Que há diferenças entre ver um jogo num estádio ou um jogo pela televisão, toda a gente sabe. A maior parte das pessoas, porém, resume essas diferenças a coisas insignificantes, como o facto de um jogo ao vivo propiciar maiores emoções ou a impossibilidade de assistir às repetições dos lances. Considero que os ganhos de ver um jogo ao vivo excedem em muito as perdas. Mas ao dizer isto não o faço pelas razões mais comuns. Na minha opinião, o principal ganho prende-se com a possibilidade de não se estar a olhar para a bola a todo o momento, coisa que na televisão acontece. Ao contrário, portanto, do que acontece nas transmissões televisivas, um espectador no estádio, com a devida atenção, pode perceber com muito mais facilidade tudo o que acontece numa equipa para além daquilo que acontece perto da zona onde está a bola.
O preâmbulo anterior tem o condão de justificar as asserções que farei de seguida. Dito isto, tive a oportunidade de assistir ao vivo, há dias, em pleno Camp Nou, ao desafio que opôs o Barcelona ao Recreativo de Huelva, a contar para o campeonato espanhol. O jogo foi pouco intenso do ponto de vista emocional, não teve oscilações significativas e foi quase sempre jogado ao mesmo ritmo. Não terá sido um dos melhores jogos do Barcelona, tal a abundância de boas exibições, mas a verdade é que a equipa catalã fez o jogo que mais lhe interessava. Marcou cedo, geriu a vantagem, sempre com mais bola que o adversário, e geriu as expectativas e as energias dos seus jogadores mais influentes. Messi, então, esteve em campo apenas para desentorpecer os músculos, como se fosse um treino de recuperação activa. Ainda assim, foi um desafio agradável, com muitos dos ingredientes habituais: trocas de bola sucessivas, bom jogo posicional e elevada concentração de todos os jogadores. Deste ponto de vista, uma vez que foi um jogo pausado, com poucas transições rápidas de parte a parte, jogado quase sempre com os conjuntos organizados, foi talvez o jogo perfeito para quem tenta perceber os pormenores mais profundos do modelo de Guardiola. Será precisamente a isso que me dedicarei de seguida.
1. Tabelas
Tentarei não referir aqui as coisas mais básicas, como o esquema táctico, a preferência por um futebol apoiado ou directo, a forma de defender (à zona ou ao homem), mas sim os detalhes que, no fundo, distinguem este Barça de qualquer outra equipa do mundo. Nesse sentido, as tabelas serão, porventura, o atributo mais indicado por onde começar. Nenhuma outra equipa no mundo valoriza tanto este gesto quanto o Barcelona. Já o era assim com Rijkaard; é-o incomensuravelmente mais com Guardiola. Pouca gente há que saiba, com rigor, a importância de uma tabela. Para muitos, a sua consequência imediata é igual à consequência imediata de um drible bem sucedido, isto é, ultrapassar um adversário. Isto não é verdade. Numa tabela, o desposicionamento do adversário é muito maior. A razão é simples e tem a ver com o número de atacantes envolvidos. Num drible, os jogadores que defendem têm apenas que se preocupar - digamos - com uma cabeça; têm que estar concentrados apenas naquilo que o jogador que tem a bola faz. A partir do momento em que este aposta em algo individual, como o drible, os defesas têm apenas de corrigir o seu posicionamento de modo a prevenir aquilo que esse jogador fará (que linhas de passe terá, que opções tem, etc.). A tabela, ao envolver dois atacantes, exponencia as dificuldades imediatas da defesa, pois há que ter em conta o que duas cabeças estarão a pensar. Não é, por isso, raro que numa tabela o defesa batido demore muito mais a reagir do que num drible. Mas a maior eficácia de uma tabela em relação a um drible não é a única razão existente para que a tabela deva ser tão valorizada. Sobretudo porque maior parte das equipas continuam a ter por referência de marcação, com maior ou menor grau de exagero, os jogadores adversários, uma tabela, sendo algo que envolve mais do que um atleta e movimentações constantes, é sempre algo que propicia reajustamentos defensivos constantes e uma forma eficaz de manter em permanente movimento os defesas contrários. O Barcelona de Guardiola usa com mestria a tabela. Fá-lo não só para romper linhas adversárias, mas também por uma série de outras coisas. Fá-lo, por exemplo, para sair de zonas de pressão, para manter a posse de bola, para desorganizar momentaneamente a zona onde a bola se encontra, para chamar a atenção do adversário, fazendo depois a bola viajar com celeridade para zonas de menor concentração de defesas ou até mesmo como forma de treino ou mero divertimento. Isto leva-me para o segundo ponto.
2. Falta de objectividade
Há quem diga que jogar bem não é jogar bonito. Normalmente, isto acontece porque baseiam o conceito de bonito em algo que não o é, na verdade. Em futebol, ou em tudo o que tem um carácter objectivo, o bonito é o que satisfaz essa objectividade. Ou seja, é igual ao bom. Jogar futebol bonito não é andar a fazer cabritos ou cuecas, não é fazer passes longos a toda a hora ou fintar três adversários no sentido contrário à baliza; é jogar bem. Ao contrário do que estas pessoas diriam, o futebol do Barcelona não é atractivo porque é bonito; é atractivo porque é bom. E é bonito porque é bom. Essencialmente, é um futebol em que a taxa de opções correctas é muito elevada. E esta taxa é aquilo que, em futebol, define o que é bom e, por arrasto, o que é bonito. O futebol deste Barcelona é, na sua essência, isto: uma taxa de boas opções francamente superior a toda a concorrência. O seu futebol é reconhecidamente formidável graças à qualidade das opções dos seus jogadores. Isto permite, como consequência, que a equipa tenha uma taxa elevada de passes acertados, bem como a facilidade de progredir em posse. Neste momento, os que discordam de mim, dirão que há equipas que não jogam tão bonito, isto é, de forma tão atractiva, mas que jogam igualmente bem, isto é, são igualmente equipas eficazes e competentes no que diz respeito à objectividade. A divergência de opinião terá unicamente a ver com o conceito de "objectivo". Para maior parte das pessoas, o objectivo do futebol é o golo, ou a vitória. Nesse sentido, uma equipa joga bem se cumprir ou fizer tudo o que estiver ao seu alcance para cumprir esse objectivo. Assim, uma equipa que jogue de forma directa, sem "rodriguinhos", com um ritmo elevadíssimo, sempre com vista à vitória, fará um bom jogo. Não concordo com isto. E a razão prende-se com o facto de não concordar que o objectivo do futebol seja o golo ou a vitória. Como o defendi
aqui, o objectivo do golo é um objectivo circunstancial, que só é activado no momento de chutar à baliza. Todos os outros momentos têm por objectivo fazer o melhor possível para passar ao momento seguinte. O objectivo do futebol não é assim o golo ou a vitória, mas sim o fazer o melhor em cada momento. Ora, o Barcelona adopta uma filosofia que se identifica claramente com isto. Em muitos momentos do jogo - eu diria mesmo na maior parte deles - a equipa está menos interessada em marcar golos do que em manter a posse de bola ou fazer o que é melhor a cada momento, ainda que isso implique cinco ou seis acções para progredir o mesmo que poderia progredir numa só acção. Mas o que é mais interessante é que há ocasiões, mesmo quando o resultado está nivelado, em que o futebol do Barça é absolutamente contra-intuitivo. Em certas alturas, quando outra equipa qualquer aproveitaria para progredir no terreno ou para impor velocidade, o Barça joga para trás, envolve-se em tabelas aparentemente inconsequentes e diverte-se a trocar a bola entre os seus jogadores, sem qualquer objectivo aparente. Não é raro, por exemplo, vermos um passe vertical em que o jogador que recebe a bola se pode virar, pois tem espaço, e progredir perigosamente, mas não o faz, preferindo tabelar ou jogar para trás. Estes lances, na minha opinião, definem este Barcelona. As coisas, obviamente, não se fazem apenas por fazer e a ausência de objectividade é apenas aparente. Há, nestes gestos, o reflexo óbvio da forma de estar em campo da equipa. Tabelar quando pode progredir, jogar para trás quando tem espaço para a frente, fazer passes absolutamente inconsequentes quando tem espaço para avançar, são formas de treinar, de mecanizar, de criar rotinas nos jogadores. Preferir trocar a bola sem qualquer espécie de objectividade é precisamente aquilo que os deixa, depois, completamente confortáveis a jogar de costas para a baliza, a fazer tabelas, a considerar apoios, a romper linhas em trocas de bola sucessivas. O divertimento incosequente acaba por funcionar como treino, ou seja, por ter consequências, ainda que não imediatas.
3. Simplicidade Complexa
Muita gente há também que considera o futebol do Barcelona de uma simplicidade incrível. E consideram que essa simplicidade é louvável. O futebol do Barça não tem nada de simples. O facto de aquilo que eles fazem parecer simples deriva do erro comum de não se valorizar coisas como um passe de dez metros, quando são claramente mais complicadas de fazer do que outras que muitas vezes se consideram difíceis, como dribles fantásticos ou remates fortíssimos. Fazer um bom passe envolve tantas variáveis que é um gesto muito mais difícil do que se pensa. E a essência do Barça é o passe. Simplesmente, um pequeno passe não é só um pequeno passe; é um conjunto de movimentos coordenados entre todos os elementos da equipa. A simplicidade do Barcelona não é simples, não é só um futebol de "toca e foge" constante; cada "toca e foge" joga com todas as movimentações dos outros jogadores. Jogar como o Barça joga, com uma tal qualidade de troca de bola, só é possível porque existe uma coordenação colectiva fantástica e porque a movimentação de todos os colegas sem bola é de tal forma correcta que propicia, a cada instante, variadíssimas soluções de passe ao portador da bola. A aparência da simplicidade é o resultado de um processo muito complexo.
4. Atacar de forma verdadeiramente colectiva
Para muita gente, ser bom tacticamente é saber arrumar defensivamente a equipa. Para outros, acresce a isto o mecanizar o melhor possível os momentos de transição. Assim, uma equipa só é colectiva em momento defensivo ou quando está em transição. Daí que, a nível ofensivo, se pense que um treinador só pode treinar, isto é, rotinar, o momento da transição defesa-ataque. Para estas pessoas, em ataque organizado, o que conta é a qualidade, a inspiração, os atributos individuais de cada um dos jogadores, e não nada que possa ser mecanizado. Isto é absolutamente falso. E a maior lição de Guardiola, este ano, é precisamente essa. É indubitável que as individualidades influenciam a qualidade com que o colectivo manobra, mas é tão possível defender bem sem grandes individualidades do ponto de vista defensivo como é possível atacar bem sem grandes individualidades do ponto de vista ofensivo. Isto, claro, se essa falta de individualidades for compensada por um desempenho colectivo relevante. Uma equipa que defenda à zona, e a entreajuda entre os jogadores, as compensações, o posicionamento em função dos colegas estiver correcto, é óbvio que minoriza a falta de qualidade individual de cada um dos atletas, pois estão menos expostos às suas debilidades. Mas por que não seria assim em termos ofensivos? A falta de explosão de um extremo não pode ser compensada utilizando uma tabela com um companheiro? Claro que pode. E se não tem capacidade de ultrapassar o adversário pelo drible, tem-no certamente com uma tabela, por mais lento que seja. Daí que todo o gesto colectivo seja uma arma para compensar a individualidade. Este Barcelona ataca de forma verdadeiramente colectiva. Ao jogar em constantes tabelas, num futebol claramente apoiado, de toque curto, de passes verticais, de exploração do espaço entre linhas, está a valorizar não as características individuais dos seus atletas, mas as relações entre cada um deles. Não é, portanto, na qualidade individual dos seus elementos, mas sim na relação entre eles que reside a força ofensiva do Barça.
5. Qualidade individual
Há mesmo quem se atreva a dizer que o Barcelona é o que é porque tem os melhores jogadores do mundo. Isto é absurdo. Digo de caras que o plantel do Barça, em termos individuais, é claramente inferior a Manchester, Chelsea, Liverpool, Milan, Inter e Real Madrid, pelo menos. Tirando Messi e Daniel Alves, que serão os melhores na sua posição, e ainda Iniesta e Xavi, que estarão certamente com Van der Vaart, Guti, Sneijder, Fabregas, Gerrard, Lampard, Essien, e Diego nos 10 melhores médios-ofensivos do planeta, os restantes jogadores estão bem abaixo dos melhores do mundo. Valdez é um guarda-redes banalíssimo, claramente inferior, por exemplo, tanto a Casillas como a Reina, seus colegas na selecção. Puyol e Marquez são bons centrais, mas inferiores a Cannavaro, Córdoba, Rio Ferdinand, Ricardo Carvalho ou John Terry. Piqué tem um potencial fantástico e de Cáceres antevêm-se muito boas coisas, mas estão longe dos melhores do mundo. Abidal está longe dos melhores defesas-esquerdos do mundo. Yaya Touré ou Keita não são Pirlo, Gago, Cambiasso, Mikel, De Rossi, Mascherano, Xabi Alonso ou Carrick. Henry já foi, um dia, dos melhores do mundo. Hoje em dia está longe disso. Eto'o tem à sua frente, pelo menos, Ibrahimovic, Van Nistelrooy, Raul, Rooney, Berbatov, Tevez, Fernando Torres e Drogba. Argumentar isto é querer tapar o sol com uma peneira.
6. Zona Perfeita
Uma das coisas que ver um jogo num estádio facilita é poder perceber, em rigor, como funciona o movimento zonal da equipa sem bola, ou como esta reage à perda de bola e como efectiva o seu pressing. Digo-o sem grandes rodeios: a zona do Barcelona é fenomenal. A forma concentrada com que, por exemplo, os seus defesas encaram um lance disputado longe de si é fantástica.Por exemplo, em jogada a decorrer do lado esquerdo, a forma como procuram assegurar uma linha recta perfeita, ligeiramente na diagonal (aproximando-se da baliza quanto mais se afasta da bola), com os seus jogadores bem perto uns dos outros e preparados para correr caso uma bola passe para as suas costas, é soberba. Em termos de pressing, é absolutamente zonal, sem qualquer preocupação com adversários, assegurando a cada instante uma ocupação perfeita dos espaços. A facilidade que tem em fazer campo pequeno, chegando por vezes toda a equipa a ocupar menos de metade da largura do campo, faz deste Barcelona uma das melhores equipas do mundo a reagir à perda de bola. Esta eficácia, aliada depois à concentração e ao rigor posicional quando não tem bola, fazem desta equipa tão ofensiva uma equipa defensivamente muito bem preparada. O seu pressing é preferencialmente efectivado juntos às linhas, preocupando-se a equipa, em primeiro lugar, em fechar os espaços centrais, fazendo os três atacantes juntarem-se no meio, e em motivar o adversário a ir para a linha.
7. Apoios
Muito da capacidade do Barcelona passa pela facilidade que tem em criar apoios constantes. Quanto mais apoios houver, mais soluções tem quem leva a bola e mais fácil é fugir à actividade defensiva do adversário. A forma de jogar sem bola deste Barcelona potencia, em muito, essa facilidade. Ao contrário do que muitas vezes se pensa e do que, à partida, parece ter mais lógica, nem sempre faz sentido, quando a equipa tem bola, fazer o chamado "campo grande", isto é, dispor os jogadores o mais afastados de si de forma a preencherem todos os espaços do campo e a haver mais espaço para jogar. A principal intenção deste tipo de estratégia é levar o adversário, se este jogar ao homem, a abrir brechas entre os seus elementos. Mas contra equipas que joguem bem à zona, isto não acontece. Pode, de facto, haver mais espaço para receber a bola, mas haverá menos espaço para furar. Na prática, as equipas podem lateralizar infinitamente o jogo, se tiverem qualidade para isso, mas não ganham nada com isso se os adversários, defensivamente, forem bem organizados. Fazer "campo grande" faz sentido quando tem de fazer sentido. E ao contrário do que se pensa, este Barcelona não joga extremamente aberto, com os jogadores a darem sistematicamente largura e profundidade. É raríssimo que os dois extremos, em processo ofensivo, estejam os dois abertos ao mesmo tempo; é raríssimo que os dois médios-ofensivos estejam longe um do outro. Há sempre gente perto uma da outra. A equipa evolui em harmónio e não de forma rectilínea, torcendo-se sobre si mesma para permitir que os laterais dêem profundidade ou que o avançado baixe para tabelar com o médio. O Barcelona não faz "campo grande" a não ser quando lhe interessa e é até, muitas vezes, uma equipa encolhida, jogando em pouco espaço de terreno, quer seja a defender, quer seja a atacar, só esticando o jogo quando o adversário fica emaranhado na teia de apoios que conseguem criar. Os seus jogadores, por causa disto, têm a possibilidade de correr menos, uma vez que têm menos espaço para cobrir.
8. Ausência de passes longos
O passe longo, em Barcelona, é gesto non grato. Não se vêem, praticamente, passes longos, num jogo do Barcelona por várias razões. Primeiro, porque a equipa passa maior parte do jogo em organização, não havendo, por isso, da parte do adversário, tanto espaço. Segundo, porque usar o passe longo entra claramente em choque com aquilo em que se acredita e com as próprias faculdades da equipa, que tem a sua força na forma como circula a bola. Não se vê, por uma única vez que seja, um central a sair a jogar com um passe longo, mesmo estando, muitas dessas vezes, um extremo claramente aberto e com todas as condições para receber a bola. Não, isso não acontece porque isso seria queimar etapas e desvirtuar o modelo de jogo. O Barcelona precisa de evoluir de forma sustentada e é nisso que é forte. Não faz sentido, mesmo quando é mais fácil, apostar no passe longo. Depois, mesmo diagonais ou movimentos verticais dos médios que propiciem um passe para as costas da defesa são apenas movimentos estéreis ou dinâmica sem bola, usada para distrair o adversário daquilo que verdadeiramente importa ou para arrastar marcações. É muito raro, por exemplo, que as diagonais de Henry sirvam para que os defesas ou o médio-defensivo lá ponham a bola. Isto em primeiro lugar, faz com que o Barcelona não perca a posse de bola, aquilo que, no fundo, lhe confere identidade, e depois com que a equipa explore novos espaços, como consequência dessas movimentações.
9. Ritmo
Antes da partida com o Recreativo, Guardiola disse que a sua equipa teria de tentar evitar um ritmo de jogo baixo e tranquilo, pois isso interessava ao adversário. Para evitar isso, o treinador do Barça dizia que seria importante circular bem a bola. O ritmo elevado de jogo não é senão o ritmo elevado a que a bola circula. Nesse aspecto, sim, o Barcelona tem um ritmo de jogo frenético, se for preciso. Mas não é uma equipa constantemente vertical, constantemente a tentar chegar à frente. O seu ritmo de jogo, isto é, a intensidade com que ataca as redes adversárias, não é alto. E isso é um pormenor importantíssimo. Jogar apoiado, em toque curto, de forma segura, privilegiando a posse de bola não é compatível com um ritmo de jogo elevado, pois os riscos de efectuar maus passes aumenta com o aumento do ritmo de jogo. O Barça troca velozmente a bola, mas não joga velozmente. A sua evolução defesa-ataque é, porventura, das mais demoradas do mundo, servindo essa demora para a equipa se manter unida e apoiada, o que permite crescer por etapas, sempre em condições de ser ela a mandar na partida.
10. Dois médios-ofensivos
Para muitos, o esquema táctico, isto é, a disposição dos jogadores em campo não tem qualquer influência na forma como a equipa joga, uma vez que são as dinâmicas que interessam, e qualquer esquemo táctico permite jogar de todas as maneiras com igual eficácia. Para esses, o Barcelona poderia jogar da mesma forma em 442 clássico, por exemplo. Não concordo com isto. Aliás, imaginar que só as dinâmicas têm importância, numa equipa, seria imaginar, por exemplo, que não há qualquer razão lógica para um treinador optar por um esquema táctico em vez de outro. Sinceramente, este Barcelona, com outra qualquer táctica, era outra equipa, jogaria de forma absolutamente diferente. Uma das coisas mais importantes, porventura, é a utilização de dois médios-ofensivos. Já nem vou falar das características individuais dos médios que jogam nestas duas posições, apesar de elas serem únicas, no futebol europeu, mas é completamente diferente jogar em 433 com dois médios-ofensivos de jogar, por exemplo, apenas com 1, em 4231. Em termos ofensivos, a presença de mais um jogador permite à equipa, em zonas avançadas do terreno, uma rede de apoios muito mais eficaz. Depois, haver dois médios-ofensivos potencia um pressing muito mais alto, uma melhor ligação entre meio-campo e ataque e, em termos gerais, uma melhor arrumação dos jogadores em função do espaço ocupado pela equipa.
11. Movimentos típicos dos extremos com bola
Seja Messi na direita, seja Henry ou Iniesta ou Bojan na esquerda, o movimento típico dos extremos é virem para dentro. A partir dessa altura, a colocação do médio-ofensivo e do avançado é absolutamente sistemática. A forma mecânica como a equipa se comporta quando os extremos têm a bola indicia um trabalho específico a esse nível. Este é mesmo um bom exemplo de como é possível trabalhar, e muito, em termos ofensivos, uma equipa. Aliás, na verdade, é um bom exemplo de como o Barcelona, ofensivamente, é uma equipa quase exclusivamente colectiva. Assim que o extremo agarra na bola e flecte para o meio, o médio procura imediatamente ocupar um espaço recuado, dando uma opção de passe recuada, necessária caso o meio seja fechado por um dos médios, e conferindo uma cobertura em caso de perda de bola. Ao mesmo tempo, o lateral desse lado inicia a marcha para que, caso a bola baixe para o médio que deu apoio, esteja já numa posição avançada para receber novamente a bola naquele lado. Ao mesmo tempo, o ponta de lança desce e aproxima-se do extremo que conduz a bola. Ao mesmo tempo, o extremo do lado contrário aproxima-se da posição de ponta-de-lança e é o lateral do lado contrário que vai iniciar a marcha para dar profundidade. Normalmente, o lance termina com o extremo a jogar no avançado, que ou dá no médio de frente, ou tabela de primeira com o extremo, que entretanto entrou entre os defesas contrários.
12. Verticais ou diagonais sem bola e passes verticais
Outro dos movimentos ofensivos mecanizados na equipa são as verticais ou as diagonais sem bola. Normalmente, um dos médios-ofensivos volta-se para trás e joga a bola no médio-defensivo. Nesse momento, o outro médio-ofensivo inicia um movimento umas vezes vertical, outras diagonal, mas nunca recebe a bola. Esta é novamente endereçada ao mesmo médio-ofensivo, num passe vertical, e este agora tem mais espaço, fruto da desmarcação do colega, que arrastou adversários. A partir daqui, a bola entrará nas linhas ou subirá no ponta-de-lança, que tem por hábito descer para dar um apoio vertical, sendo um dos extremos a dirigir-se, na diagonal, para o centro do ataque. Outro movimento sem bola semelhante, com os mesmos fins, são as diagonais dos extremos. Associado a isto está a quantidade incrível de passes verticais, rasteiros, que a equipa consegue. Com estes passes, usualmente propiciados por estas movimentações ilusórias, a equipa progride verticalmente no terreno sem levantar a bola do chão, de forma segura, etapa a etapa.
13. Bolas paradas defendidas à zona.
O Barcelona defende os cantos à zona, colocando, por norma, 8 jogadores zonalmente e ainda um à entrada da área. Isto poderá variar de adversário para adversário, mas é usual não colocar nenhum jogador em nenhum dos postes (o que não deixa de ser curioso, tendo em conta maior parte das zonas), um jogador na zona do primeiro desvio, na linha vertical da pequena área, uma linha de quatros jogadores na linha de pequena área e ainda outra linha, um pouco mais adiantada que esta, com três homens nos intervalos dos outros quatro. Um dos defeitos que se aponta ao Barcelona, ou uma das dúvidas em relação à sua capacidade competitiva, prende-se com os lances de bola parada. Diz-se que a equipa é muito permeável de bola parada, mas dos 24 golos sofridos na Liga apenas 3 foram de bola parada, ao passo que, na Liga dos Campões, só 2 em 12 (excluo os livres directos). Só 1 em cada 6 golos sofridos são de bola parada, pelo que me parece francamente exagerado falar de permeabilidade nesses lances.
14. Importância da parte estratégica do jogo
Guardiola dá especial atenção aos seus adversários e prepara a equipa para certas nuances estratégicas, condicionadas pelo adversário. Contra o Recreativo, um exemplo claro desse lado estratégico, e que dificilmente terá sido perceptível pela transmissão televisa, foi o posicionamento defensivo aquando de um pontapé de baliza do adversário. Saberia, por certo, Guardiola que o Recreativo batia todos os pontapés de baliza para o lado direito do seu ataque, e colocou a sua equipa toda fechada nesse preciso espaço, em duas linhas de quatro jogadores, uma composta pelos centrais, a outra pelos médios e Henry, que, com Busquets, ocupava a zona onde a bola cairia. Para se ter uma ideia, Daniel Alves era o homem mais à direita desta zona e encontrava-se uns bons metros para cá da linha de meio-campo, ficando a equipa toda encolhida em 20/25 metros de largura e pouco mais de comprimento. Sabendo para onde o Recreativo bateria os seus pontapés de baliza, o Barcelona concentrou os seus onze jogadores numa área reduzidíssima de terreno, ganhando, quase de certeza, se não a primeira, pelo menos a segunda bola.
15. Rotatividade do plantel
Outro dos aspectos que merecem referência é a gestão de esforços que Guardiola tem sido obrigado a fazer nos últimos tempos. Ao contrário de grande parte dos treinadores, que optam por fazer descansar jogadores-chave em jogos do campeonato que antecedem desafios da Liga dos Campeões, a gestão de Guardiola, ainda que pretenda o mesmo, efectua-se de forma diferente. Além de nunca fazer descansar muitos dos titulares ao mesmo tempo (4 ou 5, no máximo), mantendo assim a competitividade da equipa, maior parte dos jogadores que serão utilizados no jogo seguinte e que ficaram inicialmente no banco acabam por entrar na partida, fazendo alguns minutos, mesmo que o resultado esteja garantindo. A ideia é óbvia e pretende manter os jogadores com ritmo de jogo. Isto faz todo o sentido. Se evitar o desgaste físico de uma partida de 90 minutos é importante, não nos podemos esquecer que nesse dia não há treino. Fazer eventuais titulares descansar, mas dando-lhes 20 ou 30 minutos para manterem o contacto com a competição é uma forma de gerir energeticamente e psicologicamente um plantel que me parece ter muito mais lógica. Outro exemplo da gestão da fadiga por parte de Guardiola está em Iniesta. O espanhol é um dos titulares indiscutíveis, mas nesta fase de dois jogos por semana nunca foi poupado, numa intenção clara de manter um jogador que passou algum tempo lesionado com um ritmo de jogo cada vez mais alto e apurado.
Resumindo, este Barcelona, definido pela expressão catalã que encabeça este texto, é mesmo mais do que um clube. Não querendo apropriar-me do sentido exacto da expressão, que encerra questões políticas e culturais bem mais fortes e que não são chamadas para o caso, considero este Barcelona bem mais do que uma equipa normal, no sentido em que funciona de forma totalmente diferente, com princípios bem próprios e uma mentalidade incrivelmente distinta. O prazer que extraio ao ver esta equipa jogar e todo o reconhecimento que agora lhe dão é uma espécie de vitória ideológica. Afinal, nenhuma equipa, na actualidade e não só, reflecte com maior exactidão aquilo que se defendeu desde sempre no Entre Dez como este Barcelona. Guardiola e o seu Barça são o rosto visível das ideias deste espaço e o seu sucesso será também o sucesso dessas ideias.