terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Virar o Flanco

Sendo um daqueles lugares-comuns mais repetidos, importa analisar a pertinência que envolve a necessidade de "virar o flanco". Como é sabido, simpatizo pouquíssimo com lugares-comuns e, sobretudo, com a ideia de que uma receita, verificando-se um sintoma, se deve aplicar indiscriminadamente. A maioria dos comentadores de futebol, ao ver uma jogada a ocorrer junto a uma das linhas, e uma grande aglomeração de jogadores nessa zona do campo, defende automaticamente que a equipa que tem a bola deve virar o quanto antes o flanco ao jogo, solicitando qualquer colega à largura do terreno. O motivo pelo qual o defendem é só um: a crença de que se deve atacar sempre por onde há menos adversários. É contra esta crença que este texto fará fogo.

O que se ganha realmente quando se vira o flanco? Dirão aqueles a quem os lugares-comuns pouca comichão fazem que se ganha espaço e tempo, senão mesmo a possibilidade de progredir imediatamente no terreno de jogo. Pessoalmente, aceito que se ganhem estas três coisas; o que já tenho dificuldades em aceitar é que alguma delas seja realmente aquilo com que uma equipa que ataca mais se deve preocupar. Para que serve o espaço e o tempo? E por que é que é melhor a bola estar uns metros mais à frente? A finalidade de um lance de ataque é, a cada instante, estar mais perto da baliza adversária do que no instante anterior? É ir tendo cada vez mais espaço? Não. Pelo menos em ataque organizado, a única finalidade, em cada acção ofensiva, é desposicionar o colectivo adversário, ou seja, melhorar as condições de ataque. Isso pode ser feito com muito ou com pouco espaço, em muito ou em pouco tempo, e de muito longe ou muito perto da baliza adversária. O que é que interessa progredir constantemente, se as condições em que isso é feito não são as melhores? Nenhuma das três coisas atrás mencionadas como benefícios de se virar o flanco são, portanto, minimamente relevantes para quem desenha um ataque. Resta, pois, saber se virar o flanco não acarreta ainda desposicionar o colectivo adversário ou melhorar as condições em que se ataca, os verdadeiros objectivos da equipa que tem a bola. E aí a minha resposta é: depende. Depende do posicionamento defensivo dos adversários, depende do posicionamento dos próprios colegas, depende do que estiver a ocorrer no flanco em que está a bola, depende do que estiver a ocorrer ou que é previsível que venha a ocorrer no flanco para onde a bola irá, depende das condições que houver para fazer a variação, etc.. Enfim, depende de todas as circunstâncias.

Normalmente, pensa-se em virar o flanco quando se ataca por um dos flancos, quando esse flanco está demasiado congestionado e quando há um colega solto, no flanco contrário, a quem é possível enviar a bola. Vê-se um jogador solto do lado contrário e assume-se imediatamente que essa é uma opção melhor do que tentar progredir por onde há muita gente. Mas será que o é? Na verdade, não é só a equipa adversária que tem pouca gente do lado contrário; por norma, é também quem ataca. Trocando o flanco ao jogo não se põe a bola apenas onde há um aglomerado de adversários menor; põe-se a bola também num sítio onde há menos colegas, entregando assim o lance à capacidade de um indivíduo. É verdade que, tirando a bola do flanco congestionado, se obriga o adversário a bascular, a desarmar a sua zona de pressão e a refazê-la noutro lado; mas também se dificulta o trabalho colectivo de quem ataca. Com menos jogadores, menos possibilidades de combinação existem. Se o adversário tem de se reorganizar, quem ataca tem também de reocupar posições, tem também de perceber que espaços sobram para invadir, qual a arrumação defensiva do adversário com que pode contar, etc. Para ser sincero, não vejo numa mudança de flanco comum ganhos significativos. Tira-se a bola de um sítio congestionado, mas não se tira vantagens disso. No fundo, é apenas uma forma de reiniciar a jogada, com a agravante de obrigar quase toda a equipa a ocupar rapidamente novas posições, o que provoca maior desgaste. Nos momentos imediatamente a seguir à variação do flanco, a equipa que tem a bola fica inclusivamente com poucas soluções de passe e quaisquer movimentos de aproximação são acompanhados do movimento de basculação natural dos defesas. Na verdade, não me parece ser melhor variar o flanco do que atrasar para um central, por exemplo. Ganha-se tempo e espaço, como com a outra alternativa, e sai-se da zona de pressão sem que os jogadores envolvidos sejam forçados a correr rapidamente para o flanco oposto para dar uma opção de passe ao colega que recebeu a bola.

De resto, há poucas situações em que a equipa adversária está mais desposicionada do que em acções de pressão. Pressionar implica sempre desposicionamentos, ainda que breves e ainda que instantaneamente corrigidos pelo colectivo. Nesse sentido, virar o flanco não é mais do que reiniciar a jogada de ataque e, por conseguinte, não é mais do que convidar um adversário que estava naturalmente desorganizado (ou que tinha tendência a desorganizar-se em cada troca de bola), por força da pressão que fazia sobre um dos flancos, se reorganize lentamente. Uma tabela, um passe vertical para um apoio entre linhas, uma pequena lateralização, um passe e uma devolução curta - tudo isto me parecem maneiras muito mais eficazes de ultrapassar uma acção de pressão junto a um flanco do que a simples variação de jogo. Evidentemente, há ocasiões em que nenhuma destas coisas é possível ou razoável. Nessas alturas, parece-me que a melhor forma de agir é recuar, dar no central, obrigar o adversário a desfazer a pressão, e recomeçar lenta e organizadamente a construção noutro sítio. Virar o flanco parece-me, por isso, uma das coisas menos indicadas quando a equipa que ataca se vê encurralada num dos flancos. Pode, é claro, ser a melhor decisão a tomar, mas apenas em circunstâncias muito particulares. Não se pode ainda esquecer que a organização defensiva do adversário, sobretudo se esse adversário for competente, depende essencialmente da posição da bola em relação à baliza que defende. Ou seja, essa organização só se desfaz no momento imediatamente a seguir à bola mudar de posição, altura essa em que, colectivamente, há um rearranjo no sentido de recuperar essa organização. Uma variação de flanco é apenas uma mudança do posicionamento da bola e implica, por isso, apenas um momento de reorganização defensiva. Dois passes curtos, por exemplo, implicam duas reorganizações defensivas. E implicam, por arrasto, mais tempo de desorganização do adversário. Se a verdadeira finalidade de uma cadeia de acções ofensivas é desposicionar o colectivo adversário, então virar o flanco é menos útil do que a maioria das outras acções. Se, em vez de variarem o centro do jogo quando não conseguem progredir por um flanco, as equipas se preocupassem a criar condições para sair de zonas de muita densidade populacional, através de movimentos de aproximação, de passes e devoluções, de tabelas, de movimentações constantes de quem não tem a bola, etc., seriam sem dúvida alguma equipas muito mais competentes. Como noutros casos, já era tempo de se perceber que certas ideias feitas acerca do jogo pouco sentido fazem, nos dias que correm. Este é só mais um caso.


sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O Golo do Ajax

Três tabelas e um golo. Foi assim, ontem, em Amesterdão. Em larga medida, romper linhas adversárias e desposicionar defensivamente uma equipa inteira é assim que se faz. Passe vertical no apoio frontal, que dá de frente; novo passe vertical no segundo apoio frontal, que volta a dar de frente; e mais um passe vertical num terceiro apoio frontal, que volta a entregar de frente. Se a primeira tabela não representou ganhos territoriais significativos e teve apenas a utilidade de desposicionar o meio-campo escocês e preparar a jogada que se seguiria, as outras duas permitiram ultrapassar 5 oponentes e deixar Schone na cara do guarda-redes do Celtic. Há quem ache que, com aquela densidade de jogadores adversários, é pouco razoável tentar furar pelo meio e mais recomendável contornar o bloco defensivo. Os jogadores do Ajax mostraram como se faz e o futebol agradece. É assim que se ataca colectivamente: dando opções de passe constantes, com movimentações simultâneas e procurando passes e devoluções dentro do bloco do adversário, preferencialmente entre linhas. No início da jogada, a equipa escocesa nem estaria propriamente mal posicionada, mas os rearranjos sucessivos e a tentativa de ir tapando cada uma dos brechas criadas pela jogada dos holandeses deixou-os, em poucos segundos, e com apenas meia-dúzia de passes, completamente à deriva. É uma pena não haver mais equipas a fazer coisas destas.



sábado, 26 de outubro de 2013

Notas sobre alguns Avançados

Continua a prevalecer, no discurso acerca de avançados, a máxima simplista e redutora de que avançados servem para fazer golos, e jogadores que actuem nessa posição continua a ser avaliados de acordo com os golos que marcam, as oportunidades que têm para o fazer, ou, em suma, a capacidade que têm para aparecer nos momentos-chave das partidas. Isto é redutor porque os momentos-chave são uma ínfima parte do que acontece num jogo de futebol, o que significa que certos jogadores são avaliados por aquilo que produzem ou parecem produzir numa parte ínfima do jogo. Já aqui chamei a atenção, inúmeras vezes, para o erro analítico em que consiste pensar desse modo, mas a verdade é que as pessoas continuam a ser preguiçosas, continuam a ver o jogo como bem lhes apetece, dando apenas atenção aos momentos em que a bola ronda as balizas ou a emoção nas bancadas é mais intensa. Desse ponto de vista, nem sequer percebo por que se interessam tanto por futebol, nem percebo porque perdem 90 minutos a ver um jogo de futebol. Mais valia perderem apenas alguns minutos a ver os resumos dos lances mais relevantes. Pessoalmente, considero que essas pessoas não sabem ver um jogo de futebol e não têm, por isso, fundamentos nenhuns para analisar o que quer que seja. Um jogo de futebol é muito mais do que 6 ou 7 momentos por partida, em que a bola entra ou fica perto de entrar numa baliza, e um avançado é muito mais do que aquilo que aparece coligido nas melhores ocasiões de um jogo.


No lance do terceiro golo do Chelsea esta semana, por exemplo, Fernando Torres não toca na bola. E, no entanto, 80% do golo é dele. É-o porque é ele quem possibilita a Hazard passar com a facilidade com que passa pelo último defesa. Torres é um dos muitos mal amados do futebol actual, essencialmente porque é avançado, custou muito dinheiro, e não marca tantos golos como isso. Confesso que Torres não é o meu avançado predilecto, mas está longe de ser o trambolho com que é hoje em dia confundido. Duas coisas, a meu ver, contribuíram para que não facturasse no Chelsea como o fazia em Liverpool: o facto de as equipas jogarem de modo totalmente distinto (Torres era, em Liverpool, o único avançado de uma equipa que jogava, por sistema, em transição, não lhe sendo pedido mais do que algumas arrancadas por jogo, quando tinha espaço) e o facto de ter modificado substancialmente o seu corpo (a massa muscular actual de Torres não tem nada a ver com a que tinha quando chegou a Inglaterra), o que fez com que fosse perdendo agilidade e destreza técnica. À margem destas considerações, Torres continua a ser um avançado inteligente, sobretudo com espaço. Pode não ser um jogador extraordinário para funcionar como apoio frontal, mas é alguém que percebe muito bem as necessidades da equipa, em lances de pouca densidade numérica como sejam lances de contra-ataque típico. Neste tipo de situações, sabe geralmente o que fazer, protege-se muitíssimo bem da ratoeira do fora-de-jogo e é capaz de se adaptar rapidamente a mudanças de circunstâncias. Foi o que aconteceu neste lance. Acompanhou o lance até que Hazard ficasse de frente para o defesa e, nesse momento, iniciou o movimento nas costas do belga, criando a dúvida no defesa. Torres marcou dois golos, nesta partida, mas o seu melhor momento terá sido sem dúvida este.

Aceitar a última frase pode não ser fácil para toda a gente. Afinal, Torres não assistiu, não marcou. Nem sequer tocou na bola. E, no entanto, é bem possível que este golo seja mais seu do que qualquer um dos outros que marcou. É talvez sabido que, para mim, um avançado é como outro jogador de campo qualquer e deve fazer mais ou menos o que os outros jogadores de campo devem fazer, a saber, tomar boas decisões. É por isso que não me cativam alguns dos avançados mais mediáticos da actualidade, sobretudo aqueles que se destacam por serem combativos, irrequietos, brigões e possantes. Aprecio essas características se acompanhadas de qualidades técnicas evidentes e, acima de tudo, capacidade de compreensão do jogo. Da forma como entendo o jogo, jamais conceberia encaixar um avançado com as características do croata Mandzukic ou dos espanhóis Negredo e Soldado, jogadores por quem se pagou muito dinheiro. Mas também não conceberia encaixar outros, alguns dos quais muitíssimo queridos. Mario Balotelli talvez nem seja um bom exemplo, pois faz-me alguma confusão que a razão pela qual continua a ser colocado entre os melhores do mundo seja a irreverência. Aliás, o italiano é hoje o exemplo paradigmático de um erro muito comum no passado, o de se achar que a irreverência era sinónimo de talento. O raciocínio é mais ou menos este: a grande maioria dos jogadores talentosos são irreverentes; Balotelli é irreverente; logo, Balotelli é talentoso. O problema, claro está, é que mesmo que todos os talentosos fossem irreverentes isso não significaria que todos os irreverentes sejam talentosos. O conjunto dos irreverentes não coincide com o dos talentosos, e o facto de certos jogadores serem as duas coisas não implica que todos o sejam. Balotelli é irreverente, de facto, mas talento tem pouco.

Os dois avançados que, todavia, mais confusão me fazem hoje em dia, sobretudo pela diferença entre a real qualidade deles e aquilo que deles se diz, são o uruguaio Luis Suarez e o brasileiro Diego Costa. É curioso que, além de os achar parecidos em termos futebolísticos, acho-os muitíssimo semelhantes em termos de carácter. São avançados com mau feitio, que passam o jogo "picados" com os defesas contrários, sejam eles quem forem, que refilam em todos os lances, que se fazem de vítimas, que agridem por tudo e por nada, sem pudor, etc.. E, como jogadores, são avançados que raramente jogam de frente, que raramente servem de apoio frontal aos médios, que "metem" a cabeça no chão assim que recebem a bola. Tecnicamente, são ambos abaixo da média, não obstante conseguirem desembaraçar-se várias vezes em situações de um para um. Conseguem-no porque compensam a falta de técnica com um vigor físico impressionante. Seguram e protegem a bola não com a habilidade mas com os cotovelos, o corpo arqueado, e a disponibilidade física. Veja-se como conduzem a bola, por exemplo, e facilmente se perceberá que ela queima nos seus pés. Nada disto seria relevante, contudo, se soubessem ler o jogo, se fossem inteligentes e decidissem bem. Mas raramente o decidem. Vão marcando golos porque são, do ponto de vista atlético, muito fortes, e acima de tudo porque gozam da complacência de alguns árbitros (Suarez, embora beneficie muito de jogar em Inglaterra, até tem sido penalizado por algumas das suas acções, mas Diego Costa tem passado impune, quase sempre), porque os defesas adversários vão na cantiga e são incapazes de perceber que jogadores como Suarez e Diego Costa beneficiam de marcações apertadas, devendo antes dar-lhes algum espaço, e porque jogam em equipas em que se fomenta a ideia de que o avançado é um jogador que se deve desembaraçar sozinho. Veja-se a quantidade de ressaltos que ganham, a quantidade de bolas que ganham porque esbracejam e esperneiam, e a quantidade de golos que marcam com todos os músculos da cara contraídos. É a grande maioria. Tudo o que conseguem é fruto do esforço e da agressividade com que jogam, não da classe ou do talento que têm. E o esforço e a agressividade são daqueles atributos que, por si só, dependem sempre de factores extrínsecos para ser uma mais-valia: da interpretação dos árbitros, da atenção e da esperteza dos defesas e do sistema de jogo em que estejam inseridos. Numa equipa a sério, Luis Suarez e Diego Costa seriam sempre mais um problema do que uma solução.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Passe e Devolução: A Versão Bávara

E depois do que se passou ontem em Manchester, já é possível dizer que o Bayern de Guardiola é melhor do que alguma vez foi o de Jupp Heynckes? A tareia monumental que os bávaros foram dar a casa do vice-campeão inglês, pondo o adversário à rabia a maior parte do tempo, não pode ficar indiferente a ninguém. O Bayern de Heynckes revelou-se letal, cirúrgico, mas não tinha a capacidade para subjugar, durante 90 minutos, os seus adversários. Era uma equipa forte nos detalhes, e que se fez valer da capacidade de concentração e de uma ambição colectiva extraordinária. Mas, para vencer o que venceu, para chegar onde chegou, teve de sofrer muito. O futebol dos bávaros, no passado, era sofrido; tudo era feito em esforço, em velocidade, e cada jogada representava o último lance da vida de cada um dos jogadores. O Bayern de Guardiola, em poucos meses, é o completo oposto. Continua uma equipa fortíssima, não parece ter perdido capacidade de concentração, mas passa o jogo inteiro a passear, como se estivesse a fazer a coisa mais fácil do mundo. A diferença é incomensurável. Ontem, em Manchester, o City andou atrás da bola, e o Bayern de Munique andou literalmente a recrear-se. Sabe esperar pelos momentos certos para atacar, sabe jogar com as expectativas (as próprias e as dos adversários), sabe gerir o ritmo do jogo e circular a bola a seu bel-prazer, e sabe que uma jogada é só uma jogada, que, se fizerem as coisas bem feitas, terão outras jogadas e outras oportunidades para chegarem ao golo. O futebol dos alemães está agora muito menos dependente da inspiração individual, da concentração de cada um dos jogadores e da afinação com que se entendem. Agora, os princípios organizadores são a participação, em cada lance, de todos os jogadores, a recreação colectiva e a criatividade. Até os jogadores mais dados ao individualismo parecem entreter-se e gozar de um estilo que preconiza as tabelas, o envolvimento a pares, os triângulos, os toques de primeira. Vemos os bávaros a fazer, já com alguma frequência, aquilo que, para muitos, só os catalães, por qualquer mistério insondável, sabiam fazer: passe e devolução, passe e devolução, passe e devolução. Vemos, por exemplo, Alaba a entrar pelo meio (uma novidade, no modelo de Guardiola), a envolver-se no trabalho de posse a meio-campo e a solicitar a bola entre linhas; vemos Ribery a ir de um lado ao outro do campo para perto de Robben para lhe dar uma opção curta, e até vemos Robben a procurar companheiros no meio com os quais tabelar.

Ontem, jogou Thomas Müller como avançado e, apesar de Luís Freitas Lobo ter insistido que aquela não era a melhor posição para o internacional alemão, foi muito por aí que o Bayern foi tão superior. Sem bola, Müller é um dos melhores jogadores do mundo. A sua capacidade de movimentação e a inteligência com que percebe o que deve fazer e para onde deve ir a cada momento fazem dele, possivelmente, a melhor opção para a posição de atacante, nesta equipa. Sem bola, Müller saiu invariavelmente de entre os centrais, ora para se aproximar do portador da bola, estivesse ele numa faixa ou no centro, ora para ocupar o flanco direito, permitindo a Robben invadir o espaço entre a linha defensiva e a linha de meio-campo, por onde o Bayern depois progredia. Com isso, confundiu marcações, mas permitiu sobretudo soluções de passe inesperadas à sua equipa. Muito da dinâmica ofensiva bávara, ontem, se deveu ao extraordinário trabalho de Müller, ainda que Freitas Lobo tenha achado que ele nunca conseguiu entrar no jogo. Guardiola não pensa como a maioria dos treinadores, e não pensa decerto como Freitas Lobo. Para ele, há coisas mais importantes do que um determinado jogador tocar muitas vezes na bola. Ontem Müller terá sido dos jogadores mais importantes em campo, até pela liberdade que permitiu quer a Robben, quer a Ribery, e Guardiola não terá deixado passar isso. Que outro treinador, por exemplo, se daria ao luxo de tirar o melhor lateral direito do mundo da sua posição de origem para pô-lo no meio-campo, ainda por cima tendo tantas opções (e tão conceituadas) para ali? Que outro treinador escolheria o jogador mais baixo da equipa para jogar como médio-defensivo? Guardiola é diferente dos outros, e requer dos seus jogadores coisas diferentes. Com o regresso de Götze, Javi Martinez e Thiago Alcântara, é possível que Lahm volte a ser lateral, mas até ver foi o jogador que melhor cumpriu aquela posição. Onde me parece que Guardiola tem ainda que trabalhar muito (e pensar bem sobre quais os jogadores que melhor servem esse propósito) é no meio-campo. O meio-campo é a alma deste modelo e, neste momento, Schweinsteiger e Kröos são demasiado parecidos. O meio-campo funciona bem, tem a dinâmica certa e os princípios certos, mas falta-lhe criatividade. Posicionalmente, fazem de facto o que têm a fazer, não procurando a bola fora do bloco adversário, mas invadindo-o e solicitando-a entre linhas. Mas depois falta algum atrevimento para mantê-la dentro do bloco, para procurar procurar soluções difíceis e arriscadas, em espaços curtos. Invariavelmente, escolhem a opção mais segura. De Schweinsteiger, em abono da verdade, não esperava mais do que isso, e nunca me pareceu que pudesse ser outra coisa, no modelo que Guardiola quer implementar, que não médio-defensivo (agora já nem isso). Mas de Kröos, jogador que muito admiro, esperava outra coragem. Claro que ainda é cedo e que esse tipo de coisa ainda pode ser cultivada, mas Kröos, para já, não me parece dar tudo o que Guardiola precisa. Thiago Alcântara e Götze (ou eventualmente Ribery) poderão por isso trazer coisas diferentes ao meio-campo ofensivo do Bayern. Nenhuma destas observações é, contudo, relevante, se pensarmos na brutalíssima mudança operada por Guardiola em tão pouco tempo. Se, em poucos meses, foi capaz de pôr o Bayern a jogar de uma maneira tão distinta daquela com que se exibia antes, deve-se presumir que os pequenos defeitos que a equipa ainda tem se possam corrigir com o tempo. Seja como for, continuo por isso sem dúvidas de que o Bayern de Guardiola será a seu tempo aquilo que o seu Barcelona foi, uma equipa de passe e devolução perpétuos, capaz de subjugar qualquer adversário e capaz de conduzir cada partida de futebol como bem lhe aprouver. E, depois disto, continuará a ser possível defender que o modelo de Guardiola não é o mais avançado para um jogo como o futebol e que só resultou num sítio em que os jogadores eram perfeitos para esse modelo?

domingo, 29 de setembro de 2013

O Caso Cardozo

Muito se falou do caso Cardozo durante o defeso, o que me levou a planear um texto sobre o assunto que, por falta de tempo e oportunidade, acabei por nunca escrever. Embora o caso, pelo menos internamente, pareça resolvido, continua a ser motivo de conversa, sobretudo entre aqueles que, provavelmente para satisfazerem frustrações pessoais, se têm tentado aproveitar de tudo e mais alguma coisa para atacar a equipa técnica, a direcção ou o clube encarnado. Nos últimos dias, por exemplo, ouvi várias opiniões favoráveis à dispensa do paraguaio, face ao sucedido, em nome de um bem maior que seria a dignidade do clube, a coesão do grupo ou o normal funcionamento da estrutura. A minha opinião acerca do Benfica, da sua direcção ou da competência da equipa técnica é absolutamente irrelevante para o que vou dizer, pelo que me abstenho de fazer juízos a estas entidades respeitantes, acerca das decisões tomadas neste caso. Ora, sobre o caso em concreto, confesso que nunca percebi bem a teoria por detrás do argumento, aliás absolutamente consensual em praça pública, de que um jogador que põe em causa a autoridade de um treinador deve ser imediatamente afastado do grupo, por descredibilizar o treinador e, por arrasto, enfraquecer a confiança dos restantes elementos do grupo naquele que o chefia. Na verdade, não compreendo a teoria porque não compreendo o argumento. E não compreendo o argumento porque não compreendo as diferentes premissas que o sustentam, a saber, 1) a convicção de que a força de um grupo depende da confiança que os diferentes elementos do grupo depositam naquele que o chefia e 2) a convicção de que a acção de um jogador pôr em causa a autoridade de um treinador produz necessariamente, aos olhos dos restantes elementos do grupo, o efeito da descredibilização desse treinador e a desconfiança generalizada acerca das suas competências enquanto tal.
A respeito da primeira premissa, posso talvez contra-argumentar lembrando que não parece haver grande diferença, pelo menos à partida, entre uma equipa inteira desconfiar das competências do treinador e a equipa inteira desconfiar das competências do guarda-redes dessa equipa. Isto é, a confiança de um grupo depende tanto da confiança no seu líder quanto da confiança em qualquer um dos colegas. Num grupo, o líder não tem uma posição privilegiada senão para liderá-lo. É verdade que as decisões de um líder afectam cada um dos elementos do grupo. Mas tenho muitas dúvidas que um mau guarda-redes não possa afectar ainda mais a confiança de cada um deles. Sou, aliás, da opinião, contrária à opinião da maioria das pessoas que conheço, que o problema do Sporting de José Peseiro foi muito menos a falta de competências para liderar um grupo do que a sucessão de fífias do central Hugo e do guarda-redes Ricardo, sobretudo no final da temporada. A força de um grupo depende de muitas coisas, das quais a confiança no treinador é apenas uma parte. E um bom treinador, a esse respeito, tratará sempre de fazer com que os seus jogadores desenvolvam mais a confiança em si próprios e uns nos outros do que propriamente na figura a que têm de obedecer.

A segunda premissa é mais importante, para o argumento contra Cardozo, e é também - parece-me - mais consensual. Em primeiro lugar, por que carga de água é que as acções de um jogador modificam necessariamente a opinião ou as crenças de outros jogadores? Será que os vários episódios de indisciplina de Mario Balotelli em Inglaterra alguma vez fizeram com que os restantes jogadores do City mudassem de opinião acerca das competências de Roberto Mancini? Para o mal ou para o bem, Mancini continuou a ser Mancini, depois de cada um desses episódios. E, mais ainda, continuaria a ser o mesmo de sempre, perdoando-o, como acabou invariavelmente por perdoar, não obstante os castigos que lhe aplicava, ou não o perdoando. É preciso muito mais do que um acto isolado de um único jogador para mudar a opinião acerca de um treinador. Em segundo lugar, é contestar uma decisão de alguém, ainda que de forma veemente, uma forma de pôr em causa a confiança que outras pessoas depositam nesse alguém? Sendo franco, se fosse treinador gostaria que os meus jogadores contestassem boa parte das minhas decisões. Não por causa daquela treta de que o inconformismo é sinal de empenho e vontade de ajudar. A razão é outra e reside no facto de acreditar que o sucesso de uma relação entre um superior e um subordinado depende mais do respeito dos subordinados pelas ideias do superior do que pelo respeito da sua posição superior. Embora vivamos em democracia há praticamente quatro décadas, o espírito democrático, em Portugal, continua a ser praticamente nulo, e poucos haverá que concordarão com esta perspectiva. Do meu ponto de vista, contudo, a verdadeira confiança conquista-se com diálogo, com justificações de acções, com persuasão. Conquistando-se dessa forma, não se perde só porque alguém decide contestar uma decisão.
Para ser bruto, há vestígios de um certo saudosismo fascista em todos aqueles que se indignaram contra o que fez Cardozo. Mas há também, parece-me, uma absoluta incompreensão acerca do que é ser um jogador de futebol, incompreensão esta, aliás, absolutamente idêntica àquela que se regista quando alguém diz que um jogador comete uma imprudência quando, sabendo que pode ser admoestado, tira a camisola para festejar um golo ou protesta uma decisão do árbitro, ou ainda idêntica àquela que ocorre quando se condena um jogador por protestar por ter sido substituído ou por o treinador não o utilizar. Durante os 90 minutos, não se é a mesma pessoa, nem fisiologicamente, nem emocionalmente; há adrenalina envolvida; há empenho, ambições, vaidades em causa. De resto, desentendimentos destes ocorrem com muita frequência, numa equipa de futebol, e não deveriam, por isso, ter importância suficiente para motivar tanta celeuma. Que tenha acontecido em público é apenas uma contingência dos tempos que correm, uma vez que cada vez menos coisas escapam às objectivas e aos jornalistas, e não deve ter maior gravidade por isso. O mais importante deveria ser a equipa; não a alegada desautorização do seu líder. É engraçado, por fim, que a primeira obra literária da História da Cultura Ocidental contenha já a evidência de que afastar de um grupo quem se insubordina só porque se insubordina pode não ser o melhor para o grupo. Se aquele que se insubordina faz realmente falta ao grupo, como Aquiles fazia aos Aqueus, pode até ser a pior a decisão possível. Aliás, não é nada claro, na Ilíada, que a confiança dos Aqueus em Agamémnon, o líder deles, fosse superior à confiança deles em Aquiles, o melhor dos guerreiros entre eles. Aos Aqueus, a insubordinação de Aquiles perante Agamémnon (uma insubordinação pública, diga-se), por pouco não lhes custava a guerra e a glória. Mas, 2800 anos depois, parece que continuamos sem aprender a lição de Homero; continuamos a preferir o "respeitinho, que é bonito", a disciplina, a boa educação, a serventia; continuamos a achar que coisas tão triviais como uma contestação pública de um chefe se devem configurar como ofensas de extrema gravidade. Os gregos, pelo menos os gregos homéricos, estavam a borrifar-se para bagatelas deste género. Pelo menos neste aspecto, eram francamente mais espertos do que os homens de hoje. A única coisa indispensável a um herói era a arete, a virtude ou a excelência, algo que, aplicado ao caso futebolístico que motivou a comparação, se traduziria no seguinte: a única coisa indispensável num jogador de futebol é o talento. O resto é conversa fiada. E gente a quem falta talvez um pouco de Grécia.

domingo, 8 de setembro de 2013

Fala quem sabe

Os verdadeiros craques, os que de facto vivem o jogo a sério, não podiam pensar de outra maneira. Aimar foi, na opinião do Entre Dez, o maior craque de sempre em Portugal. Não admira que, nesta entrevista, sustente boa parte daquilo que se sustenta aqui. Eis os destaques:

Qual foi a sua melhor temporada no Benfica?
«Sempre adorei jogar com o Saviola. Os meus melhores momentos foram todos os que partilhei com ele entre 2009 e 2012».

Tem saudades de jogar com o Saviola?
«Sempre nos demos muito bem. Seria fantástico voltar a jogar com ele e depois retirávamo-nos juntos.

Dos muitos argentinos que têm passado em Portugal, Lucho Gonzalez será porventura o mais parecido consigo. É um jogador que admira?
«Tenho um carinho enorme por ele. Uma grande admiração, mesmo. É das melhores pessoas que conheci no mundo do futebol. Agradeço tudo o que vivemos no futebol. Nunca o vi como um rival». 

Há espaço no futebol moderno para o número dez puro? Um dez como Aimar?
«Tem de haver. O Barcelona joga com três números dez, no mínimo. Iniesta, Xavi e Messi são verdadeiros números dez, adaptados a funções diferentes. São jogadores que em qualquer outra equipa do mundo seriam um puro dez. Sabem, muito claramente, o que têm de fazer com e sem a bola. Inteligentíssimos».

Nos últimos anos apaixonou-se pelo futebol de alguma equipa?
«Sim, pelo Barcelona de Pep Guardiola. Sobretudo por ter demonstrado ao mundo o prazer que é possível ter com uma bola nos pés. Se tivermos a bola, o adversário não a tem. E não só por isso. Se perdem a posse, recuperam na perfeição a posição defensiva e recuperam a bola com facilidade. Além do Barcelona, tenho de elogiar o Borussia Dortmund. Seja como for, nos últimos anos todas as equipas ficaram muito longe desse Barcelona».

Os adeptos puristas do futebol querem mais equipas como esse Barcelona? Ou, se preferir, quem gosta de futebol gosta desse Barça?
«Eu creio que sim, mas todas as opiniões são válidas. Por um simples motivo: o futebol não é uma ciência exata e está aberto às mais variadas influências. Tudo é aceitável. Do meu ponto de vista, não há dúvidas: o Barcelona é a melhor equipa da última década».

Qual foi o treinador que melhor entendeu o futebol de Pablo Aimar?
«O melhor treinador que tive foi Marcelo Bielsa. Ramón Diaz, no River, até Jorge Jesus, no Benfica, também me aproveitaram bem e entenderam o meu futebol.

E no futebol atual, qual é o treinador que mais admira?
«Vejo o Bayern Munique a jogar e percebo que o Guardiola conseguiu impor muito rapidamente o que pretende: ter bola, pressionar, reduzir o espaço do campo. E fazer isto numa cultura radicalmente distinta não é para qualquer um. Para mim, Guardiola é o melhor treinador do mundo».

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Para Guardiola ver

Francamente, nunca percebi toda a histeria em torno do croata Mandzukic. Sempre me pareceu um avançado pouco evoluído tecnicamente e pouco capaz de perceber o jogo como realmente se exige a um avançado. Como facilmente se percebe, portanto, não pude deixar de ser surpreendido com o que aconteceu na época transacta a Mario Gomez, um internacional alemão, titular indiscutível nos últimos anos no clube e titular indiscutível da selecção, que perdeu o lugar para um jogador bem inferior, em todos os aspectos do jogo. Com a chegada de Guardiola, imaginei que Mandzukic perdesse o espaço que alcançara a época passada, mas aquele que seria o legítimo dono do lugar foi de imediato transferido, não se sabe se por opção sua, se por vontade de Guardiola. O técnico catalão, de resto, parece continuar a confiar a titularidade a Mandzukic, apesar de o croata ser incapaz de tomar uma decisão correcta ou de, simplesmente, segurar uma bola e entregar de frente. Pizarro já não é novo, e não pode dar o que Mandzukic dá, em termos defensivos. Mas, convenhamos, pulmão e agressividade nunca foram as características de que Guardiola mais gostou num avançado. Se nos extremos a capacidade de pressão sempre foi algo que Guardiola cultivou (e Mandzukic até já actuou, esta época, como extremo), o avançado de Guardiola tem de saber, acima de tudo, fornecer o apoio vertical certo, no momento exacto, e tem de saber segurar de costas, entregar de frente, servir de referência para tabela, tem de fazer mais movimentos de aproximação do que de profundidade, etc.. Mandzukic não sabe nada disto e jamais seria capaz de fazer o que Pizarro fez neste lance, esta terça-feira, frente ao Friburgo:


O lance ocorre sensivelmente a meio da segunda parte do jogo (no video, só dá para ver o lance todo na repetição, que começa aos 2m32s), numa altura em que o Bayern vencia por 1-0 (o resultado final foi de 1-1), e originou uma dupla oportunidade perdida pelos bávaros, primeiro por Kroos e depois por Müller. O lance é relativamente simples de descrever (veja-se também o lance do ângulo da câmara de jogo, alguns segundos antes) e começa nos pés do brasileiro Dante. Nesse momento, todos os jogadores (os do Bayern e os do Friburgo) estão num espaço de menos de 30 metros, e só é possível que a bola vá de um central a um avançado, pelo chão, por um conjunto de factores. Em primeiro lugar, porque os médios do Bayern, em posse, abrem para arrastar marcações, para que haja espaço para a penetração ser feita pelo centro; em segundo lugar, porque há alguma desconcentração da equipa que defende ou simplesmente uma má ocupação dos espaços centrais, fruto de uma estratégia defensiva ineficiente; e em terceiro porque o avançado bávaro, Pizarro, identifica correctamente o momento do jogo e percebe que, naquelas circunstâncias, deveria suscitar o passe ao seu central, fornecendo-lhe um apoio nesse sentido. É notável, ainda, que no momento em que Dante se prepara para fazer o passe, Toni Kroos, que parecia alheado da jogada, rapidamente percebe que deve aproximar-se do local para onde a bola vai ser endereçada, para que nesse momento (um momento que ainda não aconteceu) o colega que receber a bola possa ter uma solução de passe óbvia e imediata. Com tudo isto em movimento, Pizarro acaba por dar apenas um toque para o lado, permitindo a Kroos, que se aproximara dele por entre o central e o lateral, que se isolasse. Com apenas dois toques, o Bayern consegue passar de um momento de início de organização (a bola estava no central) para um momento de finalização, e tudo isto pelo centro do terreno e pelo chão. Tal só é possível porque, acima de tudo, os jogadores decidiram bem (Dante fez o que nem sempre faz, ou seja, jogar vertical pelo chão; Pizarro deu o apoio no espaço deixado livre pelos movimentos horizontais dos médios e libertou de primeira no companheiro que passava; e Kroos leu a jogada antes de ela acontecer). É por coisas destas, no fundo, que o Bayern de Guardiola é já bem melhor do que alguma vez foi o de Jupp Heynckes. E é também por coisas destas que Guardiola devia perceber que Pizarro, não tendo a juventude de Mandzukic, e mesmo não parecendo ter muita paciência para aprender o que Guardiola tem para lhe ensinar, é bem mais útil do que o croata.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Passar nas costas

Deixei de acreditar inteiramente, nos dias que correm, em treino específico, sobretudo no que diz respeito aos processos ofensivos. Acho que o momento de organização ofensiva é demasiado circunstancial para que se possa treinar seja o que for por repetição. Isto não implica que não se possa treinar esse momento; implica que não se podem treinar situações específicas. Para dar um exemplo, não acredito que treinar situações de finalização, sejam elas quais forem, sejam muito ou pouco complexas, envolvam muitos ou poucos jogadores, possa melhorar minimamente a capacidade de finalização da equipa ou dos avançados a quem é proposto esse treino. Vem isto a propósito da ideia, afinal ainda muito em moda, de que as equipas devem fazer determinadas coisas com bola para conseguirem depois fazer outras. É muito comum, por exemplo, treinar situações de cruzamento simples em que a bola é posta no extremo, em que o extremo, depois de recebê-la, encara o adversário e solta na linha, onde aparecerá o lateral, que passava naquele momento nas costas, a fim de cruzar para a área.

Para que fique claro, acho um exercício destes um perfeito disparate, por várias razões. A razão principal, aquela de que quero falar, tem a ver com o movimento de passar nas costas do portador da bola. É comum ouvirmos dizer, e é comum que os treinadores o peçam aos jogadores, que um colega sem bola, estando perto do portador da mesma, deve movimentar-se por trás do colega. Mas porquê? A grande maioria dos treinadores (e dos comentadores) achará sem dúvida que passar nas costas serve para dar uma linha de passe e que, por conseguinte, é dever de quem tem a bola respeitar esse movimento e pôr lá a bola. Como se está mesmo a ver, não acho que esta gente esteja certa. Passar nas costas não serve para dar linhas de passe ao portador da bola; serve para criar a dúvida no adversário que tenta travar a progressão de quem tem a bola. Passar nas costas do portador da bola, sobretudo se feito de forma rápida, cria no defesa a indefinição quanto ao seguimento da jogada. A indefinição, evidentemente, é momentânea, e estabelece-se no exacto momento em que o jogador sem bola passa pelo que a tem. Nesse momento, o defesa não pode prever se o atacante vai fazer o passe, se vai driblar, se vai rematar. É esse também, de resto, o momento ideal para que quem tem a bola tome a iniciativa.

É por achar que passar nas costas serve apenas para diminuir as probabilidades de êxito de quem defende e não para possibilitar que a jogada se desenrole por onde é sugerido que acho que este tipo de coisas não pode ser objecto de especialização através do treino. Se o que interessa é criar a dúvida no defesa e não exigir ao portador da bola que respeite a desmarcação, de que adianta treinar isto centenas de vezes? No jogo, será sempre o portador da bola, de acordo com as restantes circunstâncias da jogada (quantidade de coberturas que o defesa tem, reacção do defesa ao movimento do colega que passa nas costas, outras desmarcações de colegas, proximidade da baliza, etc.) a tomar a decisão que achar mais adequada. Isto pode ser objecto de treino, é verdade, mas nunca para forçar rotinas ou comportamentos-padrão nos jogadores. É por isso também que a crença de que certas equipas mecanizam um certo tipo de acções para levar o adversário a comportar-se de certa maneira e para que, depois, possam pôr em prática uma certa jogada, é um absurdo. Em futebol, planos com princípio, meio e fim, planos de ataques muito bem desenhadinhos, são um absurdo e terminam necessariamente em insucesso. Tirando em bolas paradas, as grandes equipas não têm planos nem jogadas estudadas. O jogo é demasiado complexo e imprevisível para que jogadas estudadas possam ter algum sucesso.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Xavi e Iniesta: a Incompatibilidade Compatível

Há 5 anos, antes de Guardiola chegar ao comando do Barcelona, jogar com um médio-defensivo e dois médios à frente dele era coisa em que poucos treinadores apostavam. Mesmo de entre os que o faziam, quantos arriscavam em dois jogadores de características ofensivas, dois jogadores criativos no meio-campo? Desde que o Entre Dez existe que essa foi uma das coisas que mais se defendeu aqui, que não só era compatível jogar com dois médios de ataque à frente de um médio-defensivo como era assim e só assim que uma equipa que se pretendesse ofensiva podia ser dominadora a meio-campo. Desde que chegou, Guardiola apostou em Xavi e Iniesta, lado a lado, dois médios de características ofensivas, pequenos, franzinos, sem capacidade de ir ao choque. Sem medo, entregou o meio-campo a quem tinha cabeça, não a quem tinha pernas. Para muitos treinadores, um criativo chega e sobra. Para esses, o meio-campo serve para vedar o caminho ao adversário e pouco mais; serve para fechar espaços, para roubar bolas e, quando dá, para solicitar o médio com melhores pés, que joga preferencialmente perto do avançado, para que ele possa depois fazer a bola chegar aos atacantes. Para Guardiola, o meio-campo é muito mais do que isso. Percebeu que o trabalho defensivo, o trabalho de cobrir espaços, de reagir à perda, é da competência de toda a equipa em conjunto e que, sendo-o, não precisava de jogadores no meio-campo que se distinguissem pela quantidade de desarmes que conseguem. No meio-campo precisava era dos mais inteligentes, daqueles capazes de perceber melhor as necessidades da equipa. É um chavão dizer-se que o meio-campo é o centro nevrálgico do jogo, mas quantos dos que o dizem tiram as consequências que deviam tirar disso? Dizem que é o centro nevrálgico do jogo, mas depois acham que é lugar para pôr aqueles que têm mais pulmão ou mais músculo. Não. No centro nevrálgico do jogo devem jogar os mais inteligentes, os que sabem desenvencilhar-se melhor dos problemas. Eis o que Guardiola pensava de Iniesta:

"Iniesta es un jugador fino, es de los que priorizan más pensar que correr. Su primer control en movimiento es maravilloso. Le da continuidad y velocidad al juego. Interpreta el juego. Seguramente en otros lugares habrá jugadores de este estilo, pero allí no interesan, no los buscan", sostenía Pep Guardiola."

Poderá isto parecer presunção, mas este blogue nasceu porque, antes de Xavi e Iniesta jogarem juntos, já havia quem reclamasse que Xavi e Iniesta tinham de jogar juntos. Tínhamos descoberto, o Gonçalo e eu, que o futebol de cada um era muito mais fácil quando um andava perto do outro. Fosse para não ser forçado a driblar, fosse para não ser forçado a fazer um passe comprido, fosse por que fosse, com alguém que pensava exactamente da mesma maneira ali ao lado, na mesma posição e com as mesmas obrigações, o futebol era muito mais fácil. Qualquer médio ofensivo habilidoso, sobretudo jogando com dois médios nas costas, com liberdade para fazer mais ou menos o que lhe apetecesse, pode resolver um jogo a qualquer altura, seja com um último passe, seja com uma jogada individual, seja com um remate à entrada da área. E qualquer jogador ambiciona jogar como médio-ofensivo precisamente por isso, porque é aquele a quem o treinador, por norma, entrega a batuta da equipa e a maior fatia de liberdade; é aquele que é invejado pelos colegas, aquele que assume maior protagonismo, etc.. O que a dada altura percebemos é que isso é uma imbecilidade. Quantas bolas tem um médio-ofensivo de entregar ao adversário para que seja o protagonista que esperam que seja? Quanto ganha a equipa com um jogador assim e quanto perde? À medida que íamos ganhando consciência táctica, que íamos percebendo a consequência de cada uma das nossas acções, menos contentes estávamos com o papel de protagonista solitário que nos cabia. Sempre que tínhamos a possibilidade de jogar juntos, por outro lado, a tendência era aproximar-nos, pedir a bola um ao outro, dar ao outro uma solução diferente, uma tabela, uma possibilidade de passe curto que deixasse o adversário indeciso, uma troca de posições, etc.. Dois criativos no meio-campo não é só o dobro da criatividade; é também todo um conjunto de novas possibilidades de lances. Foi isso que Guardiola mostrou ao mundo, quando pôs Xavi a jogar ao lado de Iniesta. Mostrou que dois médios criativos são compatíveis e mostrou ainda que, mais do que serem compatíveis, permitem à equipa coisas que, de outra maneira, a equipa nunca conseguiria fazer.

Para muita gente, uma equipa de futebol é um agregado de operários fabris, cada um com as suas funções específicas. Para esses, se um determinado jogador vai jogar (por exemplo, um médio criativo), é preciso que um jogador de características diferentes jogue a seu lado ou perto dele, para compensar as coisas em que é menos bom. É por isso que quase todos os treinadores sentem a necessidade de utilizar um médio de características defensivas (ou dois) ao lado de um médio mais habilidoso. O que Guardiola mostrou é que o futebol não é nada disso, que não é preciso que as características de um jogador compensem as de outro. É possível construir uma grande equipa sem jogadores altos, sem jogadores musculados, sem jogadores agressivos, etc.. Isto porque, em futebol, tudo isso é secundário. Para muita gente, o trabalho de um treinador consiste essencialmente em montar uma máquina em que cada peça está no sítio certo e desempenha o melhor possível a tarefa que lhe compete. Não acredito em nada disso. Não acredito que o futebol seja um jogo em que a melhor equipa é aquela que tem os onze melhores especialistas em cada uma das onze posições a desempenharem o melhor possível a sua função. E é por não acreditar que o futebol é um jogo desse tipo que não acredito que o trabalho de um treinador seja apenas educar os seus jogadores a comportarem-se o melhor possível de acordo com as funções que desempenharão dentro de campo. O futebol é um jogo de relações, um jogo em que é melhor não a equipa que tiver os onze melhores especialistas a fazerem o melhor que podem, mas um jogo em que é melhor a equipa em que os onze jogadores se compreendem melhor uns aos outros. Para muita gente, a qualidade de uma equipa é a soma da qualidade individual dos onze jogadores que a compõem somada, por sua vez, à capacidade que cada indivíduo tem para cumprir os requisitos colectivos da sua posição. Para mim, a qualidade da equipa mede-se essencialmente pela forma como os onze jogadores se relacionam entre si. É por isso que não acredito na tese da incompatibilidade entre dois jogadores muito parecidos. Para mim, as fragilidades de um jogador devem ser supridas pelo colectivo, não por um jogador com características opostas. Ter dois jogadores parecidos não é um problema, como muita gente pensa; é uma bênção. Dois jogadores parecidos não descompensam uma equipa; equilibram-na. Dois jogadores parecidos não é um excesso ou um luxo; é complementaridade. Vejam como discutem Xavi e Iniesta sobre o assunto, nesta entrevista de 2006:

"X. Justo. Pues ya mete goles y nadie se acuerda de las tonterías que decían: que si el salto cualitativo no lo daba, que si patatín... ¡Listos! Tiempo al tiempo. Eso hay que darle a la gente, tiempo para que madure. Ahora parece que yo estoy acabado; que, si juega él, no puedo jugar yo.
I. Más tonterías. Podemos jugar juntos. No se dónde está escrito que no podemos hacerlo. La putada es que llevaban pidiendo que jugáramos juntos no sé cuánto tiempo y nos ponen en Madrid y perdemos. Dos días antes era la mejor solución. Ni que perdiéramos por jugar nosotros.
X. Es que yo me lo paso muy bien contigo. No somos clónicos, somos complementarios. ¿Sabes cuál es el problema? Que somos de la casa. Si uno de los dos fuese de fuera, no habría debate."

Para Iniesta, não havia razão nenhuma, já em 2006, para que ele e Xavi não jogassem juntos. Xavi, por sua vez, dizia que se sentia bem a jogar com Iniesta. Não compreender isto é não compreender nada de futebol. O que estes dois sentiam, numa altura em que não jogavam juntos, numa altura em que não tinham o estatuto que têm hoje e numa altura em que se dizia que, quando Iniesta começasse a jogar, Xavi deixaria de fazê-lo, era precisamente que o futebol não é tão individual como queriam que acreditassem. Já na altura sentiam que eram melhores jogadores quando jogavam os dois, quando um percebia as necessidades do outro e lhe dava a linha de passe de que precisava, quando o outro percebia que podia ficar com a bola até ao último instante porque sabia que, nessa altura, se precisasse, o outro lá estaria a dar-lhe uma solução de passe alternativa. Com Iniesta ao lado, era como se Xavi jogasse com outro Xavi. E o mesmo ao contrário. É por isso que não é apenas por serem dois criativos e não um, por haver o dobro da criatividade em campo, que acho que uma equipa é melhor com dois criativos em vez de um. É porque, além de a criatividade ser a dobrar, cada um deles é melhor jogador se o outro estiver em campo. Com Iniesta ao lado, Xavi era mais Xavi do que nunca. E Iniesta mais Iniesta do que nunca. É por isso que a qualidade de uma equipa não pode ter apenas a ver com a qualidade de cada um dos jogadores e com a adequação da qualidade de cada um deles à posição que ocupam em campo. Tem também de ter a ver com (eu diria que tem sobretudo a ver com isso) a relação de cada jogador com cada um dos colegas, começando, obviamente, por aqueles que estão mais próximos.

Quando se fala em sintonia entre colegas, fala-se sobretudo em duplas de atacantes ou duplas de centrais e fala-se sobretudo das características complementares que devem ter: um avançado mais fixo e um mais móvel; um defesa mais cerebral e um mais rápido, etc.. Não é disso que falo. A compatibilidade a que me reporto é do foro intelectual e aquilo para o qual estou a tentar chamar a atenção é para jogadores que se compreendem muito bem por pensarem da mesma maneira, que sabem exactamente o que o colega vai fazer porque era aquilo que fariam naquelas circunstâncias, que sabem perfeitamente que, em determinada situação, o colega vai estar a dar o apoio no sítio certo porque, se estivessem na pele dele, perceberiam que o colega iria imaginar que ele ali estivesse. Dir-me-ão que isso só acontecerá em casos extraordinários, que almas gémeas desse tipo só em jogadores que jogam há muitos anos uns com os outros. Também não acredito nisso. Xavi e Iniesta, aliás, não cresceram juntos e não jogaram juntos até coincidirem na equipa principal. Basta que o treinador saiba criar as condições ideais para que isso aconteça, que saiba estimular os jogadores a compreenderem-se, a pensar de forma análoga, a interpretar as necessidades uns dos outros, etc.. Foi o que, de resto, Guardiola fez, ao permitir, sem hesitar, que Iniesta e Xavi jogassem lado a lado. E foi precisamente a dupla Xavi-Iniesta quem primeiro pôs em prática o que Guardiola queria que todos os seus onze jogadores fizessem. Antes de haver verdadeiramente o Barcelona de Guardiola, já havia Xavi e Iniesta a tabelar, a trocar a bola entre si, a dar e a devolver, a oferecerem apoios verticais um ao outro, etc.. No primeiro ano de Guardiola, a equipa catalã ainda não estava totalmente afinada. As únicas almas gémeas que verdadeiramente existiam eram as de Xavi e Iniesta. Foram eles, pela relação que mantiveram um com o outro, quem ensinaram os colegas a jogar. Associou-se a eles depois Messi e, mais tarde, toda a equipa. E assim se cumpriu o sonho de Guardiola.

É por isso que acho que o trabalho de um treinador é muito mais do que desenvolver características individuais e adaptá-las às funções que os jogadores desempenharão em campo. A esmagadora maioria dos treinadores acredita nisso. Para mim, por outro lado, aquilo que verdadeiramente compete a um treinador de futebol é criar onze almas gémeas. É esse o verdadeiro legado de Cruyff, e só assim me parece plausível pensar no jogo de forma colectiva. Ao contrário da maioria dos treinadores (e até da maioria dos treinadores actuais), não eram as características estritamente individuais, mas as características "relacionais", aquelas com as quais alguém se relaciona com o meio envolvente, que mais interessavam a Cruyff. O próprio Guardiola o confessa, nesta conversa com Valdano:

"J.V.:¿Soñabas con ser jugador de Primera División?
P.G.:"Si, por supuesto. De diez niños catalanes, ocho querrán jugar en el Barcelona. Le decia a mi madre: "Si llego al juvenil, ya estaré contento". Pensaba que para jugar al fútbol necesitaba mucho más que: "Pasa bien el balón, juega bien, las pilla todas". El destino y el estilo de un entrenador que le gustaba más el hecho de pasar que el de romper fue lo que me ayudó".
¿Qué hubiera pasado si no hubiera existido ese entrenador?
Lo habría pasado mal. Es de esas cosas en las que he tenido suerte. Jugué desde el primer momento. El primer año, si no juego y estoy mal, igual me voy para casa. Aunque no fue cuestión de supervivencia. Me lo pasaba muy bien siendo jugador infantil del Barcelona."

Quando era jovem, Guardiola achava que precisava de mais do que de passar bem a bola para vingar na modalidade, mas acabou por triunfar única e exclusivamente porque Cruyff era diferente dos outros treinadores. Não tivesse Guardiola sido treinado por alguém assim, dificilmente teria sido o jogador que foi. Poucos há que percebam isto. Para muita gente, quando se tem talento, tem-se talento e ponto final, e quem o tem acaba por triunfar, mais tarde ou mais cedo. Não podia estar mais em desacordo. Para que um jogador triunfe, sobretudo um jogador cujas principais virtudes são as tais características "relacionais", é preciso que o treinador seja especial, que prefira um determinado tipo de atributos e não outros. Ao longo dos anos, muitos dos jogadores que aqui fomos defendendo e que não conseguiram triunfar são jogadores deste tipo, jogadores que, ao contrário de Guardiola, não tiveram a sorte de ser treinados por alguém especial e que, por isso, não atingiram o máximo do seu potencial. Quanto a Xavi e Iniesta, alguém acredita que eles seriam o que são hoje se não fosse Guardiola? Basta ver como se queixavam, em 2006, por todos acharem que não podiam jogar juntos. Toda a gente gaba as habilidades de Iniesta, a capacidade de manter a bola, de rodar sobre si mesmo, a calma com que sai de situações complicadas, etc.. Mas Iniesta é capaz disso tudo porque está inserido num contexto que o favorece, porque sabe que tem sempre alguém muito perto de si e que, por tê-lo, tem também uma solução de recurso a toda a hora, o que lhe permite forçar certos movimentos, arriscar certas iniciativas. Iniesta é o jogador que é porque cresceu no ambiente mais favorável possível; tem aquelas características individuais notáveis, que todos elogiam e que a todos espanta, não porque as tenha e pronto, mas porque tem também certas características "relacionais" e está inserido num modelo que privilegia as últimas.

Ser um jogador de futebol a sério é essencialmente isto: ser extraordinário a relacionar-se com os colegas de equipa. Evidentemente, há jogadores de outro tipo, jogadores cujas habilidades individuais definem o seu talento. A estes é relativamente fácil medir a qualidade; basta contabilizar o sucesso e o insucesso de cada uma das suas acções. Medir o futebol de Xavi ou Iniesta, por exemplo, é muito mais difícil. E é-o porque cada uma das suas acções não se esgota em si mesma. Cada coisa que fazem beneficia o que faz um colega e beneficia o que faz o colectivo. É o talento individual de Xavi que faz com que consiga aquela quantidade absurda de passes por jogo? É Xavi sozinho o responsável por todos aqueles passes de régua e esquadro? É unicamente por ser Xavi o maestro que é que todos reconhecem que é dos pés dele que se inicia boa parte das jogadas do Barcelona? Não. Xavi é o que é porque os colegas fazem com que o seja. Dão-lhe opções constantes de passe, aproximam-se dele para lhe permitir várias decisões, garante-lhe proximidade e segurança para que não tenha de se apressar a tomar uma decisão. Xavi é o que é por força do que o rodeia. E o que o rodeia é um conjunto de jogadores que pensa como ele, que percebe quais possam ser as suas intenções e que fazem tudo para que ele as possa cumprir. Xavi é o que é porque joga com almas gémeas. É o próprio Xavi quem o reconhece, nesta entrevista:

"Your Barcelona team-mate Dani Alves said that you don't play to the run, you make the run by obliging team-mates to move into certain areas. "Xavi," he said, "plays in the future."
They make it easy. My football is passing but, wow, if I have Dani, Iniesta, Pedro, [David] Villa … there are so many options. Sometimes, I even think to myself: man, so-and-so is going to get annoyed because I've played three passes and haven't given him the ball yet. I'd better give the next one to Dani because he's gone up the wing three times. When Leo [Messi] doesn't get involved, it's like he gets annoyed … and the next pass is for him."

Dizer que Guardiola teve o trabalho facilitado porque tinha os jogadores certos para o modelo que pretendia é um disparate. Foi Guardiola que impôs que os jogadores se relacionassem como se relacionam. É claro que ajuda o facto de a grande maioria ter "estudado" no mesmo sítio, ter tido os mesmos "professores" e ter tido as mesmas referências. Mas nada disso teria sido relevante se não fossem obrigados a fazer certas coisas. Não foram a mentalidade do clube ou a educação semelhante que os jogadores tiveram que construíram o modelo de Guardiola; foi Guardiola que, levando-os a comportar-se de determinada maneira, levando-os a executar um determinado modelo de jogo, "obrigou" a que os jogadores recuperassem a mentalidade do clube que lhes tinha sido incutida e a que relembrassem a educação que tinham tido nesse mesmo clube. Mais do que qualquer outro modelo de jogo, o modelo de Guardiola força a que os jogadores se relacionem constantemente. Como tal, força a que sejam aquilo para o qual foram ensinados a ser, ou seja, jogadores que privilegiam determinadas coisas em detrimento de outras.

Regressando à questão da compatibilidade, posso aceitar que um determinado jogador não seja compatível com outro igual a ele, mas apenas se forem jogadores que se distingam pelos seus atributos individuais. Mas, nesse caso, não acho sequer que um só jogador seja compatível com a equipa. Como entendo o jogo, uma equipa de futebol a sério tem de ter onze jogadores que se caracterizem essencialmente pela capacidade com que se relacionam com os colegas. Se for esse o caso, não me interessa ter um jogador de cada tipo, apto para uma coisa específica, mais indicado para um tipo de função e menos para outros tipos. Interessa-me, isso sim, ter jogadores todos do mesmo tipo, jogadores parecidos entre si, que valorizem as mesmas coisas, que se compreendam com facilidade, que percebam quais as dificuldades de cada colega, consoante as circunstâncias em que se encontrem. Não só acho, portanto, que Xavi e Iniesta são compatíveis, como sempre achei, como acho que Xavi é compatível com dez Iniestas, e vice-versa. Para muita gente, Xavi e Iniesta são compatíveis porque Guardiola mostrou que podiam sê-lo. Não pensavam assim há 5 anos, no entanto. E mesmo aceitando agora que o são, aceitam-no por razões erradas, porque acham que, afinal, até dá para ter dois criativos no meio-campo. Eu acho que são compatíveis, mas não por achar que haja espaço para dois médios criativos numa equipa de futebol; acho que são compatíveis porque o futebol é um jogo de médios criativos. E é por isso, em última análise, que acho não só que são compatíveis entre eles como são compatíveis com mais nove jogadores idênticos. O futebol é um jogo para criativos, e o modelo ideal de um jogo que se caracteriza assim é necessariamente aquele em que a criatividade dos jogadores for melhor potenciada. O papel do treinador ideal, deste ponto de vista, não é propriamente trazer ao de cima o melhor de cada atleta, não é conceber as melhores estratégias possíveis para contrariar os adversários, não é ser capaz de manter motivados os seus jogadores; é fazer com que cada jogador aprenda a relacionar-se com os colegas. Só isso: criar almas gémeas. E, para criá-las, há um atributo indispensável: a criatividade, entendendo-se criatividade como imaginação, ou seja, o atributo intelectual que permite a cada um perceber o tipo de soluções que pode empreender para fazer face ao que o rodeia e, por conseguinte, o que permite a cada um perceber aquilo de que precisa cada um dos seus colegas a cada instante.

domingo, 14 de julho de 2013

Os melhores de 2012/2013

Mais atrasado do que nunca, fica o onze da época, em 433:

Guarda-Redes: Rui Patricio
Defesa Direito: Eric Dier
Defesa Esquerdo: Alex Sandro
Defesas Centrais: Ezequiel Garay e Otamendi
Médio Defensivo: Matic
Médios Ofensivos: Lucho Gonzalez e Josué
Extremos: James Rodriguez e Mossoró
Avançado: Jackson Martinez

Treinador: José Peseiro

Suplentes:

Guarda-Redes: Hélton
Defesa Direito: Maxi Pereira
Defesa Esquerdo: Antunes
Defesas Centrais: Steven Vitória e Paulo Vinicius
Médio Defensivo: Custódio
Médios Ofensivos: João Moutinho e Hugo Viana
Extremos: Nico Gaitán e Licá
Avançado: Éder

Treinador: Paulo Fonseca

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Curtas da Época

Nos últimos dois anos, o blogue deixou de ser actualizado com a regularidade de antes, e muitas foram as efemérides cujo debate se dispensou. Ao contrário de outros sítios, que preservaram a sua natureza noticiosa, deixou talvez de ser lugar de reunião para se discutir os mais comezinhos assuntos e passou a ser lugar de discussões pontuais, mais sobre assuntos de carácter geral do que sobre particularidades desportivas do momento. Gostaria, evidentemente, de manter os dois tipos de discussão, mas, à falta de melhor, optei por discorrer sistematicamente sobre os temas que mais me interessam. Ora, embora muito tenha acontecido esta época, pouco foi sendo discutido aqui. Numa tentativa (que não o é mais do que isso) de sumariar algumas das mais importantes incidências da temporada que agora acabou, aqui fica um conjunto de breves observações a esse respeito.

1 - O Sporting cumpriu, talvez, a pior época de sempre. Muito se tem dito sobre a queda competitiva do clube nos últimos anos, quando comparado com os rivais, mas pouca coisa acertada se tem ouvido. Há que assumir, de uma vez por todas, que a maneira de reerguer o Sporting passa essencialmente por não copiar os exemplos do Benfica e do Porto, não só porque não há dinheiro para investir como também porque o Sporting é um clube diferente, com virtudes e defeitos diferentes.

2 - Por falar em Sporting, Liedson regressou ao campeonato português, mas para reforçar o ataque portista. O homem que simboliza, a meu ver, as causas dos principais problemas desportivos do Sporting na última década foi uma ameaça constante para as defesas adversárias. Como sempre, de resto.

3 - Vítor Pereira sagrou-se bicampeão nacional. Reconheço que a forma como a equipa pressiona é notável, mas a equipa azul e branca só foi realmente um colectivo quando os jogadores decidiram que deveria sê-lo. Sempre que o Porto não teve James (e não o teve durante muito tempo, se contarmos o tempo que demorou a adquirir a melhor forma) a entrar entre linhas, aproximando-se de Lucho, e sempre que Izmailov não pode dar o contributo à equipa, o Porto foi ofensivamente uma nulidade. Vivia das acelerações dos extremos, do suor dos médios e da qualidade individual de um ou outro jogador.

4 - O jogo do título foi no Dragão. O Porto acabou por ser um justo vencedor porque, apesar de não ter jogado bem, foi a única equipa que quis os três pontos. Mas a forma como venceu o jogo e, por conseguinte, o campeonato, não podia ter sido mais irónica. O Porto não estava a jogar bem, não estava a ser capaz de penetrar no bloco encarnado e não estava a conseguir ser ameaçador, sequer. Em vez de reagir a esta evidência como um treinador, ou seja, racionalmente, Vítor Pereira recorreu à superstição. De uma assentada, pôs dois amuletos da sorte em campo, Liedson e Kelvin. Do outro lado, Jesus tinha feito a melhor acção do dia, pois tinha acabado de fazer entrar Aimar. Mas foi a superstição que venceu. Acontece, de vez em quando. Liedson e Kelvin nunca serão jogadores de futebol, Vítor Pereira não sabe explicar o que aconteceu, mas o Porto ganhou e foi campeão. É assim a vida.

5 - Jorge Jesus é, possivelmente, um dos treinadores mais interessantes, do ponto de vista ofensivo, no campeonato português. Mas, como o escrevi no texto anterior, nas últimas temporadas foi progressivamente abdicando de ser quem é e, neste momento, é só mais um como tantos outros. Na minha opinião, esta época perdeu muito mais do que os três troféus que esteve perto de ganhar.

6 - Agora é de vez. Aquele que foi, muito provavelmente, o melhor de sempre a jogar em Portugal vai deixar o futebol português. Os verdadeiros amantes de futebol estão bem conscientes do que acabam de perder.

7 - O Braga de Peseiro foi, em alguns momentos da época, a equipa que melhor futebol praticou em Portugal. Como é evidente, Peseiro tem inúmeros defeitos, principalmente a nível defensivo, e a sua equipa acabou por pecar por isso. Não obstante, fez um trabalho bastante bom.

8 - De Paulo Fonseca é preciso ver mais do que uma época de trabalho em que teve as condições certas para triunfar. O Paços jogou bom futebol, em alguns momentos, mas não é certo que muito disso não se tenha devido à extraordinária reunião de alguns jogadores bem acima da média, André Leão, Vítor e Josué, para falar apenas dos três que me parecem mais evidentes. Devo lembrar, aliás, que Josué só se tornou titular indiscutível a meio da temporada, e que, portanto, é pouco claro que as ideias de Paulo Fonseca sejam exactamente aquelas que esses três, quando jogaram juntos, conseguiram pôr em prática.

9 - Em Inglaterra, o Arsenal voltou a ficar à frente do Tottenham. Como o referira a meio da época, contra a opinião de alguns papalvos, a equipa de Villas-Boas não é melhor que a de Redknapp, e o trabalho do português em Londres foi uma decepção. A equipa é mais inglesa do que nunca e sem Gareth Bale, então, nem nos lugares europeus teriam ficado.

10 - Para o ano que vem, a Liga Inglesa será uma prova totalmente diferente. Por um lado, o Manchester United, com a saída de Ferguson, será com certeza menos hegemónico. Por outro, os novos treinadores de Chelsea e City quererão decerto desafiar essa hegemonia. Por fim, o Arsenal prepara-se finalmente, ao fim de alguns anos, para conseguir manter os seus principais jogadores. Com os reforços certos, e com a manutenção das ideias, Wenger pode finalmente voltar a sonhar com uma equipa candidata ao título.

11 - Em Espanha, aconteceu o que previa há mais de um ano: o Real Madrid de Mourinho, ao contrário do que se dizia na altura, não era uma equipa regular. O futebol dos merengues não teve nunca qualidade para se impor numa competição de regularidade e os 15 pontos de diferença para o Barcelona expressam isso mesmo. Foi a época transacta, não esta, que foi anormal. Mourinho trabalhou sempre para bater os catalães, e a equipa foi-se transcendendo até conseguir esse objectivo. Depois disso, o balão esvaziou-se, a irregularidade exibicional veio ao de cima e os níveis motivacionais baixaram drasticamente. Sim, é verdade que continuou a ter uma equipa competitiva, que foi sempre às meias-finais da Champions, que manteve o seu Real sempre num patamar relativamente elevado, mas a passagem de Mourinho por Espanha foi um tremendo fracasso. E foi-o sobretudo porque o Real Madrid tinha a obrigação de ser uma equipa diferente.

12 - Diego Simeone é um treinador banalíssimo. Soube convencer um excelente conjunto de jogadores de que podiam fazer mais do que lutar pelos lugares europeus, soube transformar o Atlético de Madrid numa equipa fortíssima, em termos mentais, capaz de encarar todos os jogos como uma final, e isso valeu-lhe um excelente campeonato e mais um troféu. Mas o futebol da equipa, também neste caso, depende excessivamente da motivação individual e colectiva. Como noutros casos, a pedra de toque de que me sirvo para avaliar o desempenho de um treinador é a qualidade do futebol apresentado, e essa nunca foi extraordinária.

13 - Em Itália, o campeonato voltou a ser um passeio para a Juventus. Há uns anos, achei que o futebol italiano se preparava para renascer, mas os sucessivos escândalos desportivos, as dificuldades financeiras de muitas equipas e o desinteresse dos investidores estrangeiros encarregaram-se de manter as equipas italianas num patamar inferior às espanholas e às inglesas. Tacticamente, é a par da Liga Espanhola o campeonato mais interessante. Mas perdeu muita qualidade individual, nos últimos anos, e tanto o futebol francês como o alemão parecem ter agora melhores argumentos para discutir o estatuto de terceira potência europeia.

14 - Quando se soube que Guardiola ia para o Bayern, Mourinho disse que nunca treinaria na Alemanha. No fim da época, mostrou-se que as duas equipas mais fortes da Europa jogavam na Alemanha, e que, se calhar, o campeonato alemão anda demasiado subestimado.

15 - Por falar em Guardiola, soube-se há pouco tempo que o treinador catalão quis levar Pirlo, ainda este jogava no AC Milan, para o meio-campo do Barça. A intenção, segundo contou o próprio jogador, seria ir rodando com Busquets, Xavi e Iniesta. Numa altura em que Césc Fabregas ainda não chegara a Camp Nou, já Guardiola pensava num meio-campo só de artistas. Se dúvidas houvessem, Guardiola não pensa como os outros. Para o meio-campo, pensa-se sempre num equilíbrio entre artistas e trabalhadores. No meio-campo de Guardiola só há espaço para artistas. Teria sido a cereja no topo do bolo, um meio-campo de anões, alguns dos quais parecem jogar de bengala. O futebol não tem nada a ver com capacidades físicas, e é por perceber isso como nenhum outro alguma vez o percebeu que Guardiola é diferente de toda a gente.

16 - O novo desafio germânico de Guardiola é, aliás, um dos principais aperitivos da época que aí vem. Para muitos, Guardiola terá muitas dificuldades em fazer melhor do que Jupp Heynckes, pelo simples facto de o Bayern ter vencido tudo esta temporada. Para mim, há muita coisa a melhorar. Ganhar tudo numa época é óptimo, mas não é o que define uma grande equipa. Ter a capacidade para ganhar tudo, época após época, isso sim, é uma equipa. Heynckes ganhou tudo esta temporada porque os jogadores se superaram. Tenho enormíssimas dúvidas de que, com Heynckes, o Bayern ganhasse alguma coisa na época que vem. A motivação da equipa atingiu o seu máximo, e a tendência natural seria relaxar. Com Guardiola, porém, tudo será diferente: os jogadores estarão motivados nem que seja para aprenderem a jogar de uma maneira que não sabem. O que há a melhorar? A qualidade do futebol da equipa. Em termos de qualidade colectiva, o Bayern não foi excepcional, e é aí que Guardiola deverá manobrar. Se, no final, ganha alguma coisa ou não, é pouco relevante.

17 - Miguel Rosa voltou a fazer uma época deslumbrante, desta vez no Benfica B. Como é que não se lhe dá uma hipótese na equipa principal?

18 - O Europeu de sub-21 terminou, e mais uma vez a diferença da selecção espanhola para as outras foi abismal. Como é que é possível não perceber que, mais do que os elogios, é preciso imitar o trabalho que se faz no país vizinho?

19 - A equipa ideal do euro sub-21, em 433, apesar de os extremos não serem extremos (Isco) ou de serem inferiores aos dois melhores extremos do torneio (Munian e Sarabia), os quais foram pouco utilizados, todavia: GK: David De Gea; DR: Ricardo van Rhijn; DE: Daley Blind; DC: Marc Bartra e Stefan de Vrij; MD: Kevin Strootman; MC: Marco Verratti e Thiago Alcântara; E: Isco e Wijnaldum; AC: Álvaro Morata.

20 - No mundial de sub-20, é a euforia do costume com uma selecção nacional banal. Num grupo paupérrimo (a selecção cubana nem para as distritais tem qualidade), Portugal até parece uma super-potência. Mas o futebol português volta a pecar por uma falta de imaginação gritante, por um conjunto de jogadores cujas principais virtudes são as aptidões atléticas, e por uma falta de competência, a nível de equipa técnica, que já não se usa. Edgar Borges é do século passado, e é por isso que Ricardo Esgaio, que poderia jogar quer a lateral, quer a médio-direito, não joga para jogar João Cancelo e Ricardo. Tiago Silva é, também, o melhor médio ofensivo desta geração, mas parece ser a última das opções de Edgar Borges. É verdade que esta selecção não é tão fraca como aquela que, há dois anos, chegou à final do mundial. Não tem, pelo menos na onze inicial, picaretas como Mário Rui, Danilo Pereira ou Saná. Mas o onze que tem sido escolhido não é muito melhor. Aproveitam-se talvez o guarda-redes José Sá, o central Tiago Ilori, e o médio João Mário, sobretudo se perceber que não é médio de ataque. Mika não é nada, Tiago Ferreira é tudo o que um central não devia ser e João Cancelo, se tivesse neurónios, até podia vingar. Ricardo Alves não sabe o que é ser médio defensivo, Ricardo tem tanta imaginação como uma couve de bruxelas e Tozé tem vontade e pouco mais.

21 - Bruma é a grande estrela da companhia, quer para portugueses, quer para estrangeiros. Reconheço que é forte no um para um e que está moralizado, mas continuo a achar que a euforia em torno dele é excessiva. Quando chegarem os jogos a sério é que será possível perceber o quanto pode dar. Bruma tem algumas dificuldades a pensar em espaços curtos, e só quando tiver pouco espaço e pouco tempo é que se poderá perceber se as suas qualidades são mesmo qualidades, ou se são fogo-fátuo.

22 - Quanto a Aladje, a ideia que fica é que já tem idade para ter filhos a jogar no mesmo torneio. Continuo sem perceber a insistência em formar equipas jovens com atletas com idades propositadamente falsificadas. O que é que se ganha com isto?

23 - Uma vez que faltam neste mundial algumas das habituais potências mundiais em escalões jovens (Brasil, Argentina, Alemanha, Holanda, etc.), reúnem-se as condições para que Portugal chegue longe. Um jogo com a Espanha é o que todos pedem, e seria, sem dúvida alguma, o adversário mais indicado para testar a real competência deste conjunto de jogadores.

24 - A selecção espanhola é, uma vez mais, o alvo a abater. Embora seja impressionante como o consegue ser, em quase todos os escalões, considero esta selecção, em termos de colectivo, bem inferior a outras. Não obstante a qualidade individual, que me parece muito semelhante à de outros escalões, vê-se pouca paciência a circular a bola, pouca capacidade para criar apoios próximos, demasiadas variações de flanco, de iniciativas individuais (sobretudo dos homens da frente e de alguns laterais), e uma verticalidade que não condiz com aquilo a que o futebol espanhol nos habituou. Não gostei particularmente do trabalho de Lopetegui nos sub-21, apesar da vitória claríssima, e ainda estou a gostar menos deste. É uma pena que, embora os espanhóis consigam formar fornadas de jogadores todos os anos, não sejam capazes de manter a bitola a nível de treinadores.

25 - Ainda sobre esta selecção espanhola, continua a falar-se demasiado em Delofeu e Jesé Rodriguez. São, claramente, os jogadores mais maduros desta selecção, e os mais reputados, mas estão longe de ser os melhores. É notável, no entanto, que se junte agora a estes o jogador do Liverpool, Suso. Há dois anos, ninguém falava em Suso. Agora, como já fez alguns jogos na Premier League, já tem reputação suficiente para merecer umas palavras. Os comentadores desportivos não vêem os jogos que estão a comentar; têm uma ficha à frente com os apontamentos que tiraram, repetem meia-dúzia de ladainhas, e acabam invariavelmente a gabar o que toda a gente gaba.

26 - Parece-me que Gerard Delofeu melhorou significativamente, nos últimos anos. De resto, estando no Barcelona, seria natural que isso acontecesse. Agora já não aproveita cada bola que ganha para experimentar ultrapassar o seu opositor directo. Já tem na cabeça mais do que as suas competências individuais e já procura vir para o meio, à procura de apoios frontais. Está, por isso, no bom caminho, e reconheço-lhe finalmente algumas competências para que possa vir a ser um jogador de topo. Quanto a Jesé Rodriguez, nem pensar. Mantém as mesmas características de há 2 anos, e não espero grandes coisas dele.

27 - Já há dois anos Suso me pareceu um jogador muito interessante. Tendo sido aposta em Liverpool, aparece moralizado neste torneio, e tem assumido algum protagonismo. Embora lhe reconheça talento, continuo a achar que os dois melhores jogadores desta geração são Denis Suárez e Oliver Torres. E destes, talvez por serem pouco exuberantes, ou talvez por não terem a reputação dos outros três, poucos falam. São os jogadores mais inteligentes, e aqueles que, por isso mesmo, melhor preparados me parecem estar para enfrentar as exigências do futebol sénior.

28 -Na final da taça das Confederações, vitória justa do Brasil. Foi a equipa mais compenetrada e, não obstante um futebol excessivamente musculado e aos trambolhões, com muitos problemas quer ao nível da decisão com bola, quer a nível posicional, foi a melhor equipa em campo. Os brasileiros acabaram por ter sorte por marcarem nos momentos em que marcaram, e da forma como o fizeram, mas a verdade é que o mau jogo espanhol não justificava um resultado positivo. É verdade, também, por outro lado, que as condições climatéricas favorecem quem está habituado a elas, e que o desgaste a que a Espanha foi sujeita na meia-final terá certamente condicionado a equipa na final. A Del Bosque pede-se que tire desta competição as devidas conclusões: se quer ser campeão do mundo no ano que vem, em condições climatéricas como estas, vai ter de rodar muito os seus jogadores, sobretudo os cinco mais adiantados, e desde o primeiro dia.

29 - Várias conclusões poderiam ser tiradas do que aconteceu nesta competição: que o Brasil é o principal candidato ao título mundial do ano que vem, que o reinado da Espanha chegou finalmente ao fim, que Scolari é um óptimo treinador. Há que perceber, no entanto, várias coisas. Para os espanhóis, como de resto para os italianos, esta competição não tinha a mesma importância que para os brasileiros. Basta ver como, numa meia-final, depois de 120 minutos desgastantes, quando a capacidade de concentração dos atletas não podia ser mais baixa, só à sexta grande penalidade é que alguém falhou. Espanhóis e italianos abordaram as grandes penalidades com que se poderiam apurar para uma final sem qualquer pressão porque, precisamente, a Taça das Confederações era só uma prova de fim de época. Acresce a isto que os espanhóis já ganharam tudo e têm pouco a provar. A única conclusão a tirar, do que aconteceu neste torneio, é que o mundial do Brasil do ano que vem vai ser tão mau ou pior do que o de 2002, no Japão e na Coreia. O futebol não é, definitivamente, um jogo de climas tropicais, e a qualidade de jogo será muitíssimo afectada pelas temperaturas e pela humidade a que se jogar daqui a um ano. Em condições destas, as competências intelectuais dos jogadores e as competências tácticas das equipas têm menos peso, enquanto os detalhes terão certamente maior importância. Não me surpreenderá, por isso, se algumas equipas europeias ficarem pelo caminho logo na primeira fase, como não me surpreenderá que as equipas sul-americanas (e talvez uma ou outra africana) façam uma boa prova. Será, creio, um mundial de fraca qualidade, em que os mais fracos verão as discrepâncias para os mais fortes serem drasticamente reduzidas. Mais do que um mundial de futebol, será um mundial dos que têm muita força de vontade.

30 - Como se deve ter percebido, não gostei minimamente do futebol do Brasil. Além de haver jogadores incrivelmente sobrevalorizados (como David Luiz, Hulk e Paulinho), o colectivo é banalíssimo. Defensivamente, desposicionam-se com facilidade, ocupam mal os espaços e reagem erradamente ao que quer que o jogo lhes peça. Ofensivamente, dependem excessivamente da inspiração individual. Há, no entanto, uma boa notícia: Neymar. O jovem craque mostrou finalmente mais do que dribles estonteantes, capacidade para irritar defesas e números de circo. Mostrou que pode jogar ao mais alto nível, que percebe a utilidade de procurar apoios curtos, de tabelar, etc.. Há dois anos, quando foi copiosamente derrotado pelo Barcelona, foi humilde em reconhecer a supremacia catalã. Na altura, tal atitude podia querer dizer várias coisas. Hoje percebe-se que era mesmo "humildade", que Neymar estava mesmo convencido de que o adversário lhe tinha ensinado alguma coisa. Não estava apenas resignado; tinha aprendido uma lição. Nos últimos dois anos, aplicou essa lição ao craque que era e tornou-se finalmente jogador de futebol. Há dois anos, procurava insistentemente Paulo Henrique Ganso. Fazia-o, parece-me, por diversão e por respeito, porque Ganso era dos mais habilidosos e lhe dava gozo fazê-lo. Hoje procura quem quer que lhe ofereça um apoio, e isso é o suficiente para que vingue no clube em que oferecer apoios ao portador da bola é o principal requisito de qualquer jogador. Dou a mão à palmatória: nunca fui demasiado hostil a Neymar, mas também nunca me encantou por aí além. Hoje, no entanto, ainda que por razões certamente diferentes daquelas pelas quais é aplaudido, acho que Neymar me provou que devia ter sido mais paciente a formar a minha opinião. Não alinho pela teoria de António Tadeia, de que Neymar é super-inteligente a jogar futebol, mas reconheço que perdeu alguns vícios e que pode melhorar bastante a esse nível no futuro. E isso costuma ser decisivo.

31 - Xavi a olhar para o chão, com a mão sobre a testa, no momento da grande penalidade que Sergio Ramos haveria de falhar, na final da competição - eis o momento mais interessante do torneio. Aliás, Sergio Ramos tem tanto a ver com esta selecção como um cristão tem a ver com a teoria do Big Bang.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

O Síndroma de Mourinho

Acontece a quem valoriza menos as convicções do que o treino, a metodologia, a capacidade de agarrar num conjunto de jogadores e de prepará-los de acordo com as competências de cada um, passar por ser um treinador cujas equipas jogam de determinada forma, com um determinado estilo, quando na verdade é um treinador cujas equipas apenas se caracterizam pela competitividade que consegue incutir-lhes. Já aqui escrevi sobre isso, a respeito de Mourinho, mas posso repeti-lo, para que se saiba do que falo. No Porto e nos primeiros anos de Chelsea, Mourinho valorizava coisas que agora já não valoriza. Pode nunca ter abdicado da competitividade, da intensidade, da compenetração táctica do colectivo, mas as suas primeiras equipas eram mais dominadoras com bola do que o são agora. A partir do terceiro ano no Chelsea, tudo mudou. Sempre achei, e continuo a achar, que a principal razão para tal foi a obsessão em conquistar nova Liga dos Campeões, troféu que lhe fugiu nos dois primeiros anos de Chelsea pelos detalhes de uma ou outra eliminatória. A partir desse ano, Mourinho passou a preparar as suas equipas não para o longo prazo, não para serem regulares, exibindo um futebol de posse, mas para serem equipas calculistas, especialmente aptas para os momentos cruciais da época. Custou-lhe isso não só a perda do campeonato inglês, logo nesse ano, mas sobretudo a perda da identidade. O seu Chelsea não voltou a ser o que fora nos anos anteriores (até o 442 clássico experimentou), passou a privilegiar dois médios defensivos, em vez de um, e por onde quer que tenha passado (Inter e Real Madrid), não obstante o que conseguiu, nunca mais foi capaz de montar uma equipa cuja superioridade, em termos de qualidade de jogo, fosse evidente. Obviamente, não deixou de ser um treinador competente, capaz de ter um conjunto de jogadores moralizados e perfeitamente conscientes do seu papel em campo. Deixou foi de ter um modelo de jogo distinto, que se impusesse naturalmente aos dos adversários, que dependesse pouco da capacidade de concentração da equipa nos momentos decisivos da época, assim como da sorte e de todos os outros imponderáveis.

Para efeitos de argumento, chamarei a esta mudança de crenças (a mudança da crença nas convicções para a crença na versatilidade e na adaptabilidade) o síndroma de Mourinho. Nada do que tenho para dizer neste texto diz, no entanto, respeito a Mourinho senão o facto de usar o seu exemplo para diagnosticar noutros o que nele se passou. Há 3 semanas, haveria poucos que hesitariam perante a seguinte pergunta: qual foi o melhor dos quatro anos de Jesus no Benfica? Por essa altura, preparava-me para escrever um texto para defender que, ao contrário do que muito gente com certeza acharia, a melhor época de Jorge Jesus não era a presente, mas a primeira de todas. Independentemente dos resultados malogrados, continuo a achar que esta época do Benfica, em termos de rendimento, foi muito boa e que será difícil o Benfica encontrar um treinador capaz de fazer com que a equipa tenha um rendimento tão alto. Mas, ao contrário do que muita gente acredita, não creio que uma época de rendimento alto implique que a época tenha sido boa. A meu ver, esta foi, aliás, a pior época do Benfica, desde que Jesus chegou. Não porque não tenha ganho nada e não porque tenha prometido e falhado tudo. Foi a pior época simplesmente porque foi a época em que a equipa jogou pior. É verdade que não escrevi muito sobre isso ao longo da época, mas o Benfica de Jesus, este ano, foi sobretudo uma equipa muito competitiva, capaz de manter os índices de concentração elevados, e que se conseguiu transcender num ou noutro jogo importante, sobretudo na Europa. Não foi, porém, uma equipa com um fio de jogo agradável, não defendeu tão bem quanto noutras épocas, não foi minimamente criativa, e acabou por pagar tudo isso da pior maneira possível. O que proponho de seguida é apresentar as razões pelas quais isto foi assim.

Na minha opinião, aconteceu com Jesus o que aconteceu com Mourinho, ou seja, mudou de crenças. Tal como com Mourinho, este diagnóstico só é possível ao final de algumas épocas. É verdade que já na sua primeira época lhe apontávamos aqui como defeito o excesso de vertigem com que jogara não só no Benfica, mas também no Braga. Embora reconhecêssemos às suas equipas enormes virtudes, agradava-nos mais o seu Belenenses, com um futebol mais pausado, de toque mais curto, em 442 losango, do que o seu Braga ou o seu Benfica. Ao contrário do que seria talvez expectável, os poucos defeitos que identificávamos no modelo (excesso de velocidade e intensidade de jogo, incapacidade de gerir o ritmo da partida, demasiada amplitude e espaço no meio-campo, problemas de transição defensiva e pouca criatividade no último terço do terreno) foram precisamente os aspectos em que Jorge Jesus passou a depositar mais confiança, nas épocas seguintes. Ramires, que não era um extremo e, por isso, jogava mais por dentro, para além de conferir uma qualidade em transição notável, foi substituído por Salvio, e o 4132 passou a ser ainda mais aberto do que era; a dupla Aimar-Saviola, que na primeira época fora o principal motor da criatividade da equipa em espaços muito povoados, foi desfeita e pouquíssimo utilizada a partir de então; a própria pressão alta, uma das maiores bandeiras de Jesus quando chegou ao Benfica, passou a ser feita bem mais atrás. Estes três aspectos, na altura, faziam pouco sentido. Por que razão haveria Jorge Jesus de modificar tais coisas, sendo que algumas delas eram a sua imagem de marca? A resposta a esta pergunta só se tornou clara para mim no decorrer da presente época, e explica-se, como o fiz acima, por uma mudança de crenças.

É claro para mim, agora, que Jesus já não é o mesmo treinador que chegou ao Benfica. Acima de tudo, já não é o treinador convicto que era. Se alguma coisa o caracterizava, era a convicção nele próprio e no futebol em que acreditava. Essa convicção era de tal forma pronunciada que, não raro, descambava em fanfarronice e precipitações. O insucesso europeu da primeira época, com o seu Benfica, avassalador do lado de cá da fronteira, a denotar debilidades tácticas e alguma inexperiência fora de portas, mas também, porventura, as sucessivas derrotas com o Porto de Villas-Boas na época seguinte (entre elas, a perda da Supertaça, uma derrota pesada no Dragão, a derrota em casa que permitiu os festejos do título na Luz, e a derrota em casa na segunda mão das meias-finais da Taça de Portugal, perdendo a vantagem de 2 golos que trazia da primeira mão), a diferença de 21 pontos para o mesmo Porto, e a saída prematura da Liga dos Campeões num ano em que afirmara ser candidato a vencê-la terão sido machadadas demasiado fortes nas convicções de Jorge Jesus. Se não imediatamente no princípio da segunda época, pelo menos a meio dela já Jesus sentia que o insucesso lhe impunha a necessidade de modificar o seu modelo. Todas as modificações que se verificaram desde essa altura são uma resposta a essa imposição. Jamais, antes desse momento, Jesus pensaria em entrar em partidas a defender atrás da linha de meio-campo e em conceder toda a iniciativa do jogo ao adversário, como o fez variadas vezes esta época; jamais especularia sem bola, encontrando-se a vencer apenas por um golo, como o seu Benfica quase sempre fez ao longo desta temporada. O Benfica da primeira época de Jesus era voraz. Evidentemente, essa voracidade causou, num ou noutro momento de inexperiência, alguns dissabores. Mas, no longo prazo, foi o que garantiu não só o sucesso mas também o espectáculo. Atrevo-me até a dizer que, com o Jorge Jesus dessa primeira época no banco, esta época, o Benfica não teria perdido o título no Dragão, pelo menos não da maneira que perdeu, e não teria perdido a final da taça depois de estar em vantagem.

Essa equipa podia ter, de facto, momentos de ingenuidade, mas era capaz de golear com uma regularidade de que nenhuma outra equipa de Jesus, desde então, foi capaz. Depois desse ano, ou talvez no decorrer da época seguinte, Jorge Jesus sentiu que tinha de ser mais calculista, que tinha de fazer com que a sua equipa aprendesse a gerir vantagens sem bola. Durante muito tempo, Jesus identificou-se com a escola holandesa, e foi assim que foi campeão logo no ano em que chegou à Luz. Depois disso, italianizou-se. Não só nunca mais teve os êxitos desportivos desse ano como, sobretudo, nunca mais soube pôr o Benfica a jogar como nesse ano. Se, no primeiro ano, o seu Benfica pecava por alguma verticalidade, não sabendo identificar com exactidão os momentos do jogo em que se pedia uma gestão da bola e da velocidade mais correcta, o seu Benfica de hoje é uma equipa absolutamente vertical. É absolutamente vertical não no sentido de ser vertiginosa (a esse respeito, não o é tanto, é verdade), mas no sentido de ser muito menos competente a jogar por dentro, a construir horizontalmente, a tabelar, a criar espaços através de movimentações sem bola, etc.. Desde que Aimar e Saviola deixaram de jogar juntos, por exemplo, que não há criatividade, em termos colectivos. Os momentos de criatividade que há são individuais, e tudo o que a equipa consegue consegue-o às custas da intensidade, da competitividade e do talento de cada um dos jogadores. Para combater o insucesso, Jorge Jesus transformou um modelo no qual, apesar de tudo, havia espaço para a imaginação, para a inteligência e para a criatividade num modelo que privilegia unicamente a concentração e a atitude competitiva, a mecanização dos processos de jogo e as faculdades motoras dos jogadores. Está, por essa razão, mais igual que nunca a José Mourinho. Não deixa de ser irónico, por isso mesmo, que, apesar das expectativas que se criaram quer em torno do Benfica, quer em torno do Real Madrid, os dois tenham perdido este ano todas as competições pelas quais pugnaram. Seria bom, portanto, que este insucesso os fizesse reflectir, como outrora o insucesso lhes motivou o abandono das primeiras convicções.