domingo, 30 de março de 2014

William Carvalho e o Sporting de Leonardo Jardim

A época do Sporting tem sido suficientemente boa para que mereça o devido destaque e para que se elogie algumas das coisas que Leonardo Jardim tem conseguido. Num ano que se esperava, acima de tudo, de transição, com um orçamento bastante reduzido, a verdade é que o Sporting foi capaz de se mostrar muito competitivo, e o acesso directo à Liga dos Campeões é agora uma possibilidade real. Esta época, ainda que termine sem títulos, deve por isso levar muita gente a reflectir. O Sporting tem na sua formação uma arma que deveria ter explorado melhor nos últimos anos, e que esta época, sendo forçado a isso, mostrou estar à altura das exigências. O que Leonardo Jardim tem mostrado é que é possível construir uma equipa competitiva com um orçamento mais reduzido, recorrendo a alguns jovens com qualidade, jovens como Eric Dier, William Carvalho, Adrien Silva, André Martins e Carlos Mané, e que dificilmente teriam as oportunidades que tiveram caso o clube vivesse dias de desafogo financeiro. O Sporting pode não ter, neste momento, equipa para lutar, por exemplo, com o Benfica, mas ficar à frente do Porto, como pode bem acontecer, é já um feito tremendo. A equipa tem sido regular e tem mostrado personalidade. Não jogando um futebol extraordinário, tem sido capaz de manter índices competitivos altos. Ajuda o facto de não estar envolvida em competições europeias, mas ajuda também não se terem criado expectativas como em outros anos. Leonardo Jardim aproveitou-se disso e, com os poucos recursos que tinha ao seu dispor, pôs a equipa a jogar à sua imagem. Independentemente da rigidez do modelo, um 433 pouco dinâmico, em muitos momentos do jogo, com extremos demasiado clássicos que pouco se envolvem no jogo interior da equipa, e com os médios raramente a solicitar a bola entre linhas, o Sporting tem sido uma equipa sólida, competente a nível defensivo, e que sabe aquilo que quer. As equipas de Leonardo Jardim não praticam um futebol entusiasmante, mas são geralmente muito organizadas e sempre preparadas para aquilo que devem fazer.

Boa parte do bom futebol que esta equipa pratica deve-se, a meu ver, à presença de William Carvalho. Foi uma das maiores demonstrações de coragem de Leonardo Jardim no início da época, relegando para o banco Rinaudo, um dos poucos que parecia ter, para a opinião pública, lugar garantido. A verdade é que William é a grande revelação do campeonato. Conhecia-o de escalões inferiores e, embora reconhecesse nele muitas competências, duvidava que se pudesse impor com tanta facilidade. Claro está que a minha opinião era em função da posição em que jogava nessa altura, como médio de ataque. Aí, francamente, não lhe augurava nada de extraordinário. Era um jogador tecnicamente evoluído, sim, mas que não tinha propriamente facilidade em se movimentar entre as linhas adversárias; era pouco ágil, o que, em espaços curtos, costuma ser relevante. A sua evolução passou então por recuar no terreno, por passar a jogar nas zonas mais apropriadas às suas características, e isso foi decisivo. Como médio-defensivo, William tem um futuro muitíssimo promissor. Em certa medida, parece-me ser esse o problema também de João Mário, um jogador que querem a força que seja médio de ataque, organizador de jogo, ou lá o que seja, mas que não tem, parece-me, vocação senão para jogar como médio recuado. O mesmo se poderia dizer, para ir ainda mais longe, de Nemanja Matic, que sempre que jogou em zonas mais avançadas, por se reconhecer que tecnicamente era muito dotado, não apresentou o rendimento que apresentava na posição de médio mais defensivo. O que William e Matic revelam é que aquela crença enraízada de que jogadores tecnicamente evoluídos devem ter facilidade para jogar em zonas mais ofensivas é falsa. A técnica não chega. A agilidade, a capacidade de drible e, sobretudo, o perfil de decisão do jogador são características bem mais relevantes. William pode ser tecnicamente muito evoluído, mas pensa de uma determinada maneira, e essa maneira de pensar é incompatível com o que se exige em certas posições. Onde está como peixe na água é fora do bloco, com espaço e tempo para tomar as suas decisões, podendo ver constantemente quase tudo o que está a acontecer no campo.

Com William, o Sporting de Leonardo Jardim sai quase sempre da zona defensiva com qualidade. A forma como se posiciona, como gere os ritmos da equipa, como faz a bola circular, como espera pelas melhores opções de passe, como entrega quase sempre jogável, é decisiva para que a equipa tenha a capacidade de se instalar no meio-campo adversário e a capacidade para manter o domínio do jogo que tem demonstrado. Faltar-lhe-á, na minha opinião, aprender algumas coisas a respeito de posicionamento defensivo e algumas coisas a respeito de decisão circunstancial em momentos defensivos, mas é para já inegável que, em termos ofensivos, é já um jogador incrivelmente maduro, não só pelo que faz com bola como pela forma como equilibra a equipa quando esta está em posse, mantendo-se sempre como referência recuada por onde se pode circular. A facilidade que tem, depois, para manter a bola em situações de aperto, para a proteger até que surja uma opção de passe apropriada, permitem que não se desfaça dela de qualquer maneira e que, por mais que a estratégia adversária passe por pressioná-lo, o Sporting não perca qualidade em posse. Os maiores clubes da Europa não têm estado desatentos e começam já a juntar os trocos para poder adquiri-lo. Não sei se o Sporting terá capacidade para mantê-lo mais um ano ou não, mas desconfio que isso será pouco relevante para o futuro de William. Seja no final da época, seja daqui a uma ou duas épocas, parece-me neste momento mais ou menos certo que William Carvalho tem uma carreira brilhante à sua frente. Foi preciso o clube entrar em agonia para que, em poucos meses, se percebesse que há diamantes que, sem a competição, dificilmente poderão aparecer. Se o exemplo de William servir para alguma coisa, pode ser que sirva para se perceber finalmente que uma equipa como o Sporting tem tudo a ganhar em construir plantéis em que metade dos jogadores são provenientes da formação. Há muito que dizemos aqui que é esse o único caminho viável, a única e a melhor forma de competir com Benfica e Porto, e que a estratégia oposta, tal como foi posta em prática nos últimos anos, só poderia terminar em fracasso. Agora que está à vista de todos o que é que um clube como o Sporting deve ser, seguir-se-ão, assim não se deslumbrem os seus dirigentes, outros Williams.

terça-feira, 4 de março de 2014

Três Apontamentos

No fim-de-semana passado, sem ninguém saber porquê, nem mesmo o seu treinador, Miguel Rosa ficou na bancada e não defrontou o antigo clube. O Benfica ganhou sem jogar bem e beneficiou de um erro do árbitro, mas continuo a achar que ninguém deu importância àquilo que realmente importa. Maus jogos e vitórias à custa de foras-de-jogo mal tirados acontecem a toda a hora. Que um jogador que andou claramente a ser queimado nas últimas cinco épocas se tenha desvinculado do clube que andou a tentar acabar com a sua carreira e que, ainda assim, continue a ser queimado é que me parece motivo de uma investigação. Se houvesse jornalismo a sério em Portugal, e se por algum milagre parte desse jornalismo fosse dedicado ao jornalismo desportivo, andava meio país de volta de Miguel Rosa, dos dirigentes do Belenenses e dos Carraças que para aí andam. É inacreditável que um dos mais promissores jogadores da sua geração, mesmo tendo conseguido libertar-se do vínculo com o clube ao qual deu mais de metade da vida, continue a ser prejudicado por, de algum modo, ter pisado os calos a alguém com suficiente poder para lhe arruinar a carreira. Fora das quatros linhas, o futebol são hienas. Como tenho opiniões controversas acerca do que fazer a hienas, abstenho-me de dizer mais do que isto.

No mesmo fim-de-semana, uma paulobentice por um discípulo. O futebol das equipas de Abel é tão pobre que ficar do lado do treinador, por mais razão que possa ter, me parece idiota. Não sei o que se passou, e na verdade não preciso. A ser verdade o que foi noticiado, Iuri Medeiros entrou em campo na segunda parte, provavelmente já amuado, e não mostrou muita vontade, sobretudo em defender. Devo dizer que o simples facto de um dos mais talentosos jogadores da equipa ficar no banco me parece mais grave do que qualquer amuo de um miúdo de 20 anos. O problema de Abel é que nunca foi muito talentoso. Quando se tem talento, e se vê outros que não o têm a jogar no lugar de quem o tem, é difícil arranjar motivação. Alegam os mais conservadores que poder um dia jogar na equipa principal devia ser motivação suficiente para Iuri. Quem o alega não sabe o que é jogar futebol, não sabe o que é ter consciência de que se é muito melhor do que certos colegas e ser preterido porque esses colegas são mais "esforçados", não sabe o que é ter expectativas quanto à progressão numa carreira curta como a de jogador de futebol e sentir, semana após semana, que essa progressão depende de quem não percebe nada do jogo, etc.. Iuri Medeiros é um dos melhores jogadores da sua geração. Tem mau feitio? É irreverente? Acha que é vedeta? Estes jogadores motivam-se pondo-os a jogar, dando-lhe responsabilidades acrescidas. Ninguém com o perfil dele fica melhor jogador por ser castigado. Os castigos vão apenas fazer com que se sinta mais revoltado e com menos vontade de mostrar o que vale. Se querem ensinar-lhe alguma coisa, a ser solidário, por exemplo, façam com que se sinta responsável por alguma coisa: dêem-lhe a responsabilidade de bater os cantos, de usar a braçadeira de capitão, etc.. Enquanto não compreenderem que os jogadores de futebol, nos dias que correm, não cumprem deveres só porque é isso que devem fazer, não compreenderão nada e continuarão a desperdiçar talentos. Para que alguém como Iuri faça em campo o que Abel gostaria que ele fizesse, era preciso que Abel o convencesse de que ele, mais do que um dever a cumprir, tem uma responsabilidade para com ele mesmo. Mas isso, dado o perfil de treinador de Abel, é coisa que dificilmente será capaz de fazer. Esperemos, para o bem de Iuri e do futebol português, que Abel não dure muito tempo nestas funções.

Muito se tem falado do Atlético de Madrid de Diego Simeone esta época. A minha opinião mantém-se mais ou menos a mesma, independentemente de este ano estar envolvido na luta pelo título. Reconheço que, defensivamente, o Atlético é uma equipa que raramente se desorganiza, que defende com muitos homens junto da bola, e que sabe escolher os momentos de pressão. Reconheço também que essas são as únicas virtudes da equipa. O resto é fé, muita fé, níveis de confiança altíssimos, e a equipa mais parecida com o Boavista de Jaime Pacheco desde que deixaram de permitir dez entradas acima do joelho por jogo. O desafio deste fim-de-semana, frente ao rival de Madrid, tirou todas as dúvidas. Mourinho tinha construído uma equipa de caceteiros (até Ozil batia), uma equipa que só com muita boa vontade dos árbitros, sobretudo nos jogos contra o Barcelona, era capaz de terminar a partida com onze jogadores. Passado o período de Mourinho, essa equipa perdeu boa parte desses maus hábitos, salvo talvez os dois animais que jogam como defesas centrais. Devo dizer, porém, que essa equipa, ao pé do Atlético de Madrid de Diego Simeone, era uma equipa de escuteiros. Ao intervalo, este fim-de-semana, quantos jogadores do Atlético de Madrid teriam conseguido permanecer em campo, com um árbitro rigoroso? O Atlético entra em campo com onze arruaceiros, e a arruaça é, sem sombra de qualquer dúvida, a arma pela qual conseguem nivelar as suas partidas. Tudo espremido, o futebol do Atlético de Madrid de Simeone dava talvez para andar a lutar pela manutenção (em termos colectivos, claro). Valem os agarrões, os puxões, as entradas violentas, a agressividade bem à margem das leis, a pressão constante, intimidatória, mesmo, sobre os árbitros, etc.. O Atlético ganha os seus jogos, geralmente, porque empurra - literalmente - os adversários para o seu último reduto, acabando por marcar nalgum lance confuso, num ressalto, ou numa perda de bola qualquer. Raramente se vêm jogadas pensadas. Vencem pelo desgaste, pela garra, pela provocação, pela dureza física. O Boavista de Jaime Pacheco também não jogava futebol. Confesso, todavia, que julgava que equipas que confundem futebol com lutas de galos tivessem os dias contados. Infelizmente, não têm. De tempos a tempos, lá aparece um arruaceiro, secundado por outros arruaceiros, a comandar onze arruaceiros e a gozarem da complacência de quem tem medo de arruaceiros. Como se viu no passado, equipas assim duram enquanto durar aquilo que as anima: a crença de que podem superar-se e a complacência de quem os deixa jogar de acordo com leis diferentes. Quando se acabarem estas coisas - digamos assim - acaba-se tudo. A Diego Simeone auguro, por isso, pouco mais do que augurava a Jaime Pacheco há década e meia: um ou outro título no currículo, talvez um contrato num clube com maiores aspirações, um resto de carreira  repleto de fracassos sucessivos e a posteridade recordando-se eternamente do quão feio era o futebol das suas equipas.