Em primeiro lugar, José Mourinho não deu lição nenhuma. Mais não fez que ganhar uma Liga dos Campeões como tantos outros já ganharam, de um modo que de genuíno não tem nada e que nem sequer tem muito a ver com aquilo que foram os seus primeiros anos de treinador. A verdade é que, de certo modo, Mourinho ganhou vendendo a alma, ganhou como, por exemplo, Benitez tinha ganho, abdicando da iniciativa de jogo, defendendo o melhor que podia, atacando pela certa e esperando pela graça divina, pela inspiração dos seus avançados e pelos erros dos adversários. Não tenho nada contra ganhar deste modo nem estou a defender que não se pode ganhar deste modo. Está mais do que provado de que é possível ganhar de todas as maneiras, sobretudo provas como esta, cujo modelo potencia o equilíbrio entre equipas mais fracas e equipas mais fortes e facilita o trabalho de equipas que dependem do comportamento dos adversários para fazer valer os seus pontos fortes. Mas não tenho também dúvidas de que, optando por isto, se depende muito mais de factores que não se podem controlar, como a arbitragem, a sorte, a atitude do adversário, a inspiração de dois ou três avançados, os momentos de finalização, etc.. Mourinho ganhou, é certo, mas raramente foi superior, ao longo das quatro eliminatórias da prova, já para não falar das dificuldades que teve para se apurar para a segunda fase. Dependeu sempre da inépcia dos adversários e da felicidade, fazendo do seu modelo de jogo não um modelo único e próprio, mas um contra-modelo, delineado sempre em função do comportamento do opositor. É possível alegar que tal forma de encarar o jogo é perfeitamente legítima e, mais do que isso, possibilita vitórias. Como já referi, acredito que se pode ganhar de várias maneiras, sobretudo provas que não dependem da regularidade exibicional. Aquilo em que não acredito é que todas as maneiras de jogar possibilitem as mesmas probabilidades de ganhar.
Como o que me interessa aqui é discutir o par de opostos em que se constituem a posse de bola e o espaço, não me deterei muito mais naquilo que foi a campanha europeia do Inter, que alguns garantem ter sido exemplar. Como é sabido, defendo que a melhor maneira de ganhar, aquela que maiores probabilidades confere a uma equipa de ser bem sucedida, é aquela que faz da posse da bola a sua filosofia primeira. Do meu ponto de vista, nenhuma equipa que queira ser grande, que queira disputar e vencer tudo, pode negligenciar a posse de bola. Se há casos de vencedores de Ligas dos Campeões ou de Campeonatos Europeus ou Mundiais que o fizeram, como o Inter de Mourinho, o Liverpool de Benitez, ou a Grécia de Rehhagel, é apenas porque esse tipo de competição, sendo decidida em eliminatórias, não confere importância à regularidade, à capacidade de uma equipa jogar constantemente bem, privilegiando, em vez disso, o detalhe e até a arbitrariedade da fortuna. É muito mais difícil encontrar vencedores de campeonatos nacionais cujo modelo de jogo de base se construa com os pressupostos destas equipas, isto é, com um bloco baixo, muitos homens atrás da linha da bola, ofensivas constantemente em inferioridade numérica, privilégio dos momentos de transição, etc.. A razão pela qual as competições nacionais raramente são ganhas por equipas que actuem preferencialmente desse modo é simples. Num campeonato em que se exige regularidade, estas equipas, embora possam ser muito fiáveis defensivamente, carecem de uma capacidade ofensiva evidente e perdem necessariamente pontos contra equipas que não se expõem tanto, que não atacam tanto. Colocar a equipa a jogar deste modo, isto é, dispensando a posse e concentrando-se no espaço, é especialmente útil contra equipas que gostem de atacar e de ter a bola, e ainda em competições a eliminar, em que um empate num dos jogos não é um mau resultado, em que os penálties acabam por equilibrar as diferenças entre os dois conjuntos, e em que os detalhes costumam ser mais decisivos. Perder um desafio numa competição nacional é, por isso, muito menos relevante e os detalhes, nessa competição, não fazem tanta diferença.
Ora, perante isto, é possível dizer que o Inter de Mourinho se adaptou à especificidade desta competição, jogando num modelo que, para esta prova, fazia todo o sentido, jogando porém de outro modo no campeonato italiano. Isto não é verdade. Se há coisa que Mourinho vinha a fazer, já há algum tempo, era a preparar a sua equipa para ser aquilo que foi nesta competição. Há quem possa pensar que surtiu efeito. Não penso assim. De facto, Mourinho venceu tudo, conseguiu algo que ninguém conseguia há muito tempo no Inter e mostrou que é um vencedor como há poucos. Mas a que custo? O modo de jogar do Inter, no campeonato, não foi especialmente diferente. Apanhando-se a ganhar, por exemplo, era comum ver a equipa abdicar da bola, recuar e defender com um bloco baixíssimo, entregando toda a iniciativa ao adversário. Se isto resultou umas vezes, não resultou noutras. E a verdade é que a revalidação do título, num campeonato pautado pela irregularidade de todos os conjuntos e paupérrimo em termos de oposição à hegemonia dos milaneses, chegou a estar tremida, sendo que a Roma, que começou o campeonato muito mal, chegou a estar a catorze pontos do Inter, andou completamente arredada da discussão do título durante três quartos da prova e, mesmo assim, por pouco não era campeã. O futebol à italiana do Inter de Mourinho serviu para ganhar tudo, mas apenas porque em Itália não há, em termos de concorrência, qualquer espécie de oposição. O Inter não fez um campeonato brilhante, não praticou um futebol interessante e sagrou-se campeão mais por demérito dos adversários do que por mérito próprio. É aqui que quero chegar.
Mourinho preparou a sua equipa especificamente para triunfar nas eliminatórias da Liga dos Campeões, passando a estratégia nestes jogos por entregar a iniciativa ao adversário. Resultou, como podia não ter resultado. Com a estratégia adoptada, entregou o destino da sua equipa à sorte, que lhe acabou por ser favorável. De facto, ganhou aquilo a que se propôs. Mas os custos, creio, foram bastante pesados. A equipa tornou-se absolutamente medíocre com bola, sem qualquer imaginação, incapaz de inventar coisas novas. Passou a poder jogar apenas de acordo com os ímpetos dos adversários, passou a ser uma equipa de reacção. Como todas as equipas que só são eficazes em reacção, tornou-se dependente de diversos factores e isso, por pouco, não lhe custava o título italiano. Custar-lhe-á muito mais, de certeza, no futuro. O seu Inter parou de evoluir, passou a ser uma equipa que só se sente bem com espaço e que, quando não o tem, não sabe o que fazer. Eis o problema de se preferir o espaço à posse de bola. Sendo competente apenas nos momentos em que pode utilizar o espaço, é uma equipa competente num número reduzidíssimo de ocasiões, durante um jogo. Isto faz com que a equipa tenha de ser obrigatoriamente muito eficaz, faz com que tenha de aproveitar ao máximo os poucos momentos em que puder activar as suas transições e aproveitar o espaço. Se não o for, fica sempre mais próxima de falhar. A diferença, está bem de ver, é que uma equipa que prefira a posse de bola pode inventar as suas próprias ocasiões, pode sempre aumentar as condições de êxito e depende sempre menos da eficácia que tiver na finalização das jogadas. É por isso que a opção pela posse de bola é sempre uma estratégia mais eficaz que a preferência pelo espaço.
Não significa isto que não haja momentos específicos, num jogo, em que seja útil baixar o bloco e, abdicando da posse de bola, procurar sobretudo aproveitar os espaços concedidos por quem ataca. Poderá ser útil, por exemplo, nos minutos finais do primeiro tempo, para que a equipa não se desorganize nem se desgaste desnecessariamente; ou poderá ser útil imediatamente a seguir a um golo, para impedir a reacção imediata do adversário. Isto é, porém, muito diferente de adoptar esta estratégia durante 90 minutos. Optar por este tipo de jogo a tempo inteiro significa abdicar da iniciativa, significa deixar a faca e o queijo do lado do adversário. Pode traduzir-se numa estratégia eficaz essencialmente quando se marca primeiro e o adversário tem obrigatoriamente de atacar. Mas que tipo de competência, em termos colectivos, tem uma equipa deste tipo para virar resultados? Não tem. Ou essa competência é directamente proporcional à competência individual dos seus atacantes, sobre quem recai a responsabilidade de fazer o que a equipa, em conjunto, não consegue fazer. Saber aproveitar o espaço é uma arma muito importante em futebol. Mas uma equipa cuja única arma seja essa é sempre uma equipa mediana que, sem atletas capazes de decidir partidas sozinhos, pouco ou nada é capaz de conquistar. Se nos recordarmos, esta estratégia resultou na segunda mão frente ao Chelsea porque o Inter teve a sorte de partir em vantagem; resultou na segunda mão frente ao Barcelona porque o Inter conseguiu, sem saber bem como, partir com uma vantagem de dois golos para esse jogo; resultou frente ao Bayern porque defensivamente a equipa de Van Gaal esteve incrivelmente mal; e resultou sobretudo porque havia Milito, Eto'o e Sneijder. Isto é, a estratégia de que tanto se fala e que tantas lições deu, segundo alguns doutores, é uma estratégia que não depende de si própria, mas dos seus executantes, dos erros e da inépcia dos adversários e da sorte. E com bons executantes, com os erros dos adversários e com a sorte qualquer incompetente pode contar. Esperava-se que a distinção entre um dos melhores treinadores do mundo e um simples agricultor se traduzisse de um modo mais categórico. É evidente que Mourinho não é só isto e que, dentro deste tipo de estratégia, é extremamente competente, como poucos. Mas isso não chega. E não chega essencialmente porque é muito mais fácil pôr uma equipa a jogar deste modo, fazendo-a depender destas coisas, como já várias pessoas o tinham feito com sucesso, do que arranjar um modelo com menos vícios, que dependa menos de factores externos.
Eu, que sou exigente e que conheço o trabalho de Mourinho e aquilo de que é capaz, acho que esta vitória não é tão fantástica quanto apregoam. E isto sobretudo porque acho que, sendo dos poucos treinadores do mundo que teria condições para revolucionar o jogo, Mourinho optou pelo caminho mais fácil. Venceu, sim. Mas venceu como Alex Ferguson já venceu, como Rafa Benitez já venceu, como Carlo Ancelotti já venceu. Venceu como outros tantos já venceram. Não venceu categoricamente, como o Barcelona o ano passado, por exemplo; não venceu impondo coisas novas, impondo a sua competência sobre a dos outros. Venceu, como tantos já venceram, e apenas porque há que haver sempre um vencedor, todos os anos. E, como tantos outros que venceram assim, tão depressa vencem e são agraciados pela opinião pública como perdem e caem rapidamente no esquecimento. É por isso que negligenciar a posse de bola e preferir o espaço é uma estratégia condenada logo de partida. Pode conduzir a vitórias, efectivamente, mas nunca trará regularidade; depende de demasiadas circunstâncias para que se possa impor por si própria. É também por isso que defendo que a posse de bola, em futebol, é tudo: é o princípio vital de qualquer equipa que queira não só ganhar tudo, mas ser grande e sempre grande. Quando não se tem espaço, a posse de bola inventa-o. Quando não se tem a posse de bola, não há espaço que a invente e resta-nos tão-somente o próprio espaço. É este o corolário final da minha análise à vitória de Mourinho, uma vitória que muitos aplaudem boquiabertos, mas que não merece, em boa verdade, toda a histeria que a tem envolvido. O próprio Mourinho já fez coisas bem mais impressionantes e merecedoras de registo; o que fez este ano com o Inter não tem nada de extraordinário e roça até a simples banalidade.