domingo, 23 de fevereiro de 2014

Rosicky e o Arsenal

Há muito que me apetecia escrever um texto sobre Tomás Rosicky, e esta semana surgiu o pretexto ideal. Fruto das várias lesões que tem tido, nos últimos anos, e fruto também da idade avançada, Rosicky não é um titular indiscutível no Arsenal. Ainda assim, e havendo na equipa muitos médios de ataque com as características do checo (Arteta, Wilshere, Ramsey, Cazorla, Ozil), Wenger não deixa de contar com ele, há já várias épocas, e aqui e ali aparece na equipa, quase sempre com enorme qualidade. Devo confessar que, de todos os médios acima referidos, e reconhecendo que Rosicky pode não ser capaz, nesta fase da carreira, de exibir a regularidade de outros, é o meu preferido, seja pela classe inigualável, seja, em termos mais concretos, por dar à equipa coisas que nem mesmo o alemão Ozil é capaz de dar. Entre linhas, com pouco espaço e pouco tempo para decidir, é sem dúvida aquele que melhor lê o que a jogada pede, aquele que mais rapidamente percebe qual a melhor decisão a tomar. É ainda aquele que, em posse, mais pensa na verticalidade, e, se pode fazer a bola entrar entre linhas, recorrendo ao apoio frontal, não passa para o lado nem procura uma solução menos arriscada. Exemplos das suas melhores características são dois dos golos marcados pelo Arsenal na goleada desta semana frente ao Sunderland.



O primeiro golo do Arsenal começa precisamente com a invasão do espaço entre linhas por Rosicky, facilitando a decisão de Podolski, que executa o passe vertical sem dificuldades. Ao mesmo tempo, Wilshere entra sem bola pelo centro, e Rosicky, apercebendo-se disso, rapidamente desvia a bola na direcção do inglês. Com dois passes, o Arsenal não só entrou entre os médios e os defesas adversários como deixou fora da jogada o defesa que saíra em contenção a Rosicky. A decisão de Rosicky, de tão rápida, deixou Wilshere com a bola controlada à frente de um dos centrais e em posição de remate. Não há muitos jogadores com capacidade para decidir tão bem e tão rápido, e ainda menos são os que o conseguem fazer dando a impressão de que não é difícil fazê-lo. O melhor lance do jogo, contudo, estaria reservado para o terceiro golo, um lance cuja finalização, não obstante a qualidade da mesma e não obstante ter sido precisamente da autoria do checo, é o pormenor menos relevante.



O Arsenal é das poucas equipas que procura sistematicamente lances deste tipo, envolvendo vários atletas nas jogadas de ataque, com tabelas curtas a disposicionar os defesas, e Wenger tem todo o mérito nisso. Com Rosicky em campo, no entanto, a probabilidade de estas coisas acontecerem, e a qualidade com que acontecem, é espantosamente diferente. O lance começa com Wilshere a invadir o espaço entre linhas, com Rosicky a lateralizar para Cazorla, não interrompendo a marcha e invadindo o espaço deixado vago pelo médio adversário que saiu a Cazorla, e com o espanhol a dar de primeira em Wilshere. Wilshere, respeitando o movimento do checo, dá por sua vez de primeira, deixando Rosicky de frente para o lance, só com a linha defensiva pela frente. Com três passes e uma simples triangulação, o portador da bola ficou assim à frente da linha de meio-campo e de frente para a baliza. Se isto já era óptimo, o que Rosicky fez de seguida foi ainda melhor. Sem muito espaço, e não havendo qualquer desposicionamento da defesa contrária, solicitou de primeira Giroud, apesar de o francês praticamente não ter espaço e estar obrigado a jogar de primeira, e desmarcou-se por entre um central e o lateral-esquerdo. Giroud, percebendo as intenções do colega, devolveu de primeira, entre os dois centrais, e deixou Rosicky cara a cara com o guarda-redes adversário. A finalização do checo é primorosa, mas todo o lance é de absoluto génio. Com cinco toques na bola, e envolvendo quatro jogadores, o Arsenal entrou em progressão pelo centro do bloco adversário, um bloco que, de resto, estava bem organizado no início do lance. Embora o espaço não fosse muito e não houvesse grande liberdade para aproveitar, a equipa londrina arranjou maneira de entrar por onde é letal entrar, e soube criar uma situação de golo clara sem precisar de um erro do adverário para o fazer.

Jogar futebol é essencialmente, fazer coisas destas, e é por estas e por outras que a equipa de Wenger, não tendo o orçamento que alguns dos rivais têm e não tendo uma equipa especialmente atlética, se manteve na alta roda do futebol europeu nos últimos anos. Muitos são aqueles que têm criticado o treinador francês ao longo dos últimos anos, sobretudo por não ganhar títulos há muito tempo, mas poucos têm sido capazes de explicar a regularidade impressionante do Arsenal. Mesmo não ganhando nada há muito tempo, nunca fez pior do que o quarto lugar, discutiu várias vezes o título com outras equipas, e apurou-se sempre para a fase das eliminatórias na Liga dos Campeões, algo que, por exemplo, Alex Ferguson não foi capaz de fazer. Disse o ano passado que, caso o Arsenal não perdesse nenhum jogador, e dadas as mudanças que se anunciavam em Manchester, os comandados de Wenger seriam novamente candidatos ao título. Embora outros tenham achado que era uma patetice, e que o mais certo era o Arsenal ser ultrapassado por clubes em ascensão como o Tottenham, justifiquei a minha opinião com base não só na regularidade da sequipas  de Wenger e na maturidade que, este ano, esta equipa atingiria, mas também no tipo de futebol que preferencialmente praticam. Esse tipo de futebol, que esta jogada tão bem exemplifica, é único em Inglaterra. E é esse tipo de futebol o mais eficaz para vencer adversários que fazem do suor e da entrega as armas preferenciais. Num campeonato em que a principal virtude é a capacidade atlética, só há duas maneiras de uma equipa se superiorizar às outras: ou ter uma equipa mais forte que as outras, do ponto de vista atlético, ou ser uma equipa diferente. Não podendo competir, em termos orçamentais, com os principais emblemas britânicos, o Arsenal de Wenger só pôde manter-se ao nível deles recorrendo à segunda hipótese. E, este ano, parece estar finalmente a colher os frutos dessa escolha. Ainda é cedo para perceber o que pode esta equipa fazer, na recta final da prova (se bem que a saída da Champions que se anuncia possa ser benéfica para as aspirações internas da equipa), mas estar na corrida pelo título a três meses do final da competição é já um murro no estômago dos que, com todas as certezas do mundo, achavam que Wenger era um falhado. Quanto a Rosicky, em quantas equipas do topo europeu seria ele opção? Quantas equipas, daquelas que lutam sistematicamente pelo campeonato e que têm algumas ambições europeias, manteriam durante tantos anos um jogador que, apesar de virtuoso, não é especialmente veloz, aguerrido ou combativo, um jogador que fisicamente é algo frágil e que já não vai para novo? Rosicky pode não ser das principais opções de Wenger, mas é com certeza o melhor exemplo do que o francês entende ser este desporto. Para aqueles que gostam de futebol, cada toque na bola de Rosicky é um momento para mais tarde recordar. Como não se sabe quanto mais durará, e se outros serão capazes de fazê-lo no futuro, sugeria que se aproveitasse ao máximo as coisas que ele tem para nos oferecer.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Uma Tabela e um Golo

Neymar marcou um grande golo, assim como Messi, mas é o quarto golo do Barcelona, o golo de Pedro, que, na minha opinião, merece menção na goleada do Barcelona, este fim-de-semana, diante do Rayo Vallecano. É verdade que o lance ocorre numa altura da partida em que os jogadores do Rayo Vallecano já tinha entregado o jogo e estavam conformados com a derrota, e é também verdade que a oposição do adversário, no lance em questão, é muito deficiente, com Fabregas a gozar de muito espaço no meio e, sobretudo, a equipa a iniciar a abordagem ao lance praticamente numa única linha defensiva, com os seus jogadores uns em cima dos outros. Nada disso, porém, invalida que o lance tenha sido superiormente trabalhado por Fabregas e Iniesta, e mais uma vez se demonstra que uma simples tabela, desde que bem executada, pode servir para ultrapassar uma defesa inteira.



O lance inicia-se com Fabregas a invadir o espaço central. Dois jogadores, de perfil, saem-lhe ao encalço, posicionando-se numa linha à frente da linha defensiva. Ao mesmo tempo, Adriano abre na esquerda, o que faz com que o lateral direito do Rayo abra e suba ligeiramente. Ao perceber que estão criadas as condições ideais para a penetração, Iniesta solicita o passe vertical entre as duas linhas defensivas e entre os dois médios de perfil. Sem hesitar, Fabregas dá em Iniesta e inicia a desmarcação para o espaço deixado em aberto pelo movimento do lateral direito, que se preocupara em demasia com Adriano e quebrara a linha defensiva. A partir daqui, era uma questão de a bola entrar no sítio certo, coisa que aconteceu. Mesmo que o passe de calcanhar de Iniesta não permitisse a Fabregas ultrapassar, de uma só vez, toda a defesa adversária (o que só aconteceu porque Zé Castro tentou ir pressionar Iniesta e a bola acabou por passar entre ele e o outro central), permitiria, com toda a certeza, que ultrapassasse os dois médios.

Com uma simples tabela, e envolvendo somente dois jogadores, um médio é pois capaz de passar por uma linha inteira de médios. Note-se, aliás, que entre a linha defensiva do Rayo e os dois médios que formam a outra linha não há mais do que 3 ou 4 metros. Significa isto que, por mais próximas que estejam dispostas as linhas  de defesa e meio-campo do adversário, há formas de uma equipa entrar nelas em progressão. Defender com duas linhas acarreta, pois, este problema, o de serem precisos menos toques para que aquele que conduz a bola fique apenas com a linha de defesa pela frente. De igual modo, ilustra este lance também aquele que me parece ser o principal problema, em termos defensivos, de um duplo-pivot. Por mais perto que joguem entre eles, e por mais perto que joguem da linha defensiva, é sempre possível colocar um passe vertical ou solicitar uma tabela entre os dois. Com três médios, dispostos em duas linhas diferentes, este problema não se põe: se um passe entrar entre dois médios mais ofensivos, há o terceiro, no meio e atrás deles; se, com uma tabela, a linha dos médios mais ofensivos for ultrapassada, há ainda a linha do médio mais defensivo para ultrapassar. Contra equipas que defendem de forma tão primária, e ainda por cima com laterais que não respeitam os princípios básicos de defesa à zona, sendo atraídos para fora por quem abre nas alas, as progressões pelo centro dos catalães continuam, por isso, a ser muitíssimo eficazes. E, assim, o futebol do Barça, se bem que longe do que foi com Guardiola, continua a ser das melhores coisas que se pode ver num campo de futebol.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Guardiola e os Dois Médios

Talvez seja prematuro tecer considerações acerca deste assunto, mas não posso deixar de sentir alguma perplexidade por Guardiola ter feito actuar, pelo menos nos dois últimos jogos do Bayern, dois médios de perfil à frente da defesa. O 4231 nunca foi um esquema que Guardiola apreciasse. Ao chegar a Munique, aliás, a primeira mudança que operou foi precisamente na disposição do trio de meio-campo, invertendo o vértice do triângulo e passando a utilizar apenas um médio-defensivo. Se as coisas estivessem a correr mal, ainda compreendia, não concordando, a necessidade de voltar a arrumar a equipa como Heynckes a arrumava. Mas Guardiola teve, nestes primeiros meses em solo alemão, um sucesso estrondoso: já ganhou duas competições, tem o título alemão, a meio do campeonato, praticamente no bolso, sofreu uma única derrota depois do jogo inaugural, e numa partida em que, claramente, os jogadores sentiram que podiam relaxar, e quase toda a gente já reconheceu que, em pouco tempo, conseguiu pôr o seu Bayern a jogar à sua imagem. Dadas estas circunstâncias, que razão há para adoptar um modelo táctico que não é da sua preferência, que nunca utilizou na Catalunha, e com o qual rompeu, mesmo tendo sido o modelo ganhador do ano passado, assim que chegou à Baviera?

Não encontro muitas explicações para o facto, e estou algo apreensivo quanto ao futuro da equipa bávara. A menos que seja uma experiência provisória, regressar ao duplo-pivot de Heynckes parece-me um enorme retrocesso. Evidentemente, jogar com Lahm e Thiago no meio-campo não é o mesmo que jogar com Schweinsteiger e Luís Gustavo. Mas uma parte muito significativa daquilo que a equipa de Guardiola geralmente é capaz de fazer (sair a jogar pelos centrais e pelo médio-defensivo, envolver muitos jogadores no processo ofensivo, capacidade para jogar entre linhas, pressionar alto) fica comprometida com a mudança de posicionamento no miolo. Não vi os jogos com o Estugarda e com o Borussia de Monchengladbach, de maneira que não posso saber se esta mudança foi algo que Guardiola preparou durante esta pausa de Inverno ou se foi um recurso circunstancial, usado apenas nos últimos dois jogos, frente ao Eintracht de Frankfurt e frente ao Nuremberga, por razões que desconheço. De resto, Guardiola mostrou-se satisfeito com o que os seus jogadores fizeram contra a equipa de Frankfurt. É verdade que golearam e que podiam ter goleado por números ainda maiores, mas fiquei com a sensação de que o jogo correu de feição aos bávaros, que o adversário baixou os braços demasiado cedo, e que foi tudo tão fácil que não se podiam tirar grandes ilações acerca do desempenho da equipa de Guardiola. A verdade é que a minha relutância tinha razão de ser, e esta semana, em Nuremberga, ficou bem à vista de todos o quão problemático pode ser jogar num modelo como este. O Bayern ganhou, é certo, mas fez talvez a pior exibição da época. Foi profundamente incapaz de controlar o jogo, de sair a jogar como é hábito, de entrar entre linhas e desenvolver o seu jogo dentro do bloco adversário, viu-se forçado a recorrer, por sistema, a um jogo muito mais directo e chegou mesmo a ter menos posse de bola do que o adversário. Com dois médios junto à defesa, e apenas Gotze solto entre os médios e os defesas adversários, a equipa perde capacidade de pressão, permite que os médios adversários pressionem mais à frente e fica com menos apoios próximos em zonas mais ofensivas. Marcou o primeiro golo na primeira oportunidade que teve, e já depois de o adversário ter tido quatro ou cinco boas ocasiões, mas nunca foi dominador como costuma ser. Este fim-de-semana, ainda que fosse Guardiola quem estivesse no banco, foi o Bayern de Heynckes que esteve dentro das quatro linhas.

Não acreditando que isto consista numa mudança de crenças de Guardiola acerca do jogo, consigo avançar com duas ou três razões que expliquem esta mudança táctica, mas nenhuma delas me parece inteiramente satisfatória. A mais plausível parece-me ser a necessidade de soltar Mario Gotze entre linhas. Para que Gotze se preocupe exclusivamente com acções sem bola, em procurar oferecer as melhores linhas de passe dentro do bloco adversário, Guardiola terá sentido que precisa de um segundo médio fora do bloco. Ainda que faça algum sentido e ainda que muitos treinadores optem por este tipo de solução, é absolutamente estranho nas equipas de Guardiola. Xavi e Iniesta tanto jogavam fora do bloco, quando isso se exigia, como ocupavam rapidamente posições dentro do bloco adversário, para oferecerem uma linha de passe vertical. Uma das forças do seu Barcelona, aliás, era precisamente não ter jogadores vocacionados para um certo tipo de acções. Cada jogador reagia como a situação de jogo mandava, e era isso que tornava imprevisível a acção de cada um deles. Forçar Gotze a jogar entre linhas e Thiago junto a Lahm é especializar o que cada médio deve fazer sem bola, e parece-me que Guardiola nunca foi a favor dessa solução. De resto, nos primeiros meses em Munique, se havia alguém responsável por aparecer sistematicamente entre linhas, era o avançado. Os médios apareciam lá de vez em quando, sempre que a jogada assim o pedia, mas não por indicações prévias. Com o meio-campo desta maneira disposto, não há permutas constantes e não se favorece, de modo algum, a troca de bola interior. Por isso, e ainda que seja a resposta mais óbvia, não me parece plenamente justificável. Há ainda a possibilidade de Guardiola ter sentido que, com Mandzukic em campo, que é um avançado que não sabe nem tem competência para baixar e aparecer entre linhas, precisa que alguém o faça. Sobre Mandzukic já disse muita coisa e a minha opinião acerca dele é consistente com esta possibilidade. A ser verdade, Mandzukic seria o principal responsável por uma mudança táctica que me parece, claramente, perniciosa em termos colectivos. Consigo ainda pensar numa terceira possibilidade, a de Guardiola estar a preparar a equipa para certos jogos ou certos momentos de jogos futuros. Com o campeonato praticamente ganho, e alguns processos já consolidados, é possível conjecturar que Guardiola queira que a sua equipa se saiba comportar de uma segunda maneira, menos interessada em fazer da posse a sua maior arma, mais equilibrada atrás e com menos gente à frente, sobretudo para gerir vantagens sem bola. Ora, gerir vantagens sem bola é coisa que Guardiola nunca fez e coisa que me parece completamente oposta àquilo em que acredita. Daí que também esta solução, a de estar a preparar a equipa para uma competição mais exigente, do ponto de vista táctico, como seja a Liga dos Campeões, não me parece muito certa. Sejam quais forem os motivos, uma coisa parece óbvia: em 4231, o Bayern de Guardiola é muito mais parecido com o Bayern de Heynckes do que com o Barcelona de Guardiola. E, se os últimos 5 ou 6 meses mostraram que é bem possível pôr outras equipas a jogar à Barça, abdicar disso parece-me um contrassenso.