sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Don Andrés

Chegou ao fim, pelo menos ao mais alto nível e nos grandes palcos, a carreira do melhor futebolista espanhol de sempre. O rótulo é ousado, mas inteiramente justo. E o que talvez surpreenda mais é que pouco ou nada, durante todos estes anos, se pensou em Andrés Iniesta como o melhor jogador espanhol de todos os tempos. Estou convencido de que assim foi porque o mais importante no seu futebol não era a superação, os números, as fasquias a transpor. Não só não era um jogador obcecado com isso, como não jogava, de modo nenhum, para a posteridade. E as pessoas pensavam menos em comparações do que se deliciavam com o seu futebol. Tudo o que saía dos seus pés será lembrado no futuro, claro, mas que não se tenha pensado no quão singular a sua carreira foi enquanto ela decorria mostra que aquilo que fazia em campo dava sobretudo prazer. O seu futebol não tinha o alcance longínquo das páginas dos livros por vir; era apenas uma fonte de prazer. Quem quiser falar de Iniesta, daqui para a frente, terá sempre de mostrar como jogava. A sua arte não admite a quantificação dos números, ainda que tenha conquistado inúmeros troféus e esteja ligado a alguns dos momentos mais importantes da História do Barcelona ou da Selecção Espanhola. Iniesta foi o melhor jogador espanhol de sempre, mas aquilo que verdadeiramente importava era aquilo que fazia a cada momento, a sensação de liberdade que transmitia a todos os que o viam jogar, o perfume que aqueles movimentos inexplicavelmente subtis e impossíveis de prever exalavam, a graciosidade e a naturalidade com que se movimentava, escondendo com perfeição o esforço mesmo em situações de aperto. O futebol de Iniesta está nos antípodas da estatística e de tudo aquilo em que os cientistas das tabelas numeradas parecem querer transformar o jogo. Nada do que saía dos seus pés parecia pensado de antemão, ou obedecia a regras de bem jogar. Era tudo incrivelmente intuitivo, natural e belo: a facilidade com que rodava sobre si mesmo, contornando o adversário que lhe obstava a passagem; a capacidade de jogar com a sugestão, fazendo crer a quem tomava a iniciativa de lhe tirar a bola que a tarefa não seria difícil, conduzindo-o exactamente para onde queria para depois se livrar da pressão com leveza; a liberdade, a incrível liberdade com que jogava, como se jogar futebol àquele nível fosse a coisa mais simples do mundo e não acarretasse quaisquer responsabilidades. Em suma, Iniesta era o que o futebol devia ser!

Iniesta era essencialmente um jogador que, não sendo particularmente forte, rápido ou explosivo, se sentia confortável com a proximidade de um opositor e no meio de vários adversários. Essa capacidade de conviver com a proximidade do adversário é talvez o maior recurso num jogador de futebol moderno. Há jogadores extraordinários do ponto de vista técnico, alguns muito admirados por esse mundo fora, que nunca serão capazes de chegar ao nível dos melhores simplesmente porque não conseguem habitar espaços interiores. É muito mais fácil ser Toni Kroos, por exemplo, do que ser Andrés Iniesta. O espanhol nunca foi aquele jogador a quem compete virar flancos, abrir nas alas, jogar por fora e pautar o jogo sem se meter em alhadas. Sempre foi muito mais do que isso. Conseguia, e tinha prazer, em jogar em espaços curtos, dentro do bloco adversário, e percebia que era em espaços curtos, com muitos adversários à ilharga, e onde as opções de passe não são tão óbvias, que podia dar largas à sua criatividade. Os jogadores mais criativos são invariavelmente os que mais à vontade se sentem nessas condições, e os que as procuram para se sentirem bem consigo mesmos. Iniesta adorava conduzir em direcção a vários adversários, para os fixar, e decidir em conformidade; adorava levar a bola para a confusão das pernas adversárias, em vez de a soltar, como mandam os livros, para onde há menos gente; adorava meter-se em apertos, chamar a si os opositores, para lhes perturbar a organização e gerar espaços noutras zonas; e adorava driblar, sem recurso a nada que não a técnica, apenas pelo prazer de sentir o ganho colectivo que advém de tirar um adversário do caminho e provocar a deslocação de outro para lhe fazer as vezes. Havia, aliás, uma finta que o definia (e que define em geral os verdadeiros criativos), que consistia em criar a ilusão do desarme do adversário e, no momento em que esse adversário tomasse a iniciativa, passar a bola de um pé para o outro de modo a contorná-lo. Iniesta fazia-o amiúde, geralmente do pé direito para o pé esquerdo (os destros geralmente usam a finta deste modo porque, sendo destros, criam a ilusão do desarme quando a bola está mais próxima do pé direito), e sempre com uma subtileza notável. Não sei mesmo se alguém alguma vez o terá feito melhor e mais vezes. Essa finta definia-o, em parte, porque exemplifica o futebol de Iniesta. Não é uma finta feita em potência, não carece de velocidade ou explosão, nem é pré-fabricada. É um recurso, que só faz sentido ser utilizado na circunstância de um adversário esboçar uma tentativa de desarme, e que requer destreza técnica, competência a usar o corpo quer para proteger a bola, quer para induzir o adversário em erro, audácia e muita classe.


Agora que a sua carreira chegou ao fim, é tempo de pensar no modo como contribuiu para mudar o jogo. Individualmente, creio que é o melhor exemplo de como o futebol está diferente, para melhor. Há 20 anos, era quase impensável um médio de ataque franzino, pouco veloz e tímido impor-se ao mais alto nível. Os mais dotados, do ponto de vista técnico, tinham sempre de possuir outros atributos que os valorizassem. Zidane marcou dois golos de cabeça numa final do campeonato do mundo, por exemplo. Um jogador como Iniesta, no final dos anos 90, teria poucas possibilidades de se destacar. E, verdade seja dita, não sei se teria tido a notoriedade que acabou por ter se não tivesse tido a sorte de coexistir com Guardiola naqueles quatro anos em Barcelona. Antes disso, era uma jovem promessa do Barça, que não podia jogar no mesmo meio-campo onde já jogava Xavi Hernandez, e que teria de esperar pela sua oportunidade. Mas Guardiola não mostrou apenas que havia espaço para jogadores como Iniesta; mostrou que um jogador como Iniesta é fundamental para que uma equipa possa jogar de um determinado modo. Iniesta é uma possibilidade tornada real. Há 20 anos, ninguém acreditava que o espaço interior, de tão sobrepovoado que estava, era o espaço mais importante para atacar. Quando as equipas se fechavam no meio, todos achavam que era pelas alas que se devia entrar, que era para as faixas que os médios deviam levar o jogo. Não havia espaço, e parecia impossível penetrar pelo meio, por mais dotados que fossem os jogadores que aí se colocassem. E, portanto, achava-se que o futuro do futebol estava nos desequilibradores e nos velocistas, que nessa altura iam sendo transformados em extremos. Ronaldinho Gaúcho, por exemplo, tornou-se um jogador de ala porque era na ala que, na altura, se achava que a sua capacidade técnica podia fazer a diferença. Foi também por isso que se decretou o fim dos números 10. Volvidas duas décadas, tudo mudou. Não só não se extinguiram os números 10, como os grandes jogadores da actualidade, aqueles mais competentes do ponto de vista técnico e mais criativos, são quase todos jogadores de corredor central. Os extremos, tão em voga nessa altura, têm hoje em dia muito menos preponderância. E se a mudança que se registou de então para cá tiver um rosto, esse é o rosto de Iniesta. Num contexto propício, claro, foi ele que mostrou que é possível jogar por dentro, em espaços curtos, e que não é com velocidade, potência física ou números de circo que se supera a organização defensiva do adversário, mas com talento e inteligência. Agora que terminou a sua carreira, vale pois a pena lembrarmo-nos do quanto contribuiu para que o jogo se tornasse melhor. É talvez o melhor tributo que podemos fazer a Don Andrés.

quarta-feira, 18 de julho de 2018

O Mundial na Era da Estratégia

Depois de muito tempo de ausência, eis a mais recente crónica do "Passe e Devolução". É sobre a 'era da estratégia' e sobre o Mundial de 2018.

"Diz-se por aí que, depois das evoluções tácticas da última década, que se caracterizaram acima de tudo pelo advento da ideia de modelo de jogo (os jogadores passaram a comportar-se constantemente em função de uma ideia de jogo concreta, modelada em treino), entrámos agora na 'era da estratégia'. A expressão visa assinalar uma mudança de paradigma: uma vez que, ao mais alto nível, já todas as equipas funcionam de acordo com um modelo trabalhado com rigor e já não há equipas desorganizadas, nas quais os jogadores se comportem como bem lhes apetece, a diferença far-se-á muitas vezes pela estratégia particular de cada jogo, sendo por isso mais competente a equipa que melhor trabalhar para contrariar o próximo adversário e, por isso, a equipa que melhor souber adaptar-se às circunstâncias específicas de cada jogo. Ter uma ideia de jogo muito bem definida, e ter os jogadores preparados para jogar de uma determinada maneira, sejam quais forem as circunstâncias, terá assim passado para segundo plano. Não deixando de ser importante, já não é aquilo que faz a diferença nesta nova era. De acordo com a doutrina da 'era da estratégia', aquilo que faz a diferença é a forma como a equipa se prepara para explorar as fraquezas específicas de cada adversário e a forma como tenta anular os pontos fortes desse adversário (...)"

O artigo completo encontra-se aqui.


quinta-feira, 5 de abril de 2018

Equilíbrio Emocional

É impressionante que comentadores, treinadores e antigos jogadores nunca expliquem os resultados de um jogo recorrendo ao descontrolo emocional que se apodera dos jogadores em alguns momentos específicos de um jogo de futebol. Há um vício interpretativo absurdo, muito recorrente a partir do momento em que as análises tácticas começaram a ficar mais sofisticadas, que consiste em achar que todos os acontecimentos de um jogo se explicam tacticamente, que o sucesso de uma equipa e o insucesso da outra se devem apenas ao braço de ferro entre as tácticas a que os dois lados dão expressão. Um golo, sobretudo numa competição a eliminar e que continua a ser encarada como decisiva para aferir a verdadeira valia das equipas, pode ser suficiente para alterar o estado emocional dos jogadores, e pôr em causa toda uma táctica. Ninguém parece dar valor a isto, como se isto não prejudicasse a qualidade dos jogadores e os planos dos treinadores. Em competições como estas, muito mais do que em jogos de competições de regularidade, é muito comum vermos uma equipa a baixar os braços a partir do momento em que sente que já é difícil dar a volta a uma eliminatória. E, no final, diz-se que a outra equipa foi muito superior, e que isso se viu até na forma como os derrotados não conseguiram reagir animicamente. Mas uma coisa influencia a outra. Um golo, mesmo quando caído do céu, perturba emocionalmente os jogadores, e fá-los descrer das suas qualidades. O jogo é jogado por humanos, e é natural que um jogador se enerve quando as coisas não correm bem, se desmotive quando as expectativas são frustradas e que perca concentração quando as possibilidades de êxito diminuem. O jogo não é só táctico, e as suas incidências não podem ser explicadas apenas falando de táctica. Não é raro que a táctica não explique nada acerca de um resultado final. E, apesar disso, não há nenhum comentador que olhe para um jogo e que seja capaz de chegar à conclusão de que, naquele desafio em particular, a equipa vencedora não fez o suficiente para ganhar mas teve sorte, ou que tacticamente esteve mal mas beneficiou da intranquilidade da equipa adversária num momento específico do jogo.

Vem isto a propósito da primeira mão dos quartos de final da Liga dos Campeões, entre Liverpool e Manchester City. A opinião é quase unânime: vitória táctica claríssima de Klopp, que soube explorar as fragilidades do City de Guardiola. Desculpem a frontalidade, mas quem acha que o resultado final foi mais obra de Klopp, e das ideias que tinha para o jogo, do que propriamente das incidências do jogo não percebeu nada do que se passou em Anfield. Nada! Em primeiro lugar, porque nenhum dos golos do Liverpool se deveu propriamente à tal estratégia de explorar as fragilidades do adversário. O primeiro golo é em contra-ataque, é verdade, mas além da irregularidade no momento do passe para Salah, só resulta em golo porque Kyle Walker deu os neurónios para caridade. Em segundo lugar, porque o verdadeiro ascendente do Liverpool só se consumou após o 2-0, quando os jogadores do City se intranquilizaram e nem sequer conseguiram condicionar o jogo de posse do adversário. E, além disso, esse ascendente materializou-se no exacto oposto do que seria a tal estratégia de explorar as fragilidades alheias. Quando o Liverpool foi melhor em campo e criou algum embaraço à defesa do City, foi em ataque organizado. O que é que isto tem a ver com a tal estratégia perfeita de Klopp? Em terceiro lugar, e mais importante do que tudo o resto, porque os golos modificaram de modo decisivo as emoções dos jogadores.

O City entrou em campo como sempre, a trocar a bola e a sair de zonas de pressão com qualidade. E, apesar da agressividade defensiva do Liverpool, e da competência nos momentos de pressão, a equipa de Guardiola conseguiu impor o seu estilo. Tudo mudou em poucos minutos, primeiro com aquele golo de Salah, com contribuição dupla de Walker (antes do erro final, já se tinha posicionado mal no início da jogada, e podia perfeitamente ter tornado o fora-de-jogo de Salah muito mais evidente), depois com o falhanço de Sané, logo a seguir, num lance de contra-ataque que podia ter reposto a igualdade no marcador, e finalmente com o segundo golo, também logo a seguir, num pontapé do meio da rua de Chamberlain tão espectacular quanto fortuito (além de um remate daqueles tanto poder entrar ali como ir parar à bancada, a bola vai direitinha aos pés de Chamberlain, que está entre três jogadores do City, depois de uma bola dividida entre Milner e Gundogan). Num momento o City dominava; no momento seguinte perdia por dois. E, mais do que isso, sem que se notasse que o adversário fizera muito por isso. Não há nada de especial na forma como se construíram os dois primeiros golos. E já nem vou falar do terceiro, que vem na sequência de quatro ou cinco ressaltos. De repente, uma equipa que tinha entrado calma em campo, que estava a jogar próximo da área adversária e a conseguir entrar no bloco do adversário, que estava a ser capaz de condicionar os movimentos desse bloco e a forçar as penetrações no mesmo, está a perder por dois sem conseguir identificar uma razão para tal. Em equipas mais maduras do ponto de vista mental, isto talvez não fizesse tantos estragos. Na verdade, um golo relançava completamente o jogo e a eliminatória, e por isso não era caso para tanto. Mas a verdade é que os jogadores se enervaram. Os minutos seguintes foram de descrença absoluta, e as perdas de concentração sucederam-se. Poucos foram os que conseguiram manter a lucidez, de tal modo que a equipa nem sequer conseguiu preservar a sua identidade. Mérito do Liverpool? Não. A explicação para o que se passa em campo não passa necessariamente por aquilo que de bom ou de mau as equipas fazem. Muitas vezes, são as próprias incidências do jogo que melhor o explicam.

A dada altura, era o Liverpool que geria a posse, e o City que andava atrás da bola. Melhorou quando Guardiola trouxe Silva para o lado de Fernandinho, e o espanhol deu clarividência àquela zona. Mas nessa altura já era tarde. Já o City tinha sofrido o terceiro e já podia ter sofrido o quarto. O Liverpool foi melhor entre o segundo golo e esse momento, e foi-o única e exclusivamente por questões emocionais. Nem sempre um resultado positivo implica que a equipa vencedora tenha sido melhor do ponto de vista táctico ao longo do jogo. Neste caso, o Liverpool adiantou-se no marcador sem ter feito grande coisa por isso, chegou ao segundo uma vez mais sem especial mérito do colectivo e aproveitou o desnorte que entretanto se vivia nas hostes do adversário para fazer o terceiro. Esta interpretação do resultado é completamente distinta da interpretação mais consensual, que diagnosticou uma superioridade evidente dos pupilos de Klopp na primeira parte. Reconheço superioridade, sim, mas não a consigo destrinçar do estado emocional dos citizens. E, aliás, só a reconheço no momento em que os citizens claudicaram do ponto de vista emocional, naqueles 15 ou 20 minutos de profunda desconcentração, em que os jogadores não sabiam o que fazer à bola, que espaços ocupar, se deviam acelerar o jogo ou pausá-lo, se deviam pressionar alto ou baixar linhas, etc.. Reconheço superioridade ao Liverpool na primeira parte, sim, mas não reconheço qualquer superioridade táctica. Não foi tacticamente que o Liverpool foi superior. Foi animicamente. E foi-o, não porque seja uma equipa mais bem preparada do ponto de vista anímico, mas porque os acontecimentos do jogo o propiciaram. As pessoas ignoram a importância dos golos na história de um resultado e depois acham que os resultados espelham necessariamente as qualidades individuais e as qualidades colectivas das equipas, as intenções dos treinadores e os planos de jogo. E eis que dão voz a todos os disparates em que acreditam.

P.S. A sensação que todos tiveram, no final do jogo em Turim, foi que o Real Madrid se superiorizou de forma clara à Juventus. Mas a história do jogo seria a mesma sem aquele erro forçadíssimo de Chiellini, aquele golo extraordinário de Ronaldo e a expulsão logo a seguir de Dybala? A Juventus acabou de cabeça baixa e braços caídos, aparentemente vergada ao poderio dos espanhóis, mas antes de tudo isso estava muito mais próxima do empate do que propriamente do descalabro.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Sergio Busquets: o futebolista do futuro

Imaginem que são um médio-defensivo, que recebem a bola de costas no meio-campo, com a equipa adversária completamente organizada atrás e que, olhando apenas por cima do ombro, descobrem um modo de deixar o jogador mais talentoso da equipa perfeitamente enquadrado para atacar a última linha adversária. Parece impossível, mas foi o que Sergio Busquets fez em Camp Nou no fim-de-semana passado, no primeiro golo do Barça. Tudo no modo como fez a bola chegar a Messi, mas tudo mesmo, foi deslumbrante. A aparente facilidade com que o fez, então, é o sinal inequívoco do seu brilhantismo. Reparem que Busquets não está de frente para o lance, que não pode decidir a direcção do passe à última da hora. Ao olhar por cima do ombro, num primeiro momento, há uma linha de passe aberta para Messi, entre o ala esquerdo e o médio-centro do lado esquerdo do Girona. Se a bola entrasse aí, porém, o ganho não seria decisivo. Mas é essa a linha de passe mais convencional, aquela pela qual optaria a maioria dos jogadores. E já nem estou a falar de jogadores banais. Esses passariam para o lado, ou procurariam fazer a bola chegar aos flancos. Um bom jogador, um que perceba a vantagem de fazer a bola entrar verticalmente entre as linhas adversárias, escolheria essa linha mais convencional. Mas um jogador excepcional como Busquets pensa de outro modo. Entre o momento em que olha por cima do ombro e o momento em que a bola sai do seu pé, há tempo suficiente para que as circunstâncias do lance se alterem. E Busquets sabe isso. Sabe também que os adversários não ignoram essa linha de passe, e que se preparam para reagir à previsível entrada da bola nessa zona. E sabe ainda que Messi também sabe todas essas coisas, e que se encarregará de lhe dar oferecer uma linha de passe alternativa. Ao olhar por cima do ombro, Busquets vê tudo isso: vê uma linha de passe relativamente óbvia, vê aquilo que os seus adversários se preparam para fazer e vê o espaço que existe para Messi explorar alternativamente. E não faz o passe logo porque precisa de dar tempo aos adversários para tomarem consciência da linha de passe mais óbvia e porque precisa de dar tempo ao próprio Messi para perceber qual o melhor espaço a atacar.




É incrível, mas é Sergio Busquets quem, de costas para o lance, vê em primeiro lugar aquilo que havia para ver e é quem, de certo modo, indica o caminho ao argentino. O próprio Messi não parece ter sido tão perspicaz quanto ele a descobrir aquele espaço privilegiado. Busquets recebe a bola, olha por cima do ombro, vê onde estava o espaço verdadeiramente relevante e retarda o passe apenas o tempo suficiente para criar a ilusão de que vai fazer aquilo que parecia evidente que tem de ser feito e para dar tempo ao colega para perceber onde é que a bola tem afinal de entrar. E depois ainda executa o passe na perfeição. Numa fracção de segundos, sem estar de frente para o lance, Busquets faz uma série de coisas inacreditáveis: analisa o posicionamento colectivo de toda a equipa adversária, calcula qual o espaço a aproveitar e em que momento exacto fazê-lo, deixa os adversários lambuzarem-se com o engodo de uma linha de passe que sabe desde o início que não vai utilizar, indica ao colega quais as suas reais intenções e, num gesto técnico nada fácil, ainda faz a bola entrar num espaço diminuto, com precisão absoluta, de modo a deixar o companheiro nas melhores condições possíveis para atacar a linha defensiva adversária. O resto do lance pouco importa. Para a estatística, fica o golo de Suarez e a assistência de Messi. Mas o génio, nesta jogada, é todo de Busquets. É ele quem, do nada, atrás da linha de meio-campo, com uma acção tão subtil quanto aparentemente simples, inventa aquela ocasião de golo. E poucos são os que, levados pela histeria das bolas perto das balizas, conseguem perceber que, por vezes, uma ocasião de golo se gera por inteiro num passe de dez metros a meio-campo. No dia em que se conseguir perceber tal coisa, perceber-se-á, por fim, que o futebol é daqueles que, como Busquets, só usam os pés para cumprir aquilo que a cabeça idealiza.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

A Jogada do Século

"Quase todos os que não eram alemães acharam que nós deveríamos ter ganho. Não estivemos no nosso melhor na final, mas demos o exemplo a biliões de pessoas. Demos igualmente esperança a todos os jogadores que, como eu, não eram grandes nem fortes. Toda a filosofia de como o futebol devia ser jogado se modificou durante esse torneio. Tal filosofia era, na verdade, muito simples, e continua a sê-lo hoje. Há uma bola, e ou a tens tu ou a têm eles. Se a tiveres tu, eles não podem marcar golo. Se usares a bola bem, a probabilidade de êxito é maior do que a probabilidade de fracasso. Isto mudou o foco para a qualidade e para a técnica, enquanto antes girava tudo em torno do esforço e do trabalho."

Johan Cruyff, My Turn


Se tivesse de escolher uma jogada que, de certo modo, definisse aquilo que foi a evolução do futebol no século XX, escolhia a primeira jogada da final do campeonato do mundo de 1974. O lance é, para os padrões actuais, uma aberração: a velocidade a que se troca a bola, a ausência de zonas de pressão, as marcações individuais dos alemães, a total anarquia da organização ofensiva holandesa, etc.. E, no entanto, o mesmo lance justifica toda a evolução que o futebol sofreu nos últimos 50 anos. É sobretudo por isso que me parece justo descrevê-la como a jogada do século. Nela estão contidas as sementes da revolução laranja, e de tudo aquilo que essa revolução proporcionaria depois, e é nela - precisamente nela - que identifico a fronteira entre o velho e o novo paradigma. Não é de todo irrazoável falar de um futebol antes de Cruyff e de um futebol depois de Cruyff, e muitos já o fizeram, mas normalmente situa-se a fronteira entre essas duas épocas um pouco mais tarde. Aquilo que Cruyff veio a ser como treinador, e o pensamento que depois criaria escola, não é indissociável, contudo, daquilo que foi como jogador. A revolução que as suas ideias protagonizaram tiveram expressão maior no seu 'Dream Team' e, posteriormente, no futebol praticado pelas equipas de Guardiola, mas tudo começou na Holanda, no final da década de 60 e início da década de 70. É nessa altura, com o sucesso do Ajax entre 1969 e 1973 (finalista vencido em 69, o Ajax venceria a Taça dos Campeões Europeus em 71, 72 e 73) e com o futebol apresentado pela selecção holandesa no Mundial de 74, que tudo começa. E a forma como a Holanda chega à vantagem na final dessa competição é o dealbar desse mundo novo. É nesse lance que a parceria entre Rinus Michels e Johan Cruyff encontra o seu expoente máximo. Mesmo que a selecção germânica tenha conseguido recuperar da desvantagem, e a Holanda não se tenha sagrado campeã do mundo, o futebol vergou-se nesse momento e nunca mais foi o mesmo. 



O momento crítico do lance, aquele momento que vai contra tudo aquilo que sabemos ou julgamos saber acerca do jogo, é o momento em que Johan Cruyff, fazendo uso da liberdade e da autoridade que tinha dentro de campo, se aproxima dos defesas holandeses e, recebendo a bola de um deles, decide ser ele a pautar o jogo a partir de trás. Durante alguns segundos, Cruyff foi o jogador mais recuado da sua equipa. Enquanto os colegas trocavam a bola no meio-campo alemão, manteve-se atrás deles, analisando o que se passava à sua frente. Isto é tão surpreendente quanto ilógico, do ponto de vista actual. Mas a verdade é que cabe nesses breves instantes uma revolução inteira. Sem que o próprio Cruyff o soubesse, estava a fundar uma nova maneira de jogar futebol. Ao posicionar-se assim, Cruyff comportou-se como o treinador que seria uns anos mais tarde e, mais ainda, como aquele tipo de jogador que, de certo modo, viria a inventar: o médio-defensivo de qualidade técnica, capacidade de passe e visão de jogo invejáveis que teve em Guardiola o primeiro e mais genuíno representante. Atrás de todos os outros colegas, Cruyff pôde ver o que não veria se estivesse mais subido no terreno. A intuição de que poderia romper por entre as linhas adversárias com a bola colada ao pé dificilmente lhe assomaria ao espírito noutras circunstâncias.

Quando a bola voltou a Cruyff, já o capitão holandês tinha visto como se comportava o bloco defensivo germânico, que tipo de marcações estavam a ser exercidas (sobre si e sobre os seus colegas), e quais as fragilidades que podia explorar. A circulação aparentemente inócua da bola não só lhe deu tempo para observar o que se passava à sua frente como fez o adversário expor os seus comportamentos defensivos. Os 16 passes que antecederam a arrancada fulminante do génio holandês, que só viria a ser travado em falta dentro da área alemã, foram absolutamente decisivos para que se formasse a intuição de que, ultrapassando o seu marcador directo em zona frontal, se criavam as condições ideais para entrar na área adversária com a bola controlada. Não acredito que Cruyff tenha feito de propósito. Isto é, não acredito que lhe tenha passado pela cabeça que precisava de ter uma visão global do campo de batalha antes de tomar a iniciativa de atacar as hostes inimigas. A atitude de Cruyff, no princípio do jogo, é puramente experimental. A ideia ocorreu-lhe e pareceu-lhe boa. E foi isso que o levou a experimentá-la. Do mesmo modo, não acredito que dessa experiência se tenha seguido uma conclusão irrefutável. O que ela originou foi uma intuição. No momento em que recebe a bola e encara Berti Vogts, Cruyff não só já tinha interiorizado uma série de padrões comportamentais do adversário como teria a percepção, mais ou menos vaga, de que havia muito espaço no centro do terreno (esse espaço existias porque os holandeses tinham arrastado as marcações dos alemães para os corredores laterais, e o centro estava momentaneamente despovoado).

À luz do futebol que hoje conhecemos, toda a jogada é estranha: Cruyff a vir buscar a bola aos defesas; Cruyff a posicionar-se atrás de todos os seus colegas; Cruyff a ir no um para um quando era o último defesa; etc. Há algo de profundamente bizarro em tudo isto. E, no entanto, a facilidade com que Cruyff transforma uma jogada de bola a meio-campo numa grande penalidade a favor da sua equipa, antes de qualquer adversário ter sequer tocado na bola, é incontornável! Se parássemos o filme no momento em que Cruyff recebe a bola pela segunda vez e, garantindo que a jogada se desenrolaria junto ao solo, perguntássemos a alguém em qual das duas áreas era mais provável que, sete segundos depois, houvesse uma falta para grande penalidade, quantos se atreveriam a dizer que isso se daria na área germânica? Dado o futebol que conhecemos hoje em dia, quase todos pensariam numa perda de bola dos holandeses e num contra-ataque alemão. O futebol moderno parece, portanto, o exacto oposto desta jogada. Mas aí é que está. O que esta jogada mostra é que, contra todas as probabilidades, há benefícios em jogar assim. Cruyff é, em grande medida, responsável por nos fazer perceber que é possível triunfar contrariando tudo o que nos ensinaram. A dívida que temos para com ele é essa. Mostrou-nos que, em futebol, há uma vantagem teórica decisiva em assumir a iniciativa, e mostrou-nos também que a vontade de fazer coisas diferentes, de não repetir apenas o que os outros fazem, de inovar constantemente, de satisfazer a curiosidade, experimentando, pode beneficiar-nos de um modo inesperado. O talento de Cruyff é, em grande medida, o reflexo da sua prodigiosa intuição. Mas essa intuição não era um dom inato; era o resultado do seu inconformismo, daquela mania de se colocar insistentemente perante obstáculos diferentes, de não resolver os problemas sempre da mesma maneira, de buscar amiúde novos desafios e novos estímulos. A intuição de Cruyff, aquilo que lhe permitia responder com criatividade aos obstáculos que se lhe deparavam, desenvolveu-se em função do desconforto a que ele próprio decidiu sempre sujeitar-se. Colocando-se sistematicamente perante circunstâncias atípicas e forçando-se a descobrir um modo de lidar com cada uma delas, ia adquirindo ferramentas que lhe permitissem lidar cada vez melhor com a atipicidade inerente ao jogo de futebol. A meu ver, esta jogada mostra tudo isto de forma flagrante. É em grande parte por isso que estão contidos nela os fundamentos do futebol moderno.