Esse uso errado da palavra "criatividade" ocorre muitas vezes quando se pretende classificar um extremo. Raramente um extremo é um jogador criativo. Por norma, o extremo que as pessoas acham que é criativo é um jogador muito hábil, do ponto de vista técnico, e muito rápido. Só. Por exemplo, a criatividade de Cristiano Ronaldo é, quando comparada com outros jogadores, uma coisa quase ridícula. O mesmo se passa com Di Maria e Hulk, ou, noutra dimensão, com Robinho. São jogadores que, tecnicamente, possuem recursos muito interessantes, mas não são jogadores que, perante dificuldades imprevistas, saibam solucionar os seus problemas. É por isso que, em espaços curtos, não são jogadores extraordinários ou, pelo menos, não conseguem sê-lo de um modo regular. O paradigma do jogador criativo, na acepção de palavra que estou a defender, é o típico jogador espanhol da actualidade: Iniesta, Fabregas, David Silva, Mata, Bojan, etc. Tratam-se de jogadores que interpretam os lances de um modo mais abrangente, que conseguem, perante problemas difíceis, encontrar invariavelmente a melhor solução e que conseguem descobrir soluções inesperadas. São por isso mais imprevisíveis e, por conseguinte, mais difíceis de entender, por parte dos adversários. O jogador criativo é, por isso, aquele que percebe com mais facilidade para onde é que a bola deve seguir, aquele que percebe mais rapidamente se deve fazer um compasso de espera ou se deve jogar de primeira e aquele que, mesmo sem recursos técnicos assinaláveis, é capaz de se livrar individualmente de adversários directos, enganando-os com um drible, com uma simulação de passe, com uma tabela ou uma desmarcação no momento certo.
Uma das razões pelas quais Mesut Özil tem sido amplamente elogiado e Thomas Müller ignorado prende-se precisamente com o facto de as pessoas terem tendência a reter com mais facilidade os atributos técnicos de um atleta do que os seus atributos intelectuais. Özil é tecnicamente mais vistoso que Müller e terá melhores capacidades a esse nível. Mas não é mais criativo que o jogador do Bayern. Isto porque criatividade não tem nada a ver com capacidade técnica. Aliás, uma das razões pelas quais o momento ofensivo da selecção alemã parece tão fluido tem a ver com a liberdade que Müller tem para vir para o meio, permutando com Özil, onde a sua capacidade de decisão e a sua criatividade têm mais influência no desempenho do colectivo. Se Müller ficasse amarrado ao flanco, como do outro lado acontece com Podolski, cujos movimentos são essencialmente verticais, a Alemanha seria muito mais estéril do ponto de vista ofensivo, pois a criatividade de Müller não estaria tanto em jogo. A jogada que - creio - melhor exemplifica as qualidades que estou a querer reconhecer em Müller é a jogada do segundo golo frente à Inglaterra.
O lance começa na direita, com Kedhira a servir Müller, junto à linha, com Ashley Cole atrás dele. Sem preparação, de primeira, de modo a não permitir a aproximação dos defesas ingleses, Müller reenvia a bola para o meio, para o apoio de Mesut Özil ao centro. É nesta opção, invulgar na maior parte dos jogadores que jogam junto às linhas, que está a primeira e a mais decisiva acção do lance. Depois de soltar em Özil, Mülller desmarca-se de imediato. Özil joga de primeira em Klose, que está junto à linha, e este, também de primeira, faz a bola entrar nas costas da defesa inglesa, num espaço que Müller, ao desmarcar-se, atacara. O desequilíbrio está causado e Müller, com espaço para rematar, opta antes por servir Podolski, que fica sozinho porque Müller arrastou todas atenções para si. A capacidade de decisão de Müller, tanto no passe para Podolski, mas sobretudo no primeiro momento, quando joga no apoio e se desmarca de imediato, é que é aqui preciso notar. É que, embora pareça um movimento simples, isto denota uma capacidade criativa invulgar. Em primeiro lugar, Müller percebe a opção que tem ao meio de um modo notável e percebe também que, para fazer uso dessa opção, deve executar de primeira. Qualquer recepção tornaria inválido o apoio de Özil. Müller pôde usar a opção porque pensou rapidamente e a descobriu antes de receber a bola. Pouquíssimos jogadores têm esta capacidade. Depois disto, percebe rapidamente que, com Özil na posição em que estava e Klose à esquerda, o lateral-esquerdo e os dois centrais haviam sido puxados para ali e a defesa inglesa estava, portanto desorganizada. Como tal, imediatamente a seguir ao passe de primeira, desmarca-se e aproveita essa desorganização. Foi a criatividade de Müller, a sua capacidade de visualizar rapidamente o que rodeava e de perceber rapidamente os dividendos que poderia tirar dessa conjuntura, que permitiram que fosse criado tamanho desequílibrio. Depois, porque o seu pensamento exigia o passe de primeira e a desmarcação célere, tratou de pôr em prática aquilo que a sua mente idealizou com facilidade. É esta capacidade intelectual de antecipar com tanta precisão tudo aquilo que uma simples acção ou um simples movimento implica, assim como a capacidade de extrair dessa capacidade primeira todo o lucro possível, que faz de Müller um jogador extraordinariamente criativo. A criatividade é isto, é o atributo que permite ao jogador antecipar mais correctamente o futuro imediato.
Grande parte dos jogadores, mesmo os muito dotados tecnicamente, agem essencialmente por reacção e não são capazes de antecipar, quais xadrezistas vulgares, senão os milésimos de segundo que se seguem à sua acção. O jogador verdadeiramente criativo é aquele que consegue desenhar na sua cabeça toda a jogada, que consegue perceber, com um grau de precisão muito elevado, tudo o que vai acontecer em seguida. Esse, porque tem essa capacidade, está sempre um passo à frente dos outros, mesmo que não possua argumentos técnicos e físicos tão elevados como os melhores. É por isso que a criatividade, ainda que dependa sempre da acção dos outros para se fazer valer, é um atributo tão importante. Numa equipa que jogue como equipa, que se faça valer mais da relação entre os diferentes elementos da equipa do que das individualidades que a compõem, a criatividade é, portanto, o atributo mais importante num jogador. Müller é mais criativo que Özil porque tem esta capacidade de ler as jogadas muito mais apurada que o jogador do Werder Bremen, ainda que não seja tão evoluído, do ponto de vista técnico, quanto o seu compatriota, nem seja tão competente quando entregue a duelos individuais. Como tal, só quem entende o futebol como um jogo de individualidades é que pode ficar mais entusiasmado com Özil do que com Müller. Estas pessoas acham igualmente que o primeiro é mais criativo porque nem sequer concebem a existência de atributos essencialmente colectivos, que só têm real valor se o jogo for entendido para além desse choque entre onze indivíduos de cada lado. Para esses, Özil é mais influente na equipa porque as qualidades da equipa são apenas a soma das qualidades individuais de cada elemento que forma a equipa. Ignoram, porque incapazes de não ignorar, que as qualidades da equipa são, isso sim, muito mais do que essa soma, a soma das relações que cada individualidade tem com as outras individualidades, e que, portanto, é mais influente aquele cujas capacidades de se relacionar com os outros é melhor. No fundo, Müller é mais influente porque a sua relação com os outros e com o colectivo em geral é mais valiosa, independentemente de, quando entregue a si, não ter tanta facilidade para resolver problemas quanto tem Özil.