domingo, 25 de novembro de 2012

O Talento e os Instintos

No passado, algumas das maiores discussões neste blogue tiveram a ver com a ideia de instintos. Para muitos, o talento de um extraordinário jogador de futebol não se explica; é algo que nasceu com ele, e que, potenciado pela prática, cresceu até se tornar no que é hoje. Por cá, tentámos sempre dissuadir as pessoas deste género de explicação, argumentando que o talento, qualquer que seja, não é inato, mas antes o resultado manifesto de um processo de aprendizagem, muitas vezes inconsciente, que decorre ao longo da vida. Aqueles que acreditam na primeira teoria têm invariavelmente uma crença naquilo que consideram ser "instintos" que nós não temos. É precisamente esta crença que importa, portanto, rebater, agora que me apetece voltar ao assunto. Ora, uma das objecções à ideia de que os seres humanos não têm instintos propriamente ditos (para além, evidentemente, de instintos primitivos como o instinto de sobrevivência) é a observação de comportamentos instintivos em espécies animais. Dirá quem creia em instintos que, se os animais os têm, os seres humanos também os devem ter. O problema é que há pelo menos 150 anos de pensamento filosófico e científico que está a ser ignorado, quando se pensa assim.

De maneira a poder explicar a sua teoria acerca da evolução de todas as espécies, Charles Darwin precisava de mostrar que certos instintos (às vezes extraordinariamente sofisticados) em certos animais não podiam ser características próprias com as quais tinham sido expressamente criados. De acordo com os criacionistas, certos comportamentos de certas espécies, sobretudo comportamentos muito complexos, só podiam ser justificados se se considerasse que tais espécies haviam sido desenhadas originalmente para se comportarem assim, agindo, portanto, por instinto. Como Darwin precisava de refutar a ideia de que as espécies tinham sido criadas tal como, no seu tempo, eram, precisava também de refutar a ideia de que os instintos eram características especiais não adquiridas pela espécie ao longo da sua evolução. Aquilo que, para muitos, eram comportamentos inexplicáveis, teria de ser explicado, por isso, à luz da teoria da Selecção Natural. Todo o comportamento instintivo (ou aquilo a que chamamos comportamento instintivo) era resultado de um longo processo de evolução, sempre a favor do benefício para a espécie. Um dos exemplos mais difíceis de explicar era o das abelhas. Para muita gente, terem as abelhas a habilidade quase matemática de construir uma colmeia de tal modo que esta comportasse a maior quantidade possível de mel com o menor dispêndio de cera possível era sinal de que tinham sido criadas providencialmente. Para Darwin, no entanto, tal habilidade não era resultado de um instinto providencial, mas sim de um processo de selecção que, em cada geração, extinguira as abelhas menos aptas a sobreviver, dando origem a uma espécie com maiores probabilidades de prevalecer:

"(...) as I believe, the most wonderful of all known instinct, that of the hive-bee, can be explained by natural selection having taken advantage of numerous, successive, slight modifications of simpler instincts; natural selection having by slow degrees, more and more perfectly, led the bees to sweep equal spheres at a given distance from each other in a double layer, and to build up and excavate the wax along the planes of intersection. The bees, of course, no more knowing that they swept their spheres at one particular distance from each other, than they know what are the several angles of the hexagonal prisms and of the basal rhombic plates. The motive power of the process of natural selection having been economy of wax; that individual swarm which wasted least honey in the secretion of wax, having succeeded best, and having transmitted by inheritance its newly acquired economical instinct to new swarms, which in their turn will have had the best chance of succeeding in the struggle for existence." (Charles Darwin, On the Origin of Species, ch.VII)

Sendo que, para suportar uma grande quantidade de abelhas durante o inverno, é indispensável uma grande quantidade de mel, e sendo que a segurança de uma colmeia depende de uma grande quantidade de abelhas, fica em posição favorável, na luta pela sobrevivência, a colmeia em que, no processo de construção dos favos que a compõem, se gastar menos mel (a cera da construção resulta da segregação de mel). Diz Darwin, por isso, que é flagrantemente vantajoso que uma abelha, através de uma pequena modificação dos seus instintos, seja levada a construir as células da colmeia o mais próximo possível umas das outras, contribuindo para economizar cera. De um modo, em grande medida, arbitrário, o enxame cujas abelhas precisem, portanto, de segregar menos cera será o mais bem sucedido. Ao fim de algum tempo, será a descendência desse enxame que, por estar assim favorecida, prevalecerá. Assim se foi refinando a espécie, e assim se tornou no que é hoje. Aquilo que a caracteriza, e que temos tendência a chamar "instinto", por não compreendermos de onde vem a sua sofisticação, é afinal tão-somente uma característica que, ao longo da evolução da espécie, foi sendo aprimorada pelas próprias leis da natureza e pela necessidade de sobrevivência a que todas as espécies se vêem sujeitas. Aos poucos, abelhas com "instintos" menos favoráveis foram desaparecendo, sendo por isso natural que as espécies prevalecentes apresentem "instintos" que nos parecem hoje tão aperfeiçoados.

Quando, muito genericamente, se fala em "instinto" animal, esquece-se de que aquilo de que se está a falar é fruto de um longo processo evolutivo, de uma complexa luta pela sobrevivência, e não propriamente uma característica providencial. Por força desse esquecimento, acredita-se muitas vezes que tenham sido igualmente providenciados aos seres humanos certos instintos. Ora, se, tal como nos animais, nenhum ser humano alguma vez nasceu com instintos especiais para o que quer que seja, se todos os seus "instintos" foram adquiridos ao longo da sua evolução enquanto espécie, e sempre em função de necessidades de sobrevivência, e se, por fim, desde que há civilização e, portanto, desde que a luta pela sobrevivência deixou de ser o motor evolutivo da espécie, a tendência evolutiva da humanidade, propriamente dita, já não é a da descendência daqueles que, em cada geração, reúnem o conjunto de características mais favoráveis à sobrevivência, então não há diferença substancial, em termos de "capacidades inatas", entre um etrusco, por exemplo, e um homem do século XXI.

O principal corolário desta demonstração de que, instintivamente, somos substancialmente iguais uns aos outros e iguais, pelo menos, aos nossos antepassados dos últimos 4000 anos, é o de que, a respeito de actividades mais complexas, é essencialmente aquilo que fazemos em vida e não as características especiais com que nascemos que determinam as distinções particulares entre indivíduos. Evidentemente, há dentro da espécie não só grupos étnicos com algumas características bastante distintivas como também, dentro de cada grupo étnico, indivíduos com características específicas que os distinguem uns dos outros. Igualmente evidente é que tais características permitem a certos grupos étnicos que se distingam em certas actividades, assim como permitem a certos indíviduos distinção noutras. Mas em actividades complexas, em actividades cujo desempenho requer muito mais do que o aperfeiçoamento de certas características biológicas (que são distintas de indivíduo para indivíduo), em actividades em que é o intelecto, e o uso que se faz dele, que determina quais os indivíduos que melhor a desempenham, tais distinções dentro da espécie são absolutamente insignificantes. Em actividades a respeito das quais costumamos falar de talento, ou génio, como sejam, por exemplo, actividades artísticas, filosóficas, ou científicas, o que distingue os melhores dos outros é o percurso de vida com que se definem. Mozart não se distingue de Salieri por ter nascido com um dom maior, por os deuses gostarem mais dele, ou por saber mais de música. Distingue-se porque a vida de Mozart (e tudo o que ela inclui) foi diferente da vida de Salieri. Só isto. De igual modo, o talento de um jogador de futebol é o resultado de quem ele é, de tudo o que aprendeu e apreendeu a respeito de futebol, mas também do conjunto de experiências que, para o mal ou para o bem, o modificaram. O talento de Messi não nasceu com ele; começou, sim, a ser desenvolvido bastante cedo (o que, para um jogador de futebol, costuma ser determinante) e foi sendo trabalhado ao longo da sua vida, muitas vezes inconscientemente, através de resposta a estímulos de ordem futebolística ou não. Os instintos de Messi são, por assim dizer, a face visível desse talento; são as respostas que dá consoante aquilo que foi apreendendo ao longo da vida, dentro e fora do campo. E, embora praticamente instantâneas e embora aparentemente irreflectidas, essas respostas são o culminar de tudo o que viveu, de tudo o que experimentou, dos erros que cometeu, das coisas que descobriu, etc.. O talento não é senão uma construção altamente complexa, e os mais talentosos são não os que gozam de qualquer coisa indefinida com a qual nasceram providencialmente, mas aqueles cujas respostas melhor evidenciam a solidez de tal construção.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Sem palavras

O que é ser jogador de futebol? É isto:

sábado, 3 de novembro de 2012

Elasticidade

Não é escassa a discussão, um pouco por todo o lado, em torno de sistemas tácticos. Para muitos, o sistema táctico é apenas um pormenor, e o desempenho de uma equipa depende muito mais das dinâmicas a que ela obedece; para outros, pelo contrário, o sistema táctico é absolutamente determinante. Confesso que ambas as hipóteses me parecem redutoras. Como é evidente, o 433 de José Mota é muito diferente do 433 de Guardiola, embora o desenho táctico seja igual. Daí não se segue, todavia, que a essência do Barcelona de Guardiola não esteja intimamente ligada ao desenho do 433. Aquilo que estou a querer insinuar é que, sem esse desenho, nada daquilo seria assim, ou seja, que embora o desenho táctico não seja suficiente para que uma equipa tenha qualidade, é-lhe necessário.

Um 433 rígido não é bom só porque é um 433. Se há coisa que caracterizou o 433 de Guardiola foi a sua absoluta elasticidade. Os extremos não eram extremos. Raramente eram eles quem dava profundidade e raramente tinham movimentos verticais. Muitas vezes, eram até médios por vocação quem jogava na posição de extremo, precisamente por causa dos movimentos interiores. O avançado também não era avançado, e, se quisermos, os médios não eram médios. Do meio-campo para a frente, havendo referências para cobertura e apoios, havia uma elasticidade tal que a equipa não obedecia a padrões de comportamento convencionais. Por elasticidade não se deve entender, no entanto, liberdade. Os jogadores, não estando presos a posições rígidas, não tinham também liberdade para tudo e mais alguma coisa. Aquilo que tinham era liberdade para esticar o desenho, para lhe conferir elasticidade e imprevisibilidade. Se há coisa que Tito Vilanova flagrantemente decidiu não continuar foi essa elasticidade. Daí a sua recusa, por exemplo, em adoptar o 343 de Guardiola (um sistema ainda mais elástico que usou, até agora, apenas uma vez, se não estou em erro, durante 15 minutos, e que não retomou, apesar do sucesso que teve), e em jogar com médios na posição de extremos. O seu 433 é muitíssimo mais rígido do que era o de Guardiola, e ainda que os jogadores mantenham hábitos de apoios e coberturas semelhantes, a equipa funciona ligeiramente pior precisamente porque não parece existir vontade de forçar a sua elasticidade. Com Vilanova, Messi manteve a sua liberdade. Mas isso talvez apenas porque é Messi. Os extremos são mais extremos do que nunca (tanto ou mais do que na primeira época de Guardiola), e foi-lhes retirada a iniciativa de virem para dentro. A equipa é mais previsível por ser menos elástica, por fomentar menos as combinações interiores e por deixar menos a cargo dos laterais a profundidade de que precisa.

Um dos principais méritos de Guardiola foi precisamente ter conseguido, de ano para ano, aumentar o nível de elasticidade da equipa (culminando com aquele extraordinário 343), sem que se rompesse o seu tecido táctico. Nesse aspecto, superou amplamente dois dos seus mestres, Louis Van Gaal (sobretudo pelo seu 343 losango no Ajax) e Marcelo Bielsa, cujas equipas são, sem dúvida, das mais tacticamente elásticas da História do jogo. Outros há, mais conservadores, que preferem não arriscar tanta elasticidade, temendo rupturas em tal tecido. É o caso de Vilanova, que tem a sorte, porém, de ter herdado uma equipa com processos formidáveis. Um terceiro grupo de treinadores existe para quem a elasticidade parece ser importante, mas que não sabem de que modo a podem fomentar sem que arrisquem descompensações. São os casos, a meu ver, de Jorge Jesus e de Wenger. Se Wenger tem o problema de, pretendendo uma elasticidade acima de tudo horizontal, muito parecida com a do Barcelona, com as movimentações a serem essencialmente do exterior para o interior, e de dentro para fora, não perceber como é que tal ideia se deve suportar em termos de coberturas, apoios e compensações, Jesus tem o defeito de gostar de uma elasticidade de tipo diferente, mais vertical, de permutas entre jogadores de sectores diferentes, com movimentos essencialmente de trás para a frente, o que provoca uma vertigem difícil de controlar e buracos tácticos difíceis de preencher. Bielsa, por sua vez, é um misto dos dois, virtuoso como ambos, mas com os defeitos, não tão acentuados, é certo, e muitas vezes potenciados por alguma falta de qualidade individual dos seus jogadores, de ambos.

Ora, dificilmente Guardiola conseguiria a agilidade táctica que conseguiu se não a tivesse fundado num sistema táctico como o 433 (ou mais tarde como o 343). Em 442 clássico, por exemplo, jamais conseguiria o jogo entre linhas que conseguiu, jamais conseguiria a quantidade de apoios centrais que conseguiu, jamais conseguiria ter sempre os jogadores juntos uns dos outros e juntos do local onde a bola está. O 433 permite, por definição, maior elasticidade do que um 442 clássico, embora haja equipas mais elásticas em 442 clássico do que em 433. O problema não está, pois, apenas nas dinâmicas da equipa, mas também, e muito significativamente, no sistema táctico que se adopta. Se o sistema de Wenger fosse o 433 (e não o 4231), se calhar não teria metade dos problemas que tem. Se Mourinho preferisse jogar com Modric ao lado de Kaká ou Ozil, e não ao lado de Xabi Alonso, se calhar o seu Real daria o salto qualitativo de que precisava. Em sentido contrário, parece-me ser, por exemplo, a grande mais-valia de Vítor Pereira. A elasticidade táctica de uma equipa depende muito das ideias do treinador, daquilo que é pedido aos jogadores, das características dos jogadores, e das dinâmicas treinadas. Mas, no limite, sistemas tácticos diferentes permitem níveis de elasticidade diferentes. Na minha opinião, o 433 (com um só médio-defensivo) e o 442 losango são das tácticas cujo potencial de elasticidade é maior, embora nenhuma delas supere o 343 losango. A equipa que não jogue em nenhum destes sistemas poderá ter processos de jogo interessantes (como a de Jorge Jesus ou de Arséne Wenger), poderá estar optimamente mecanizada (como o Real Madrid de Mourinho), poderá até ser extraordinariamente competitiva (como o Atlético de Madrid de Simeone), mas dificilmente atingirá a excelência. A consequência mais relevante dessa caraceterística a que estou a chamar "elasticidade" é a imprevisibilidade da equipa. Como é óbvio, elasticidade a mais pode provocar, para além de imprevisibilidade, caos e desorganização, pelo que o truque é perceber de que modo, em que condições, e em que medidas, deve ser desejada. Alguns sabem-no. E nenhum desses joga em 4231 ou em 442 clássico.