O futebol é um jogo peculiar. Uma das coisas que o torna tão distinto de outros jogos (da grande maioria, aliás), é ser um jogo em que, tipicamente, o número de golos, para cada um dos lados, é reduzido. Esse simples facto faz com que seja mais frequente que uma equipa teoricamente mais fraca consiga derrotar uma equipa teoricamente mais forte. Ou melhor, o facto de o futebol ser peculiar dessa maneira faz com que o resultado de um jogo dependa mais dos detalhes do que outros jogos, o que, por sua vez, faz com que, para que equipas teoricamente menos fortes consigam vencer ocasionalmente alguns jogos, por vezes basta serem felizes num ou noutro detalhe. Outro aspecto desta peculiaridade tem a ver com o modo como as equipas reagem emocionalmente a resultados adversos. Ao contrário de jogos em que há muitos golos ou a pontuação é alta, estar em desvantagem tem um peso emocional muito maior, em futebol. Isto porque, dependendo o futebol tanto dos detalhes, e sabendo a equipa que se encontra em desvantagem que, para recuperar, dispõe de uma quantidade reduzida de oportunidades, sentir o tempo a passar é francamente menos confortável do que noutras modalidades.
É muito frequente, a este respeito, que comentadores desportivos e analistas profissionais cheguem à conclusão, após o término de uma partida, que um resultado desnivelado espelha a supremacia do vencedor sobre o vencido, evidenciada desde o primeiro ao último minuto, negligenciando os diferentes momentos anímicos das equipas, e a forma como a marcha do marcador influenciou esse próprio resultado final. Não é raro, por exemplo, que um golo a uma determinada altura da partida modifique por inteiro o que estava a ser o jogo, e que, portanto, tudo aquilo que acontece depois desse golo mereça a consideração dos efeitos que esse golo produziu. Muitas equipas estão a jogar bem até ao momento em que fazem um golo e depois, relaxando, acabam por permitir ao adversário que melhore o seu futebol. E, ao contrário, acontece o mesmo. Que análise merece um jogo em que uma equipa domina os primeiros 80 minutos, mas que, por ficar reduzida a dez jogadores nessa altura, num lance em que o guarda-redes comete uma falta dentro da área sobre o avançado adversário, acaba por sofrer 3 golos nos últimos 10 minutos, perdendo sem apelo nem agravo? Perde bem? Merece o adversário todos os louros por 10 minutos caprichosos? Evidentemente que não. Em futebol, como disse um dia Jorge Jesus, é possível a uma treinador de uma equipa que acaba de ser goleada afirmar, sem estar a faltar à verdade, que a sua equipa foi superior.
Vem isto a propósito, claro está, da goleada imposta pelo Bayern de Munique ao Barcelona. Muitas coisas podem ser ditas sobre o jogo: sobre a apatia incompreensível de Tito Vilanova, sobre a força bávara, sobre a condição física de Messi, sobre o terreno de jogo, sobre a arbitragem, sobre o fim do projecto catalão, etc.. Pessoalmente, tenho algumas opiniões sobre cada uma dessas coisas, mas não é disso que quero falar. Prefiro falar sobre desnorte emocional e sobre resultados que não espelham o que se passa em campo. Já noutras ocasiões abordei, muito ao de leve, este assunto. Num dos casos, defendi que a única análise séria de uma partida que tinha tido, claramente, duas fases distintas, separadas por um momento crucial que modificou a forma como as equipas passaram a encarar os minutos que faltavam, era aquela que se focasse na primeira dessas fases. A grande maioria das pessoas achou que não podia separar fases, o que me faz, confesso, alguma confusão. O futebol, como disse anteriormente, é um jogo peculiar; o resultado final define-se, muitas vezes, num ou noutro lance; é natural, pois, que cada um dos lances decisivos tenha um impacto emocional enorme nos atletas. Sim, em futebol, nenhuma análise que negligencie isto, e nenhuma análise que não contemple a possibilidade de fases radicalmente distintas do jogo, é uma análise séria.
Para muitos, hoje, na Baviera, o Barcelona foi atropelado pelo Bayern. Para mim, que não modifico as minhas leituras constantemente, esteja o resultado favorável a uma equipa ou a outra, a única coisa que foi atropelada hoje foi o bom senso. Até ao minuto 50, altura em que o Bayern fez o segundo golo, que ocasiões de golo houvera realmente? O que fizera o Bayern até então, para além de defender? De que modo incomodara o Barcelona, em contra-ataque, ou no que quer que fosse? Até ao segundo golo, a melhor equipa em campo foi o Barcelona. Teve dificuldades no último terço do terreno, é certo, não conseguindo tantas combinações como habitualmente, mas estava a fazer o seu jogo e estava a conseguir precaver-se das investidas do adversário. Fortuitamente, até porque a regularidade dos dois primeiros golos (já para não falar da do terceiro, que é escandalosa) é bastante duvidosa, viu-se a perder por dois golos e começou a perder a concentração. Ainda assim, os minutos que se seguiram não foram necessariamente maus. É verdade que a equipa passou a jogar menos pacientemente e que passou a esticar, ocasionalmente, o jogo, e também é verdade que passou a não ser capaz de controlar as investidas germânicas, sucedendo-se alguns lances de relativo perigo, coisa que até então não tinha acontecido. Mas o momento decisivo foi o do terceiro golo, numa altura em que o Barça crescia e acabara de ter duas oportunidades claríssimas de golo, ambas pelo jovem Marc Bartra. Com o terceiro golo dos alemães, o Barça perdeu finalmente o norte e, a partir daí, sim, o Bayern foi claramente superior. Aconteceu isto ao minuto 73. Significa isto que, dos 90 minutos que uma partida tem, as descrições megalómanas que por aí fora se têm repetido apenas contemplam 17 minutos, mais ou menos 20% de toda a partida. A imagem que fica é a última, e as pessoas têm facilidade em descrever 90 minutos de acordo com o que viram nos últimos minutos da partida. São mentirosos, ou simplesmente estúpidos, mas é assim que são, para infelicidade dos que o não são.
Os últimos minutos da partida, sim, foram penosos para o Barça. Foram-no porque a equipa perdeu toda a concentração, porque Tito Vilanova não soube segurar emocionalmente a equipa, porque não mexeu tacticamente com o jogo, nem sequer trocou unidades, à excepção da entrada de David Villa no final, porque os jogadores sentiram que a eliminatória começava a escapar-lhes definitivamente das mãos. Mas, tirando esses minutos de desnorte e, aceite-se, aquilo que se passou depois do 2-0, foi o Barcelona assim tão inferior ao Bayern? Em quê? Não o foi, como não o tinha sido frente ao Milan, quando perdeu por 2-0 em San Siro. Simplesmente, os resultados não espelham o que se passa em campo. Muitas vezes, são fruto de um conjunto de factores. Hoje, o Bayern goleou o Barcelona por várias razões, e nenhuma delas implica que tenha sido, em termos gerais, superior ao seu adversário. Goleou o Barcelona por 4-0 porque marcou nas duas primeiras ocasiões que teve, e em lances, no mínimo, duvidosos; goleou porque, quando o jogo já estava mais equilibrado, teve a felicidade de fazer o terceiro, logo após 2 oportunidades claríssimas do Barcelona, e, uma vez mais, após beneficiar de um erro crasso da equipa de arbitragem. E fez o quarto e deu a imagem de superioridade que deu, nos últimos minutos, porque tudo o que se passou antes condicionou emocionalmente a equipa catalã. Tão simples quanto isto. Hoje, o Barcelona foi superior até ao momento em que se desnorteou, precisamente por essa superioridade não estar a ser traduzida numericamente. Não invalida isto que o Bayern não tenha feito um bom jogo, e que não seja a melhor equipa europeia a seguir aos catalães, e que não pudesse ganhar na mesma uma partida que, afinal, não dominou, mas que soube disputar. Não me falem é em superioridade, porque isso é, além de falso, absurdo.
P.S. Sim, o desnorte e a falta de motivação, no final da partida, era tal que era Xavi quem andava a pressionar lá à frente; sim, David Villa evidenciou algum mau ambiente no balneário catalão, ao entrar contrariado; sim, Messi não deveria ter jogado só porque é Messi; sim, Valdez facilitou muito, para não variar; sim, Alexis é horrível e já há muito que o clube deveria ter tentado encaixar dinheiro com ele; sim, Tito Vilanova não tem ideias nenhumas; tudo isto foi mau, e pede reflexão. Mas, num jogo desta importância, ainda por cima quando não tem sido opção senão em jogos em que é preciso fazer descansar titulares, e perante um resultado final tão adverso, que Marc Bartra tenha feito a exibição personalizada que fez só pode ser bom sinal. É também por isto que o projecto catalão não acaba aqui. Aliás, numa época em que aconteceram tantas coisas imprevistas, em que há uma mudança de treinador, em que o novo treinador atravessa uma doença complicada, em que a cada eliminatória europeia e a cada clássico caseiro se falava do fim da hegemonia, muito conseguiu esta equipa. Nem sempre se pode ganhar, e este ano reuniram-se muitas condições para que tal não fosse possível, inclusivamente a lesão de Messi nesta fase da época. Que sobreviva a isto tudo o aparecimento de mais um talento para o futuro, um talento que, havendo coragem, já há muito que deveria ter assumido um lugar no eixo da defesa, parece-me bom. Oxalá não seja feito bode expiatório, e oxalá se perceba que a pequena revolução que é preciso executar no plantel (e na equipa técnica, já agora) passa por dispensar alguns jogadores que não têm condições para continuar (Adriano, Mascherano, Alexis) e permitir a dois ou três jovens (Bartra, Sergi Robert e Cuenca) uma utilização mais sistemática.