável que o modelo de Guardiola e o tipo de jogador ideal para o futebol de toque curto, rendilhado, baseado na técnica e na inteligência, tenham ganho o que ganhou o Barcelona em 2009 e tudo a nível de selecções nos últimos três anos. Há muito tempo que uma ideia tão clara sobre o jogo não se elevava acima de tudo o resto com tanta supremacia e que não assustava tanto o mundo. Está feita a revolução. Antecipa-se o futuro da modalidade, como de resto, muito antes da clara demonstração de força dos últimos três anos, já o Entre Dez apregoava.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Os melhores do Mundial 2010

Uma semana e tal depois, eis os melhores do mundial, em 433. De acordo com o esquema táctico, é natural que um ou outro jogador não se encontre na posição exacta em que actuou ou que tenha actuado nessa posição apenas algumas vezes.

Guarda-Redes: Iker Casillas
Defesa Direito: Maicon
Defesa Esquerdo: Fábio Coentrão
Defesas Centrais: Gerard Piqué e Ricardo Carvalho
Médio-Defensivo: Sergio Busquets
Médios-Ofensivos: Xavi e Iniesta
Extremo Direito: Thomas Müller
Extremo Esquerdo: David Villa
Avançado: Diego Forlán

Treinador: Joachim Löw

Suplentes:

Guarda-Redes: Manuel Neuer
Defesa Direito: Philip Lahm
Defesa Esquerdo: Jorge Fucile
Defesas Centrais: Juan e Puyol
Médio-Defensivo: Mark Van Bommel
Médios-Ofensivos: Leo Messi e Wesley Sneijder
Extremo Direito: Arjen Robben
Extremo Esquerdo: Mesut Özil
Avançado: Miroslav Klose

Treinador: Marcelo Bielsa

O melhor jogador da competição foi, em nosso entender, Andrés Iniesta.

domingo, 18 de julho de 2010

A maldição de Bento...

Foi um primeiro tempo que deverá ter criado ainda mais reticências sobre a época que se avizinha.O conjunto orientado pelo técnico Paulo Sérgio apenas apresentou como positivo o facto de não abusar no jogo directo. De resto, desde o sistema táctico utilizado, até aos movimentos preconizados pelos seus jogadores, excepção feita a Postiga, Carriço e Evaldo, o desafio frente ao Young Boys nao deixou antever nada de bom. A equipa demorou demasiado tempo a formar um bloco compacto nas transições defensivas, com André Santos e Maniche a conceder muitos espaços nas suas costas, facto que só não foi aproveitado de forma mais eficiente devido à falta de qualidade do adversário leonino.

Notou-se na equipa leonina a preocupação de integrar os laterais nos movimentos ofensivos, deixando no entanto os avançados muitos sós nas acções entrelinhas. Ainda que a espaços se notasse a intenção de os extremos efectuarem movimentos diagonais de aproximação aos avançados. O problema reside na ocupação correcta dos espaços nas transições, ficando a equipa demasiado dependente das suas individualidades para que se mantenha equilibrada durante os vários momentos de jogo.

Na segunda parte, com a entrada de Nuno André Coelho e a subsquente alteração táctica, a equipa leonina conseguiu alguns movimentos mais interessantes, sendo que os mais relevantes foram os movimentos que permitiram o surgimento dos dois médios-centros entre linhas, facto que resultou num maior número de problemas colocados à equipa suíça.

O segundo encontro apresentou um Sporting mais sólido e mais forte nas transições, destacando-se a maneira como a equipa efectou a pressão alta. No processo ofensivo, o pormenor, até ver bastante interessante e profícuo para a equipa, de os extremos jogarem e procurarem movimentos interiores, sendo que os movimentos exteriores foram efectuados principalmente pelos laterais. Mas isto apenas até se regressar ao 442 clássico. A partir desse momento e até ao final do encontro, o Sporting voltou a funcionar como um amontoado de jogadores, demonstrando enormes fragilidades nos processos ofensivos.

Frente ao PSG, voltou a opção inicial pelo 442 clássico, sendo que neste jogo se notou a intenção de os alas jogarem mais por dentro, o que torna ainda mais difícil de perceber a opção por este sistema táctico. Durante bastante tempo, notaram-se as dificuldades do Sporting nas transições, recorrendo em demasia ao jogo directo para os seus avançados, ainda que as únicas jogadas dignas de registo tenham resultado da iniciativa de um deles: Postiga. Graças à inteligência do avançado, que soube gerir posse da bola fazendo as pausas necessárias, a equipa pôde reorganizar-se para que pudesse desenvolver alguns ataques de forma apoiada e organizada. Todavia, e aqui que reside o principal problema do Sporting, o sistema obriga os seus jogadores a jogarem em constante desvantagem e desconforto, ficando obrigados a esconder as debilidades desse sistema.

Paulo Sérgio até tem pinta de ser um porreiro, mas ou emenda a mão e opta por um sistema que permita a equipa jogar à bola, ou quando for corrido de Alvalade nem esse epíteto vai manter. Mais do que jogadores, estava na altura de se recrutarem treinadores competentes. Se é cedo para crucificar Paulo Sérgio? Talvez - e espero estar errado - mas os seus primeiros dias como timoneiro da nau leonina não auguram nada de bom...

terça-feira, 13 de julho de 2010

Campeonato do Mundo dos Idiotas

Há quem tenha opiniões esquisitas, há quem tenha opiniões erradas e há quem tenha opiniões que não devia ter. Há um quarto grupo de pessoas que tem opiniões que não consigo classificar. É o caso de Miguel Lourenço Pereira, que escreveu preciosidades atrás de preciosidades neste brilhante texto e respectivos comentários. Findo o campeonato do mundo de futebol, eis o campeonato do mundo dos idiotas.

Antes da final do campeonato do mundo e antes também de escrever um texto em que confessa o seu desdém para com pessoas que não sabem da existência de um campeonato do mundo não-oficial, Miguel Lourenço Pereira decidira escrever um texto em que a principal ideia era equiparar esta selecção de Espanha às tradicionais selecções italianas. A sugestão, só assim, já provoca o riso. Mas vejamos o que diz concretamente.

1. Embora comece por considerar que a Espanha se apurara para a final com justiça, percebemos que o diz simplesmente porque se apurou. Continuando a ler, é com facilidade que compreendemos que não nutre profunda admiração pelos espanhóis e que estava obviamente a torcer pelo apuramento alemão. Diz então que o jogo espanhol é "horizontal e irritante". Não sei por que razão o diz, até porque não há outra selecção no mundo que faça tantos passes verticais e que consiga penetrar verticalmente, pelo meio, como a Espanha. Quanto à irritação, percebo-a apenas se houver da parte de quem sofre essa irritação um certo desconforto com o que é bom. O futebol espanhol, para Miguel Lourenço Pereira, é certamente irritante do mesmo modo que a música de Beethoven é irritante.

2. Continua Miguel Lourenço Pereira, afirmando agora que a Espanha não joga bem e que "esta equipa continua a funcionar bastante melhor como um hábil producto de marketing acente na escola do Barcelona". Gosto especialmente da forma como decidiu trocar os dois "s" do verbo "assentar" pelo "c", certamente mais económico e menos "horizontal e irritante". Aliás, a obsessão com a letra "c", nesta frase, é incrível, ao usar a letra na palavra "produto", numa espécie de fenómeno de hiper-correcção contra o novo Acordo Ortográfico da língua portuguesa. Mas achar que esta equipa joga assim por efeitos de marketing, o que quer que isso queira dizer, só numa cabecinha muito diferente. Não sei, mas parece que Miguel Lourenço Pereira está a dizer que os jogadores espanhóis, em vez de estarem a jogar futebol, estão constantemente a protagonizar um reclame desportivo. Será isto?

3. Prosseguindo, diz Miguel Lourenço Pereira que a selecção espanhola "abdicou de jogar bem para ganhar", tendo herdado "essa cultura italiana que hoje mais nenhuma equipa no Mundo tem". Gosto aqui também do uso da maiúscula na palavra "mundo", como se estivesse a falar de uma coisa maior que o próprio mundo. Talvez Miguel Lourenço Pereira tenha um mundinho (com maiúscula, claro) só seu. Isso explicaria muita coisa. O que é extraordinário é que Miguel Lourenço Pereira consegue achar que a Espanha não jogou bem este mundial, apesar de ter dominado todos os jogos, de ter tido constantemente mais bola, de ter empurrado vários adversários para as imediações da sua baliza. Para o senhor Miguel Lourenço Pereira, nada disso interessa, assim como não interessa as selecções italianas terem por cultura precisamente o oposto, isto é, abdicar da bola, entregar a iniciativa ao adversário, remeterem-se ao momento defensivo e atacar venenosamente pela certa.

4. Querendo justificar a afirmação anterior, diz Miguel Lourenço Pereira que "não se vê nessa troca de bola lateral constante um fluxo de ideias como as equipas que marcaram a evolução do jogo". Já sabíamos que o senhor Miguel Lourenço Pereira tinha um problema oftalmológico que o impedia de ver coisas verticais, mas ficamos agora a saber que também não é capaz de perceber na troca de bola espanhola qualquer ideia. Onde, de facto, abundam ideias, e das boas, é na cabecinha do senhor Miguel Lourenço Pereira. Não sei ao certo que equipas é que, para Miguel Lourenço Pereira "marcaram a evolução do jogo", mas pela conversa cheira-me que está a falar do Boavista de Jaime Pacheco.

5. Diz ainda Miguel Lourenço Pereira que o futebol da Espanha está "a anos-luz de outras grandes selecções" e que "em números, serão o pior finalista de que há memória, incapazes de ganhar por mais de 1-0 nos jogos a eliminar", sendo que "nem a pior azurra" teve números tão escassos. Confesso que a história dos números já chateia. As tartarugas que acham que os números servem para alguma coisa esquecem-se que esta Espanha passou o mundial a jogar contra equipas fechadinhas lá atrás, como a Suíça, Portugal ou Alemanha, e que, naturalmente, é muito mais difícil vencer por muitos golos quando o adversário tem por estratégia não atacar durante 90 minutos. Em nenhum jogo a Espanha foi inferior ao adversário e em todos merecia ganhar por mais de um golo de diferença - era isto que os idiotas deviam ter em conta e não a inutilidade dos números, hábito norte-americano que no futebol não tem nem pode ter aplicação eficiente. O problema do senhor Miguel Lourenço Pereira, agora percebemos, é achar que a força desta Espanha está espelhada nos seus números. Não está, como nada está espelhado nos números, em futebol. É porque a Espanha marcou poucos golos (e não porque tenha subjugado todos os adversários pela posse de bola) que Miguel Lourenço Pereira a considera parecida com a Itália. A estupidez da comparação não está por isso nas conclusões, mas nas premissas e no método de análise.

6. A propósito do jogo com a Alemanha, diz Miguel Lourenço Pereira que a razão pela qual a Espanha ganhou facilmente aos alemães não se explica por mérito dos espanhóis, mas sim porque a Alemanha "não quis fazer o jogo duro de pressão alta de suiços, portugueses e paraguaios, que optaram por não deixar a Espanha jogar confortavelmente com a bola". Mais uma vez, há qualquer coisa de muito esquisito com o cérebro do senhor Miguel Lourenço Pereira. Não sei ao certo que mundial andou a ver este senhor, mas não foi certamente o da África do Sul. Os suíços passaram 90 minutos encaixotados na sua área e Portugal pressionou sempre atrás da linha de meio-campo. A única equipa que optou por uma pressão mais alta foi o Paraguai, e ainda assim privilegiou zonas de pressão à entrada do meio-campo espanhol. Miguel Lourenço Pereira acha que se tratou de pressão alta. São opiniões. Também haverá, por certo, quem ache que os sete anões eram, na verdade, gigantes.

7. Quando incitado por alguém, na caixa de comentários, a justificar a sua afirmação acerca da semelhança entre a Espanha e a Itália, Miguel Lourenço Pereira diz o seguinte:

"Fico contente que tenha vontade de rir, mas basta olhar para a campanha da Itália em 2006 para perceber a comparação. Uma fase de grupos mediana, com um apuramento algo trapalhão, um jogo de Oitavos com golo polémico, uma eliminatória de Quartos demasiado sofrida e um excelente jogo nas meias-finais, quando é a doer, contra uma equipa melhor".

Lá está. Miguel Lourenço Pereira não está a comparar estilo de jogo nem qualidade de jogo; está a comparar campanhas. Ou seja, números. A obsessão matemática vale-lhe por isso a idiotia de não perceber tudo o que está para lá dessa matemática. E consegue, por isso, porque ignora o mais importante, comparar o dia com a noite. Se eu também ignorasse todas as propriedades que distinguem o branco do preto e me cingisse apenas ao facto de ambas as cores estarem dentro dos limites do espectro visível, também poderia dizer que o branco é igual ao preto. O que Miguel Lourenço Pereira está a fazer, por isso, é uma espécie de batota intelectual: de entre vários dados a ter em conta, apenas lhe interessa aquele que torna as duas equipas semelhantes: o facto de terem tido sucesso com números parecidos.

8. O carácter anedótico da proposta de Miguel Lourenço Pereira, porém, não fica por aqui. Diz ainda que "esta maturidade competitiva dos espanhóis, capaz de aguentar tudo e todos, compensa a falta de um toque de classe, improvisação e genialidade." Falta de classe, improvisação e genialidade? Que outra selecção teve algum dia mais classe, improvisação e genialidade que esta Espanha? Depois de voltar a frisar que "a Espanha é uma equipa horizontal" (a mais falsa das suas barbaridades), o absurdo da tese de Miguel Lourenço Pereira chega ainda ao ponto de sugerir que a equipa espanhola tem "muitos problemas ofensivos" e que, "se não fosse assim não era a primeira equipa finalista da história a chegar tão longe com 3 eliminatórias a 1-0 cada um". Fica evidente, uma vez mais, que para Miguel Lourenço Pereira, uma equipa que ganha várias vezes por 1-0 é necessariamente alguém com "muitos problemas ofensivos". Uma vez mais, carece a análise de Miguel Lourenço Pereira de algum tacto e de alguma inteligência. Uma boa razão para uma equipa não fazer mais golos é o facto de jogar tanto, de ter tanto a supremacia do jogo, que o adversário se recolhe atrás para perder pelo mínimo possível. Mas o que é extraordinário é que a equipa que mais ataques fez em toda a prova seja uma equipa horizontal e com muitos problemas ofensivos.

9. A incrível imaginação de Miguel Lourenço Pereira permite-lhe ainda dizer coisas como:

"O problema está no estilo de jogo. Xavi, Iniesta, Silva ou Navas, são jogadores que procuram quase sempre o passe. Daí que o destaque no Barça seja o Messi, o homem que joga verticalmente para o golo, quando os outros jogam para a "orquestra"".

Para Miguel Lourenço Pereira, os problemas ofensivos vêm do estilo de jogo, interpretado por jogadores que procuram quase sempre o passe. Segue-se deste raciocínio que a equipa espanhola deveria apostar mais no remate antes de meio-campo e que um estilo de jogo que dê preferência ao pontapé sem nexo (por oposição ao gesto técnico do passe), às correrias parvas e à tentativa de marcar golo sempre que se está no meio-campo ofensivo é um estilo, na cabeça de Miguel Lourenço Pereira, com menos problemas ofensivos. Faz sentido. Para este senhor, jogar à bola é como dar marteladas num prego. Como se não bastasse, tem a capacidade de juntar a Xavi, Iniesta e Silva, jogadores de toque curto e refinado, que procuram a tabela e jogam de cabeça levantada, o jogo rectilíneo, individualista e de espaço nas costas das defesas de Jesus Navas, como se uma coisa tivesse a ver com a outra. Para finalizar, ainda é capaz de, num tom sarcástico, elogiar a verticalidade de Messi (ignorando que o argentino privilegia o mesmo tipo de coisas que os colegas do Barcelona) e menosprezar o futebol dos restantes colegas que, segundo ele, jogam apenas para o espectáculo. Aquilo que Miguel Lourenço Pereira não consegue perceber é que existe uma coincidência entre o estilo de "orquestra" desse futebol e a eficácia do mesmo. E isto por uma só razão, que desconfio que o senhor Miguel Lourenço Pereira ainda está para descobrir: é que futebol não é halterofilia.

10. A saga continua com o seguinte:

"Espanha abre muito bem o campo, fecha muito bem os espaços defensivos, troca muito bem a bola pelo meio, numa série de 50 passos sem sentido que não o de nao perder a bola, e subitamente tenta passes rápidos para o espaço onde surge um jogador veloz para encarar. Ou, com defesas mais fechadas, procura, qual equipa de andebol, circular a bola à volta da área à procura do falho de marcaçao (golo a Portugal) ou do remate de meia distancia (papel de X. Alonso, Ramos ou Villa)."

O único sentido que Miguel Lourenço Pereira encontra para a troca de bola espanhola é o não perder a posse de bola, como se isso por si só fosse mau. E sugere ainda que os espanhóis trocam a bola sempre à espera de uma falha de marcação, não arriscando o passe se tal não ocorrer. O que Miguel Lourenço Pereira não percebe é que a posse de bola serve precisamente para provocar esses erros e que os cinquenta passes têm, além da virtude de permitir manter a posse de bola e, por isso, não ter de defender, a maior virtude de fazer com que o adversário, na tentativa de recuperar a posse de bola, se desposicione. Mais brilhante do que isto só mesmo o sotaque brasileiro com que articula o seu pensamento nesta frase, usando não só o extraordinário verbo "encarar" como inventando o substantivo masculino "falho".

11. Voltando a querer impingir a sua teoria de que isto é exactamente o mesmo que aquilo que os italianos fazem tradicionalmente, Miguel Lourenço Pereira afirma então o seguinte:

"Esse modelo de jogo é bastante similar ao historico futebol italiano, sempre com um ponta de referencia, um meio campo estendido pelo terreno de jogo, um duplo pivot-defensivo e um regista (Xavi como Pirlo) a pautar o jogo. Com menos "tiki taka" inconsequente, que os italianos são bem mais práticos. Pode não ser tão estético, mas o jogo italiano de base é muito similar ao jogo espanhol desta equipa. "

Se alguém, algum dia, viu a Itália a jogar qual equipa de andebol, a circular a bola pelos seus jogadores contra uma defesa compacta, enfiada na sua grande área, esse alguém foi Miguel Lourenço Pereira, pois garante que isso é precisamente o que os italianos costumavam fazer. Embora com menos trocas de bola, que os italianos não têm a paciência de santo dos espanhóis. É, portanto, com sabedoria que termina, dizendo que a principal diferença entre o futebol desta Espanha e o futebol dos italianos é uma diferença estética, sendo o resto "muito similar". Como disse no início, não sei se consigo classificar opiniões deste tipo. Parece-me francamente injusto tentar contrariar opiniões de arcas frigoríficas.

12. Já para o fim da conversa na caixa de comentários, Miguel Lourenço Pereira deixa finalmente perceber aquilo que está por trás de todos estes disparates:

"O português tem uma obsessão preocupante com tudo o que vem de Espanha, um sentimento de pequenês mental que faz com que tudo engrandeça. Da mesma forma que Espanha olha para o resto do Mundo aliás."

Trata-se, portanto, de um ódio mesquinho ao povo espanhol, de uma generalização pateta que tem eco no desdém pela selecção que representa o povo que abomina. A análise da selecção espanhola é assim influenciada pelo sentimento que nutre pelo povo que essa selecção representa. O que Miguel Lourenço Pereira, contudo, não percebe é que, da mesma forma que há portugueses que padecem daquilo a que Fernando Pessoa chamou "provincianismo", que consiste em elogiar tudo o que vem de fora, neste caso, de Espanha, e que coincide com a "pequenês mental" a que Miguel Lourenço Pereira se refere, há também portugueses que, num ponto diametralmente oposto, padecem de um nacionalismo tonto que consiste em rejeitar obsessivamente o que vem de fora, neste caso, de Espanha, e que é no fundo a doença do senhor Miguel Lourenço Pereira. Mais engraçado é quando a pessoa que o faz vive ou trabalha em Madrid.

13. Logo a seguir, vem a minha frase preferida: "ninguém espeterá 4 a esta equipa porque o seu futebol cinico, disfarçado de estética de museu, nunca o permitiria." Numa só frase, Miguel Lourenço Pereira consegue transgredir várias vezes a gramática portuguesa, primeiro ao inventar o verbo "espeter", depois esquecendo o acento de "cínico", e finalmente usando o condicional "permitiria" na oração causal quando na oração principal tentara usar um futuro. O jornalismo é tão bonito! Mas o que é importante é que, para Miguel Lourenço Pereira, a Espanha joga um futebol cínico, que parece muito bonitinho e servir para entreter, mas que afinal de contas é um engodo para atrair o adversário e depois atacar pela certa, como faziam as selecções italianas. Aquilo que Miguel Lourenço Pereira não percebe é que ter a posse de bola, e fazer tanto por tê-la, como seja pressionar alto ou não a perder à toa, é a maior declaração de intenções de uma equipa. Ao ter a posse de bola, a Espanha deixa necessariamente de ser cínica. Quer a bola, assume que a quer, e quer a bola para vencer o jogo. O adversário sabe-o perfeitamente e é por isso que se fecha a sete chaves lá atrás. Isto é o oposto do cinismo italiano, cuja estratégia consistia em "fingir" não querer atacar e não querer a bola para depois, assim que a recuperava, chegar à frente e, sem rodeios, sentenciar os desafios. Se há alguma coisa que a Espanha não é é cínica. E o futebol dos espanhóis é tudo menos disfarçado.

14. Quando confrontado com a ideia de que a Itália, ao contrário da Espanha, se sentia confortável era sem a bola, Miguel Lourenço Pereira propõe que tal acontecia porque, ao contrário da Itália, que era uma selecção multifacetada e se sentia confortável a jogar de muitos modos, a Espanha "joga sempre o mesmo estilo de jogo, mesmo tendo opçoes para outras abordagens". Para Miguel Lourenço Pereira, portanto, a Espanha está refém do seu estilo de jogo horizontal e irritante, com muitos problemas ofensivos, no qual os jogadores só sabem fazer passes. Com tantas deficiências no estilo de jogo e não tendo competência para jogar de outro modo, gostava muito que o senhor Miguel Lourenço Pereira explicasse como é que a Espanha conseguiu ser campeã do mundo.

15. Por esta altura, intrometeu-se um leitor espanhol na conversa, obviamente para criticar, com bons argumentos, a proposta atoleimada de Miguel Lourenço Pereira. Quando este leitor, apresentando como argumentos o facto de a Espanha, ao contrário do que acontece tradicionalmente com as selecções italianas, ter sido a equipa que mais rematou, que mais passes e posse de bola teve, que mais faltas sofreu e que menos faltas fez, dinamitou o argumento de Miguel Lourenço Pereira, a resposta não podia denotar melhor a xenofobia evidente desde o princípio do texto, assim como a estultícia que lhe vem atrelada, e Miguel Lourenço Pereira, depois de sugerir, com imbecilidade e despeito, que até os galegos podem opinar sobre futebol, acaba por contra-argumentar com isto:

"Uma equipa com muita posse de bola no miolo nao é uma equipa ofensiva. É uma equipa controladora. O que é bem diferente. Contra defesas organizadas há alternativas tácticas que Espanha nao se presta a utilizar, provavelmente porque nao sabe."

Não, caro Miguel Lourenço Pereira. A posse de bola, quando utilizada como arma, como a Espanha, é tudo em futebol. Serve, por exemplo, para ser campeã do mundo. É uma equipa ofensiva e controladora, não uma coisa ou outra isoladamente. Tendo a bola, ataca-se e, ao mesmo tempo, defende-se pelo simples facto de não se estar a defender. Contra defesas organizadas, há muitas maneiras de marcar golo. A mais eficaz e a que mais garantias de sucesso dá é a posse e circulação de bola rápida, com passes curtos, tabelas, apoios próximos, paciência e muita qualidade de passe e recepção. A Espanha não utiliza alternativas tácticas não só porque é fortíssima neste estilo como porque percebe que não há melhor maneira de alcançar o que pretende.

16. Como a idiotia de Miguel Lourenço Pereira não parece ter limites, continua aventando que o futebol da Espanha, porque "lento e aborrecido", não ficará na História. Miguel Lourenço Pereira está por isso convencido de que, daqui a dez anos, as pessoas se vão lembrar é da "fresca Alemanha" e não desta Espanha. Como Miguel Lourenço Pereira é tão bom na arte da adivinhação como a falar de futebol, não sabe o que diz. Aliás, poucas selecções serão tão lembradas como esta Espanha no futuro, pela revolução ideológica que esta vitória representa. Tal como o futebol total da Laranja Mecânica de setentas e o estilo italiano que Arrigo Sacchi ajudou a cristalizar, o "tiki taka" do Barcelona de Guardiola importado por esta Espanha ficará evidentemente para sempre e constitui até um salto evolutivo que tem apenas um ou dois precedentes significativos. Só a má fé, a desonestidade e a galhardia de novo-rico de Miguel Lourenço Pereira é que não o percebem.

17. Já noutro texto, quando fala dos onze melhores jogadores do mundial, Miguel Lourenço Pereira volta a deslumbrar e diz:

"sem Xavi esta equipa espanhola era um conjunto absolutamente vulgar. De isso não sobra nenhuma dúvida."

Gosto, antes de mais, da forma como Miguel Lourenço Pereira "descontrai" a contracção da preposição "de" com o pronome demonstrativo "isso", revelando uma vez mais a sua extraordinária vocação para inventar não só palavras como categorias gramaticais inteiramente novas. Para Miguel Lourenço Pereira, todo o plantel da Espanha, à excepção de Xavi, é portanto absolutamente medíocre. O que é estranho, não só porque antes diz que Piqué é o melhor central do mundo, como num texto mais recente sugere que a Espanha reunira o melhor plantel de sempre da sua História e que, por isso, merecera bem a vitória. Não sei se Miguel Lourenço Pereira sofre de esquizofrenia, mas julgo que não. Estou mais virado para falta de coerência crónica agravada pelo facto de querer dizer mal de uma selecção que representa um povo que odeia e acabar por não conseguir organizar as ideias.

Foram portanto dezassete pontos interessantes acerca das ideias de Miguel Lourenço Pereira sobre o futebol da selecção espanhola. Como terá ficado visível, há pessoas muito esquisitas. Miguel Lourenço Pereira é uma delas. Não sei se os três nomes denotam a sua natureza aristocrática e antecipam o seu carácter nacionalista e xenófobo, tão vincado naquilo que procura defender. Sei, contudo, que Miguel Lourenço Pereira tem por patologia o não perceber nada do que diz e, como muito gente, o querer falar do que não sabe. É um mal comum nos dias que correm. Tal como muita gente, Miguel Lourenço Pereira não percebe patavina do futebol desta Espanha. Juntando a isto o facto de não perceber muito de português e de destilar sentimentos violentos contra o país representado por essa selecção, o resultado só poderia ser ridículo. Se há , todavia, muita gente que não percebe o futebol da Espanha, mas se resigna à sua superioridade, o quixotismo de Miguel Lourenço Pereira, espanholice que afinal, contra a sua vontade, tão bem o define, fez com que visse nesse futebol o mais perfeito contrário do mesmo. Não querendo com isto fazer qualquer juízo de valor acerca dos dois termos da comparação, comparar esta selecção àquilo que costumam ser as selecções italianas não faz qualquer sentido e só merece o descaro do riso.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Pontos sobre o Mundial

1. Os movimentos interiores de Müller eram aquilo que tornava a equipa alemã, a atacar, uma equipa imprevisível. Ao aparecer em zonas centrais, entre os médios e os avançados, concedia não só todo o flanco para as subidas de Lahm como fornecia linhas de passe verticais, povoava zonas entre linhas e unia o sector do meio-campo ao atacante. O segundo golo frente à Argentina é a demonstração disto. É o posicionamente de Müller que permite o passe vertical e o desequílbrio ofensivo decisivo. Sem Müller, a Alemanha, do ponto de vista colectivo, era só mais uma equipa.


Argentina 0-2 Germany

Perry | Vídeo do MySpace

2. Num mundial em que um elevado número de equipas apresentou um duplo-pivot defensivo no meio-campo ou, simplesmente, dois jogadores actuando de perfil, ficaram visíveis os problemas crónicos desse tipo de estrutura. A Alemanha não conseguiu suster a posse de bola espanhola e o constante povoamento da zona entre os centrais e os médios-defensivos, afundando-se no campo; o Brasil nunca foi uma equipa compacta e concedeu sempre espaços indesejáveis, caindo contra uma Holanda que pouca qualidade tem a trocar a bola; a Inglaterra e a França nunca se encontraram; a Holanda sofreu todos os golos de bola corrida por causa dessa estrutura. Só a Espanha, e sobretudo porque tem mais tempo a bola, não tem sofrido por causa dos dois jogadores lado a lado no meio-campo. A epidemia, porém, merecia uma reflexão.

3. No jogo da Holanda contra o Brasil, não foram apenas as referências ao homem evidenciadas pelo comportamento de Heitinga, Van Bronckhorst ou De Jong que permitiram ao Brasil chegar ao golo. O espaço central deveria estar sempre protegido, mas a inclusão de dois médios defensivos, ainda por cima com este tipo de comportamento, torna esse espaço um deserto. Kaká arrasta De Jong e não há maneira de Van Bommel fechar o espaço rapidamente. Assim, forma-se uma avenida que Filipe Melo aproveita, fazendo um passe rasteiro de 40 metros a isolar Robinho, possibilidade inaceitável a este nível.


Netherlands 0-1 Brazil

Simão | Vídeo do MySpace

4. Ainda a Holanda, desta vez contra o Uruguai. O golo de Forlan evidencia o problema das linhas defensivas holandesas. Com dois médios de perfil, cria-se um buraco entre linhas que Forlan aproveita. Recebe um passe vertical e, tendo todo o tempo do mundo ao seu dispor, dribla um adversário e chuta sem oposição. Apesar de facilitado pelo erro técnico do guarda-redes holandês, a chave do lance está no espaço que o duplo-pivot defensivo dos holandeses concede.


Uruguay 1-1 Netherlands

Ricardo | Vídeo do MySpace

5. O futebol da Holanda é pobre. Da afirmação não se segue que não merecesse estar onde está. A única equipa individualmente superior ou semelhante que enfrentou foi o Brasil, que também não apresentou um futebol extraordinário. Um mundial, porém, em que esta Holanda chega tão longe, só pode ser um mundial fraco. Não houve uma única equipa, das que enfrentaram a Holanda, que soubesse aproveitar as deficiências defensivas e a pobreza ofensiva dos holandeses. Junte-se ainda a isto a forma quase fortuita como a equipa adquiriu vantagem nos seus jogos e explica-se a aparente facilidade com que chegou até à final. Sobre o momento ofensivo, é sobretudo relevante falar daquilo que não se vê. Não se vêem movimentos de aproximação e, por conseguinte, capacidades colectivas interessantes na troca da bola; não se vêem os médios a dar apoios laterais ao portador da bola, quando esta está no flanco; não se vê movimentos sem bola significativos; não se vêem ideias; não se vê imaginação; não se vê capacidade para mandar no jogo. Apesar de muitos tecerem considerações positivas em relação ao futebol dos holandeses, gabando-lhe a genialidade ofensiva e o pragmatismo com que tem abordado os jogos, a Holanda tem sido pouco mais que medíocre. A genialidade é meramente individual e o pragmatismo é uma palavra mal usada para se referirem a "muitos homens atrás da linha da bola". A Holanda não defende bem, arrisca é pouco; a Holanda não ataca bem, tem é bons atacantes.

6. Wesley Sneijder tem sido, para muitos, dos melhores jogadores do torneio. Acho que todo aquele que o afirma não tem visto bem os jogos da Holanda. Não está em causa o valor do jogador. Está em causa aquilo que tem feito. Antes de mais nada, creio que esta opinião, em muitos casos, deve estar viciada pelo facto de ele já ter cinco golos. O problema é que é preciso ter em conta como é que os marcou. Contra o Japão, um frango monumental do guarda-redes nipónico; contra a Eslováquia, de baliza aberta, após trabalho de Kuyt; contra o Brasil, um cruzamento desviado por Filipe Melo e um de cabeça, após bola parada; contra o Uruguai, às três tabelas. Sneijder ainda não marcou, por assim, dizer, um golo em que pudesse dizer-se que fora seu todo ou o principal mérito. Por isso, se avaliar-lhe a prestação pelos golos obtidos já não fazia muito sentido, menos o faz quando os golos aconteceram como aconteceram. Para além disto, Sneijder tem jogado muito menos do que têm afirmado. Raramente se aproxima do portador da bola; raramente faz movimentos horizontais para criar superioridade numérica nas linhas ou fornecer apoio ao portador da bola; não vai para a confusão, procurando uma tabela. Prefere geralmente alhear-se do jogo e procurar espaços sem ninguém, para poder receber e fazer o que bem entender. Mas com isso foge ao jogo e não ajuda a equipa a encontrar soluções mais complexas. Sneijder tem-se protegido, procurando receber a bola sempre em condições ideais. Com isso, não só tem estado menos em jogo do que poderia como não tem sido colectivamente competente. Continua, sempre que tem a bola, a evidenciar uma qualidade de passe muito boa. Mas pouco mais do que isso tem apresentado. E, sinceramente, isso não chega para estar entre os melhores do torneio. Comparar a sua prestação com a de Xavi ou Iniesta, por exemplo, não faz o menor sentido.

7. Muito se falou de Fábio Coentrão e da sua forma neste mundial. Não creio que se deva ceder à euforia. A análise fria e racional mostra que Fábio Coentrão fez um bom mundial, é verdade, que foi um contributo ofensivo relevante no flanco esquerdo português. Isso é verdade e é nisso que Coentrão é, de facto, forte. Mas está longe de ser um jogador completo e de ter mostrado, neste mundial, que estava perfeitamente adaptado à posição de lateral. Dizem os que defendem o contrário que Coentrão esteve extraordinário a defender e que, se mais provas fossem precisas, que Maicon e Dani Alves não lhe criaram grandes problemas. O que estas pessoas estão a esquecer é que Portugal defendeu quase sempre enfiado no seu meio-campo e maioritariamente em organização e em superioridade numérica. É natural, nessas condições, que os defesas estejam menos expostos. Fábio Coentrão não sentiu grandes dificuldades a defender, é verdade, mas isso, por si, não significa nada. Pelo modo como Portugal defendeu, sobretudo contra o Brasil e contra a Espanha, seria natural que assim fosse. Raramente os defesas tiveram que corrigir rapidamente o seu posicionamento, raramente ficaram em igualdade numérica ou em lances de um para um com os avançados, raramente ficaram com muito espaço para cobrir. Fábio Coentrão atacou bem e isso é digno de registo. Mas fiquemos por aqui, porque não foi verdadeiramente testado para aquilo em que ainda lhe faltam atributos.

8. Num mundial pobre, em termos tácticos, não há um treinador que tenha merecido mais do que elogios ocasionais. Os dois principais nomes são os de Marcelo Bielsa e de Joachim Löw, embora ambos tivessem dado importantes tiros no pé. Bielsa começou bem e mostrou que uma equipa individualmente menos capaz pode bater o pé aos grandes e jogar deliberadamente ao ataque. Falhou rotundamente ao abdicar das suas principais ideias na eliminatória frente ao Brasil. O jogo de posse e pressão alta dos chilenos, em 343 losango, com Matías Fernandez e Valdivia como principais referências, deu lugar ao jogo veloz, em 442, sem os dois nomes acima referidos. O medo do Brasil ou a cobardia de não ter sido fiel a si mesmo valeram a Bielsa a desilusão. A de todos os chilenos e a nossa. Quanto a Joachim Löw, tem o mérito de ter colocado a selecção alemã a jogar um futebol menos germânico do que é costume. Muito disso, como já referi, era afinal fruto do comportamento criativo de uma individualidade, mas mesmo assim os alemães eram organizados e pareciam pensar de um modo colectivo. Falhou, contudo, como já falhara no Euro 2008, a opção por um 442 clássico e a ausência de movimentos atacantes imprevisíveis, para além dos protagonizados por Thomas Müller.

9. O Uruguai chegou longe, mas nunca impressionou. A caminhada teve na arbitrariedade do calendário a sua principal causa e os uruguaios tiveram apenas o mérito de nunca perder contra equipas individualmente mais fracas. Percebeu-se, todavia, que não podiam ir muito mais longe e que, assim que tivessem pela frente um conjunto mais forte, ficariam pelo caminho. Dentro dos uruguaios, é preciso porém destacar Diego Forlan, um jogador claramente acima da média. Quaanto a Luis Suarez, para muitos uma grande revelação, não posso deixar passar a oportunidade de dizer que me parece extraordinariamente sobrevalorizado. É um jogador que finaliza bem e que aparece bem em zonas de finalização. Mas é só. É incrivelmente prejudicial na construção e toma invariavelmente más decisões com bola. A quantidade absurda de golos que marcou no campeonato holandês deve ser relativizada, tal como relativizado deve ser o seu real valor. Parece-me um jogador do estilo de Mateja Kezman, muito competente num campeonato em que se passa muito tempo perto das balizas, mas sem qualidade para grandes voos.

10. Diego Maradona e Dunga montaram equipas à imagem daquilo que foram enquanto jogadores. Por razões diferentes, nem um nem outro mostraram competência enquanto treinadores de futebol. Vem isto demonstrar que, para se ser treinador, não basta ter sido jogador, por mais genial que se tenha sido. Para Maradona, o futebol é estritamente individual e, nos dias que correm, só um milagre faria com que alguém com uma concepção do jogo deste tipo pudesse ser campeão do mundo.

11. Esta Espanha, ao contrário do que se tem dito, não é o Barcelona. Dito isto, é mais o Barcelona do que era a selecção de 2008, ao contrário do que também algumas pessoas pensam. A selecção de 2008 não trocava tanto a bola como esta, não se detinha tanto em passes e tabelas como esta; não tinha também mais do que três jogadores do Barcelona (Xavi, Iniesta e Puyol), enquanto esta tem seis ou sete; e, sobretudo, Guardiola ainda não era treinador do Barcelona na altura, com toda a revolução que isso acarreta. No entanto, o que é preciso frisar é que esta Espanha, ainda que tenha adoptado o estilo do Barcelona, não tem os automatismos da equipa de Guardiola. Assim, o que há de Barcelona nesta equipa é a quantidade absurda de jogadores do Barcelona no onze. A única coisa que esta selecção tem do Barcelona é as individualidades. Colectivamente, como disse, só o estilo é igual. Nem a competência na pressão, nem a mecanização sem bola, nem o esquema táctico são sequer parecidos. O que é igual é o estilo.

12. O estilo da Espanha é, ainda assim, a principal bandeira desta equipa. E se os espanhóis se sagrarem campeões do mundo, será porventura a vitória conceptual mais importante desde o início do século. O que os espanhóis têm mostrado ao mundo é que este estilo, este jogar para o lado e para trás, este brincar à rabia com os adversários, o ter e querer sempre a bola, a certeza do passe, a profusão de tabelas, o jogo de apoios e pelo centro do terreno é o modo mais eficaz de ser superior a qualquer adversário. Este estilo, ainda que somente o estilo, mesmo faltando toda a mecanização e entrosamento entre jogadores, mesmo faltando limar os mais diversos detalhes, é assim o primeiríssimo e mais importante princípio que uma equipa de topo deve ter. Os espanhóis, sem serem colectivamente uma equipa bem trabalhada, gozam do facto de terem jogadores que preferem jogar neste estilo. E essa preferência faz deles, quando juntos, o mais forte conjunto em prova.