Em primeiro lugar, ninguém conhece a fundo as razões do jogador para querer sair, pelo que não me parece justo assumir que Moutinho pretende o Everton apenas por questões monetárias. Quanto a mim, acho que o jogador poderia almejar muito mais do que um clube do meio da tabela em Inglaterra, mas essa é uma opção do jogador. Em segundo lugar, não se sabem, com exactidão, quais as verdadeiras palavras de Moutinho e em que contexto foram proferidas. Os adeptos do Sporting, sobretudo os mais fervorosos, não pensaram, todavia, duas vezes antes de condenarem o jogador. Assim, aquele que era até então um ídolo e um exemplo de profissionalismo é agora visto como um traidor, um mercenário como tantos outros.
Quando João Pinto assinou pelo Sporting, muitos benfiquistas, ainda que o jogador não tivesse tido qualquer culpa na forma como tinha sido empurrado para fora do clube, apelidaram-no de vira-casacas. Na altura, lembro-me que as palavras mais sábias que ouvi foram as de Paulo Sousa. Segundo o ex-internacional, as transferências de jogadores entre clubes rivais, em Itália, eram uma coisa normalíssima porque o futebol tinha um estatuto profissional que em Portugal, por exemplo, não tinha. Essas palavras, creio, ilustram aquilo que penso acerca do futebol enquanto profissão. Para muitos, o futebol deve ter um estatuto especial e os jogadores, ainda que trabalhadores como outros quaisquer, não devem poder gerir a carreira como faz toda a gente. Não concordo com isto. O futebol, pela mediatização que tem, pela ligação que os trabalhadores de determinado clube (jogadores) estabelecem com os simpatizantes desse clube, constitui-se como uma realidade diferente de uma qualquer empresa. Mas, em abono da verdade, isso é responsabilidade de quem estabelece essa ligação, ou seja, dos adeptos. Um jogador é um trabalhador como outro qualquer, que tem um contrato e que representa, segundo o firmado no contrato, um determinado clube. Se, por acaso, receber uma proposta melhor, tem toda a legitimidade para a querer aceitar, desde que não infrinja o contrato. Se ninguém questiona um contabilista por abandonar a empresa que representou durante alguns anos quando este recebe uma proposta irrecusável de uma multinacional que lhe pagará dez vezes mais, ninguém pode questionar um jogador de futebol por querer melhorar as suas condições financeiras e laborais.
Dir-me-ão, nesta altura, que os jogadores de futebol deveriam ter mais amor à camisola, sobretudo jogadores que nasceram e cresceram para o futebol num determinado clube e que, à primeira oportunidade, lhes viram as costas. Antes de mais, um clube, ao formar um jogador, não tem apenas intenções altruístas; a aposta de um clube num jogador tem sempre em conta um potencial de evolução que poderá render milhões ao clube no futuro, quer através de uma futura transferência, quer através de feitos desportivos. Portanto, creio, assumir que um jogador é ingrato por querer sair é uma estupidez, uma vez que foi para isso, principalmente, que foi formado.
Mas aquilo que me importa esclarecer é a questão do amor à camisola. Achar que Moutinho é ingrato é presumir que Moutinho deve algo, mais do que ao Sporting enquanto entidade patronal, ao Sporting enquanto entidade afectiva. Os adeptos, pelo carinho com que tratam os jogadores, imaginam que estes lhes devem algo em troca, uma espécie de amor fraterno. Mas isso não é verdade. O carinho dos adeptos é já a recompensa pelos feitos do jogador; ao lhes reconhecerem valor estão imediatamente a estipular uma reciprocidade de afectos. Moutinho, à massa adepta, não deve nada, porque o próprio carinho que lhe deram é já a recompensa por aquilo que ele, Moutinho, lhes deu. Neste sentido, um jogador só deve algo à entidade empregadora e essa dívida está negociada desde a assinatura do contrato. Se Moutinho, Quaresma e Miguel Veloso desejam sair, esse é um problema deles. Deles e da entidade empregadora. Nunca dos adeptos. Imaginar que um jogador, ao desejar abandonar um clube, está a atraiçoar esse clube é o mesmo que imaginar que um accionista de uma qualquer empresa tem o direito de se sentir indignado por o contabilista dessa empresa querer abandoná-la porque recebeu uma proposta melhor de outra empresa. E isto é, creio, insensato. Eu sei que o futebol é uma realidade diferente e que há emoções envolvidas que não há no mundo empresarial. Mas, antes de ser objecto de emoções, um jogador é um profissional como outro qualquer. E nenhum adepto respeita um jogador se não respeitar esta hierarquia de estatutos. Isto significa que os adeptos que não respeitam a vontade de um jogador, por mais errada que seja, apenas o acarinham porque defende os interesses do clube de que gosta. Nestas circunstâncias, um adepto que não aceite a vontade de sair de um jogador não gosta do jogador, mas apenas do objecto que ele é enquanto activo do seu clube. Considero, por isso, que a vontade de sair de Moutinho é perfeitamente legítima, conquanto a não compreenda do ponto de vista do progresso da sua carreira desportiva.
Há, nesta altura, a necessidade de referir casos especiais em que os jogadores trocam os clubes onde são muito apreciados por clubes rivais. O caso de Christian Rodriguez é o exemplo mais recente, mas o mais mediático de sempre será, provavelmente, o de Luís Figo, quando se transferiu do Barcelona para o Real Madrid. Os dois casos têm semelhanças, se bem que no caso do uruguaio haja a suspeita de que as negociações com o Porto já decorriam há muito tempo. Tanto num caso como noutro, os clubes de origem (Benfica e Barcelona) tiveram hipóteses de satisfazer as pretensões dos jogadores antes de os perderem. Se o Benfica sabia, à partida, que não conseguindo chegar a acordo com o jogador, o perdia (ainda que não fosse facilmente presumível que um clube rival o aproveitaria), já o Barcelona confiou na sorte, imaginando que ninguém fosse louco o suficiente para vencer a cláusula de rescisão de Figo, e rejeitou negociar um contrato mais proveitoso para o português (na altura, Figo recebia sensivelmente metade do que recebia Rivaldo e as suas pretensões não visavam receber mais do que o brasileiro, portanto, não era nada que o Barcelona não pudesse dispender pelo seu capitão de equipa e jogador mais influente). Ao se transferirem para o Porto e para o Real Madrid, Rodriguez e Figo foram apelidados de mercenários. Mas a verdade é que qualquer jogador de futebol e qualquer profissional de qualquer área é, neste sentido, mercenário. E tem legitimidade para o ser, porque não está em causa uma simples troca de camisolas, mas melhores condições profissionais.
Nada disto seria relevante se não existisse essa coisa abstracta que une adeptos a clubes: o clubismo. O clubismo, como qualquer espécie de paixão, é irracional por natureza; as suas origens estão na educação, nas primeiras simpatias da infância, na partilha de valores, no sentimento de pertença colectiva. É um sentimento com o qual se aprende a viver, um modo de estar na vida, como uma religião. É adquirido como são adquiridas as paixões das crianças: gosta-se de um clube porque foi o primeiro de que se aprendeu a gostar ou porque as pessoas que nos rodeavam gostavam desse clube. Não tem, por isso, qualquer fundamento racional. Por isso, enquanto sentimento irracional, facilmente gera amores e ódios. Nesse sentido, o clubismo promove comportamentos tendenciosos: há a tendência para valorizar, num jogador, o seu estatuto de elemento do clube com o qual se simpatiza e para desvalorizar o seu estatuto de indivíduo, com necessidades e responsabilidades. À luz do clubismo, um jogador do clube de que se gosta é um cruzado, alguém que tem de estar ao serviço da causa do clube. Rejeitar esta causa é, deste ponto de vista, uma heresia. Considero, por isso, que o clubismo, por causa da sua irracionalidade, ignora o estatuto de trabalhador livre que o jogador tem de possuir. Antes de servir a causa do clube cujas cores defende, um jogador é um profissional como outro qualquer, com responsabilidades e necessidades profissionais individuais, que lhe dizem respeito apenas a ele. Antes de dever respeito ao clube, um jogador deve respeito a si próprio. O clubismo ignora ou inverte esta relação e considera que qualquer jogador que olhe para o seu umbigo antes de olhar para os interesses do clube está a incorrer numa atitude condenável. Mas essa é uma forma irracional de se ver as coisas. Racionalmente, não há qualquer compromisso mais importante que aquele que o jogador tem para consigo.
Este argumento leva-me para aquilo que de mais importante queria dizer e que está relacionado com o conceito de "amor à camisola". Serei, desde logo, muito claro: para mim, não existe nem nunca existiu aquilo a que se chama amor à camisola. Nem tem de existir. Hoje em dia, muita gente diz que já nenhum jogador tem amor à camisola. Não concordo com isto porque não concordo que algum dia tenha havido uma coisa como essa. Ainda assim, percebo perfeitamente o sentimento que motiva este desabafo. Antigamente, os jogadores faziam carreira quase sem trocar de clubes, o que ajudava a criar laços com a massa adepta, laços esses que, hoje em dia, dificilmente existem. Esses laços, contudo, eram resultado do mercado e não um valor moral que entretanto desapareceu. Se o futebol fosse, nessa altura, o fenómeno que é hoje, esses laços teriam tanta dificuldade em se revelarem como agora. A isto dir-me-iam que os jogadores só se interessam pelo dinheiro. A isto responderia que os jogadores são profissionais e, se há mercado disposto a pagar-lhes mais pelo que eles fazem, seria ridículo não o aproveitar. Neste ponto da discussão, alguém se levantaria, com certeza, e diria que o problema é haver tanto dinheiro envolvido no futebol e que, antigamente, como o futebol não era um negócio ou uma profissão, mas muito mais uma actividade recreativa, os jogadores jogavam nos clubes onde se sentiam bem e não onde lhes pagavam mais. Concordo com isto. Mas o problema não é o dinheiro, como parecem pensar. O dinheiro só torna mais fácil o que antigamente já existia: os jogadores respondem e responderam sempre a necessidades individuais e não um pretenso amor ao clube; se ficavam muitos anos num clube era por se sentirem bem, em primeiro lugar, com os colegas, com os treinadores, com as pessoas próximas com quem conviviam. Nenhum jogador, por mais amor ao clube que tivesse, insistiria em permanecer num clube apenas por gostar muito desse clube. Ou seja, o que pretendo dizer é que o emblema não é nem nunca foi a causa pela qual os jogadores resistiam a sair para outros clubes; as causas foram, essas sim, o comodismo, a amizade dos colegas, etc. Jamais o respeito pelo clube.
O ano passado, aquando do mundial de rugby, muita gente se lembrou de tirar partido daquilo que "Os Lobos" fizeram e de afirmar que o patriotismo daquela selecção era exemplar: sem receberem dinheiro, sem condições para treinar, tinham ultrapassado todas as dificuldades e estavam, em nome de Portugal, a disputar um campeonato do mundo. E quiseram comparar o seu comportamento com o dos jogadores de futebol em geral, dizendo que aos segundos faltava aquilo que nos primeiros abundava: amor à camisola. Isto é um absurdo! E é um absurdo porque antes de estarem ali a defender o nome de Portugal, estavam ali por eles próprios, pelo orgulho individual de disputar um mundial. Se cantaram o hino da maneira que cantaram, não é por sentirem o país com mais ferocidade; é, isso sim, porque tinham conseguido algo de muito importante para eles próprios. Não havia ali nenhum amor à camisola; havia, isso sim, orgulho, um orgulho forte, porque talvez estivesse ali em jogo a oportunidade de uma vida. Pensar que um jogador de rugby tem mais patriotismo porque ganha menos dinheiro é absurdo. Um jogador de rugby tem o mesmo tipo de respeito para com aquilo que faz que um jogador de futebol e esse respeito é univocamente direccionado para si. O conceito de "amor à camisola" é uma fantochada criada por quem considera que o dinheiro veio corromper os valores morais de antigamente. Mas esses valores morais já então não existiam. Só não havia era como pô-los à prova. Muito mais do que a um clube, do que a uma massa associativa, do que a um emblema, do que a uma camisola, um jogador deve respeito a si próprio. É muito mais forte o sentimento egoísta de realização pessoal do que o sentimento humilde de servir uma causa. Neste sentido, o amor à camisola de que falam não é amor à camisola, mas amor-próprio.