Continua a prevalecer, no discurso acerca de avançados, a máxima simplista e redutora de que avançados servem para fazer golos, e jogadores que actuem nessa posição continua a ser avaliados de acordo com os golos que marcam, as oportunidades que têm para o fazer, ou, em suma, a capacidade que têm para aparecer nos momentos-chave das partidas. Isto é redutor porque os momentos-chave são uma ínfima parte do que acontece num jogo de futebol, o que significa que certos jogadores são avaliados por aquilo que produzem ou parecem produzir numa parte ínfima do jogo. Já aqui chamei a atenção, inúmeras vezes, para o erro analítico em que consiste pensar desse modo, mas a verdade é que as pessoas continuam a ser preguiçosas, continuam a ver o jogo como bem lhes apetece, dando apenas atenção aos momentos em que a bola ronda as balizas ou a emoção nas bancadas é mais intensa. Desse ponto de vista, nem sequer percebo por que se interessam tanto por futebol, nem percebo porque perdem 90 minutos a ver um jogo de futebol. Mais valia perderem apenas alguns minutos a ver os resumos dos lances mais relevantes. Pessoalmente, considero que essas pessoas não sabem ver um jogo de futebol e não têm, por isso, fundamentos nenhuns para analisar o que quer que seja. Um jogo de futebol é muito mais do que 6 ou 7 momentos por partida, em que a bola entra ou fica perto de entrar numa baliza, e um avançado é muito mais do que aquilo que aparece coligido nas melhores ocasiões de um jogo.
No lance do terceiro golo do Chelsea esta semana, por exemplo, Fernando Torres não toca na bola. E, no entanto, 80% do golo é dele. É-o porque é ele quem possibilita a Hazard passar com a facilidade com que passa pelo último defesa. Torres é um dos muitos mal amados do futebol actual, essencialmente porque é avançado, custou muito dinheiro, e não marca tantos golos como isso. Confesso que Torres não é o meu avançado predilecto, mas está longe de ser o trambolho com que é hoje em dia confundido. Duas coisas, a meu ver, contribuíram para que não facturasse no Chelsea como o fazia em Liverpool: o facto de as equipas jogarem de modo totalmente distinto (Torres era, em Liverpool, o único avançado de uma equipa que jogava, por sistema, em transição, não lhe sendo pedido mais do que algumas arrancadas por jogo, quando tinha espaço) e o facto de ter modificado substancialmente o seu corpo (a massa muscular actual de Torres não tem nada a ver com a que tinha quando chegou a Inglaterra), o que fez com que fosse perdendo agilidade e destreza técnica. À margem destas considerações, Torres continua a ser um avançado inteligente, sobretudo com espaço. Pode não ser um jogador extraordinário para funcionar como apoio frontal, mas é alguém que percebe muito bem as necessidades da equipa, em lances de pouca densidade numérica como sejam lances de contra-ataque típico. Neste tipo de situações, sabe geralmente o que fazer, protege-se muitíssimo bem da ratoeira do fora-de-jogo e é capaz de se adaptar rapidamente a mudanças de circunstâncias. Foi o que aconteceu neste lance. Acompanhou o lance até que Hazard ficasse de frente para o defesa e, nesse momento, iniciou o movimento nas costas do belga, criando a dúvida no defesa. Torres marcou dois golos, nesta partida, mas o seu melhor momento terá sido sem dúvida este.
Aceitar a última frase pode não ser fácil para toda a gente. Afinal, Torres não assistiu, não marcou. Nem sequer tocou na bola. E, no entanto, é bem possível que este golo seja mais seu do que qualquer um dos outros que marcou. É talvez sabido que, para mim, um avançado é como outro jogador de campo qualquer e deve fazer mais ou menos o que os outros jogadores de campo devem fazer, a saber, tomar boas decisões. É por isso que não me cativam alguns dos avançados mais mediáticos da actualidade, sobretudo aqueles que se destacam por serem combativos, irrequietos, brigões e possantes. Aprecio essas características se acompanhadas de qualidades técnicas evidentes e, acima de tudo, capacidade de compreensão do jogo. Da forma como entendo o jogo, jamais conceberia encaixar um avançado com as características do croata Mandzukic ou dos espanhóis Negredo e Soldado, jogadores por quem se pagou muito dinheiro. Mas também não conceberia encaixar outros, alguns dos quais muitíssimo queridos. Mario Balotelli talvez nem seja um bom exemplo, pois faz-me alguma confusão que a razão pela qual continua a ser colocado entre os melhores do mundo seja a irreverência. Aliás, o italiano é hoje o exemplo paradigmático de um erro muito comum no passado, o de se achar que a irreverência era sinónimo de talento. O raciocínio é mais ou menos este: a grande maioria dos jogadores talentosos são irreverentes; Balotelli é irreverente; logo, Balotelli é talentoso. O problema, claro está, é que mesmo que todos os talentosos fossem irreverentes isso não significaria que todos os irreverentes sejam talentosos. O conjunto dos irreverentes não coincide com o dos talentosos, e o facto de certos jogadores serem as duas coisas não implica que todos o sejam. Balotelli é irreverente, de facto, mas talento tem pouco.
Os dois avançados que, todavia, mais confusão me fazem hoje em dia, sobretudo pela diferença entre a real qualidade deles e aquilo que deles se diz, são o uruguaio Luis Suarez e o brasileiro Diego Costa. É curioso que, além de os achar parecidos em termos futebolísticos, acho-os muitíssimo semelhantes em termos de carácter. São avançados com mau feitio, que passam o jogo "picados" com os defesas contrários, sejam eles quem forem, que refilam em todos os lances, que se fazem de vítimas, que agridem por tudo e por nada, sem pudor, etc.. E, como jogadores, são avançados que raramente jogam de frente, que raramente servem de apoio frontal aos médios, que "metem" a cabeça no chão assim que recebem a bola. Tecnicamente, são ambos abaixo da média, não obstante conseguirem desembaraçar-se várias vezes em situações de um para um. Conseguem-no porque compensam a falta de técnica com um vigor físico impressionante. Seguram e protegem a bola não com a habilidade mas com os cotovelos, o corpo arqueado, e a disponibilidade física. Veja-se como conduzem a bola, por exemplo, e facilmente se perceberá que ela queima nos seus pés. Nada disto seria relevante, contudo, se soubessem ler o jogo, se fossem inteligentes e decidissem bem. Mas raramente o decidem. Vão marcando golos porque são, do ponto de vista atlético, muito fortes, e acima de tudo porque gozam da complacência de alguns árbitros (Suarez, embora beneficie muito de jogar em Inglaterra, até tem sido penalizado por algumas das suas acções, mas Diego Costa tem passado impune, quase sempre), porque os defesas adversários vão na cantiga e são incapazes de perceber que jogadores como Suarez e Diego Costa beneficiam de marcações apertadas, devendo antes dar-lhes algum espaço, e porque jogam em equipas em que se fomenta a ideia de que o avançado é um jogador que se deve desembaraçar sozinho. Veja-se a quantidade de ressaltos que ganham, a quantidade de bolas que ganham porque esbracejam e esperneiam, e a quantidade de golos que marcam com todos os músculos da cara contraídos. É a grande maioria. Tudo o que conseguem é fruto do esforço e da agressividade com que jogam, não da classe ou do talento que têm. E o esforço e a agressividade são daqueles atributos que, por si só, dependem sempre de factores extrínsecos para ser uma mais-valia: da interpretação dos árbitros, da atenção e da esperteza dos defesas e do sistema de jogo em que estejam inseridos. Numa equipa a sério, Luis Suarez e Diego Costa seriam sempre mais um problema do que uma solução.