Dado que o futebol é um jogo de pontuações baixas (os resultados são geralmente definidos por poucos golos), é também um jogo em que os detalhes têm necessariamente um peso muito significativo. Esta circunstância faz com que seja também um jogo em que a qualidade geral de uma equipa não é suficiente para fazer a diferença perante equipas menos capazes, sobretudo em confronto directo. É por isso que o sucesso de uma equipa em competições de regularidade (como campeonatos nacionais) e o sucesso da mesma equipa em competições a eliminar (como taças nacionais ou internacionais) é por vezes tão distinto. Uma vez que os detalhes são tão importantes, o sucesso numa competição de regularidade será sempre uma pedra de toque mais fiável para aferir a verdadeira qualidade de uma equipa do que uma competição em que um pequeno deslize pode deixar por terra as melhores equipas ou um pequeno lance de sorte pode manter em prova as equipa menos capazes. O sucesso na Liga dos Campeões não é, portanto, sinónimo de competência. Se fosse, seria de esperar que uma equipa que chega a duas finais da Liga dos Campeões em 3 anos, superando algumas das melhores equipas europeias, tivesse mostrado nesses mesmos 3 anos o mesmo tipo de competência na competição interna que disputa. Nem Real Madrid nem Atlético de Madrid, no entanto, têm conseguido justificar internamente esse sucesso. Uma competição em que os jogos teoricamente mais fáceis valem tantos pontos como os jogos teoricamente mais difíceis, em que os jogos em que é preciso assumir a iniciativa valem tantos pontos como aqueles em que não o é, uma competição disputada ao longo de vários meses, durante a qual as equipas passam por diferentes momentos de forma e de confiança, tende a exigir das melhores equipas uma qualidade geral que lhes permita minimizar o peso dos detalhes. Claro está que uma equipa menos competente pode manter índices competitivos muito altos ao longo de uma época inteira, sobretudo se for encontrando motivação para isso, e assim disfarçar a falta de qualidade geral. Mas, de uma maneira geral, o sucesso numa competição de regularidade diz alguma coisa da qualidade geral da equipa que o obtém. E o sucesso continuado, ao longo de várias épocas, nessa mesma competição, mais ainda. É assim perfeitamente possível que equipas que ganham 2 Ligas dos Campeões em 3 anos (e equipas que chegam a 2 finais em 3 anos), não sejam propriamente boas equipas.
O caso paradigmático da discrepância entre o sucesso europeu e o sucesso interno que estou a tentar descrever é, a meu ver, o Liverpool de Rafa Benitez. Nas seis temporadas que passou em Inglaterra, o treinador espanhol não só nunca foi capaz de ser campeão nacional como só foi segundo por uma vez (em 2004/2005, ficou em 5º; em 2005/2006 e 2006/2007, ficou em 3º; em 2007/2008, ficou em 4º; em 2008/2009, ficou em 2º; e em 2009/2010, ficou em 7º). A banalidade destes resultados (em metade das épocas, pode-se mesmo falar de fracasso) contrasta em absoluto com a competência que a equipa foi mostrando na Liga dos Campeões, que ganhou por uma vez, precisamente num ano em que ficou em 5º no campeonato (em 2004/2005, ganha a final ao Milan; em 2005/2006, perde com o Benfica nos oitavos de final; em 2006/2007, perde na final com o Milan; em 2007/2008, perde nas meias-finais com o Chelsea; em 2008/2009, perde nos quartos de final com o Chelsea; e em 2009/2010, fica em terceiro na fase de grupos, atrás de Fiorentina e Lyon, indo depois até às meias-finais da Liga Europa, onde é eliminado pelo Atlético de Madrid). A discrepância é evidente, e explica-se pelo que disse acima: o Liverpool de Benitez foi sempre talhado para uma competição a eliminar, e aí foi sempre um adversário muito difícil de vencer, mesmo para as melhores equipas da Europa. No campeonato inglês, em que era preciso, na maioria dos jogos, assumir a iniciativa, ter a bola, penetrar em blocos defensivos densos, o Liverpool teve sempre muitas dificuldades em apresentar a regularidade que as melhores equipas apresentaram. Em 90 minutos, era um osso duro de roer; em 9 meses, era uma equipa banal. Benitez é claramente um treinador de equipas de segunda linha. Como tais equipas têm qualidade individual suficiente para disputarem 90 minutos com as melhores equipas, e como Benitez trabalha sobretudo os comportamentos defensivos dos seus jogadores, consegue formar equipas difíceis de superar em confronto directo. Em competições de regularidade, porém, só terá sucesso, como o teve em Valência, quando as melhores equipas fracassem clamorosamente (no Valência, foi campeão em 2001/2002, com apenas 75 pontos, num ano em que o Real Madrid ficou em 3º, com 66, e o Barça em 4º, com 64; em 2002/2003, ficou em 5º; e em 2003/2004, voltou a ser campeão, com apenas 77 pontos, num ano em que o Barça foi 2º, com 72, e o Real 4º, com 70). Nesses mesmos três anos, foi duas vezes eliminado nos quartos de final da competição europeia que disputava, ambas pelo Inter de Milão (em 2001/2002, na Taça Uefa, em 2002/2003, na Liga dos Campeões), e ganhou a Taça Uefa em 2003/2004.
Vejo em Diego Simeone um treinador muito parecido com Rafa Benitez. O seu Atlético de Madrid é exactamente aquilo que o Valência ou o Liverpool de Benitez foram, na década anterior: uma equipa de segunda linha, sobretudo vocacionada para não deixar jogar e para forçar o erro do adversário, e que se tornou ambiciosa a ponto de conseguir vencer qualquer adversário europeu em confronto directo. A competência europeia do Atlético contrasta, no entanto, com aquilo que a equipa vai fazendo dentro de portas. À excepção da época de 2013/2014, quando se sagrou campeão, o Atlético de Simeone não foi propriamente a equipa mais competitiva na Liga. E, mesmo nesse ano, aproveitou sobretudo uma má época dos dois principais candidatos ao título. Desde que Guardiola chegou à Catalunha, em 2008/2009, que dificilmente 90 pontos chegam para ser campeão espanhol. Guardiola foi campeão na primeira época com 87 pontos, mas nas últimas 4 jornadas (já com o título garantido) fez apenas 2 pontos. Com a pressão de ter de ganhar, é pouco credível que terminasse a Liga com menos de 95 pontos. Ao elevar o nível competitivo desta maneira, Guardiola fez com que os campeões, em Espanha, tivessem de fazer cada vez mais pontos. Nos 4 anos seguintes, não houve um campeão com menos de 96 pontos. No quinto ano, no ano em que Barça e Real fraquejaram, bastaram 90 pontos para o Atlético de Madrid se sagrar campeão. Não obstante ser uma pontuação óptima para uma equipa como o Atlético, é indissociável da pontuação inferior dos rivais. Se Barcelona e Real Madrid tivessem estado a um nível semelhante ao das épocas anteriores, ou ao nível em que voltaram a estar nas duas últimas épocas, e se assim estivessem estado desde o início da temporada, o Atlético de Madrid dificilmente teria mantido a motivação em que sustentou, semana após semana, a acumulação dos seus pontos. O mesmo se passou, de resto, esta época, em que o Atlético somou 88 pontos. A equipa manteve a ilusão do segundo lugar sobretudo porque o Real de Benitez assim o permitiu, e isso fez com que fossem acumulando vitórias, a maioria das quais pela margem mínima. Mais tarde, quando o campeonato parecia resolvido, o próprio Barcelona facilitou, perdeu uma vantagem de 9 pontos, e permitiu ao Atlético juntar à ilusão do segundo lugar a ilusão do título. Entre 2013/2014, quando foi campeão, e 2015/2016, o Atlético voltou a fazer um campeonato consentâneo com a sua real qualidade: 3º lugar com 78 pontos, a 1 ponto apenas do Valência e a 2 do Sevilha (ficou, de resto, a 14 pontos do Real Madrid e a 16 do Barcelona). Esse terceiro lugar (mais próximo das equipas que lutam pela ida à Europa do que propriamente das equipas que lutam pelo campeonato) espelha muito mais fielmente aquilo que a equipa vale, numa competição de regularidade, do que o título conquistado em 2013/2014 ou mesmo do que o terceiro lugar desta época. Na segunda época de Simeone (a primeira completa), em 2012/2013, o campeonato do Atlético de Madrid não foi, aliás, muito diferente: 3º lugar com 76 pontos, a 9 do Real Madrid e a 24 do Barcelona. É isto, a meu ver, que esta equipa tende a fazer internamente (salvo em circunstâncias atípicas), como era isto que fazia internamente o Liverpool de Benitez. Na Europa, porém, a história é outra. Logo em 2011/2012, quando sucedeu a Gregorio Manzano a meio da época, Simeone ganhou a Liga Europa. Em 2012/2013, foi eliminado da mesma Liga Europa nos 1/16 de final, pelo Rubin Kazan. Em 2013/2014 e em 2015/2016, perdeu a final da Liga dos Campeões, e em 2014/2015 foi eliminada pelo Real Madrid nos quartos de final da mesma prova.
Tal como acontecia com o Liverpool de Benitez, a discrepância entre o que o Atlético de Madrid de Simeone consegue fazer em provas a eliminar e aquilo que tende a fazer numa prova de regularidade é evidente. Sendo uma equipa vocacionada para não deixar jogar, o Atlético de Simeone tem tanta facilidade em equilibrar os jogos contra equipas mais poderosas quanto tem dificuldade em vencer jogos em que tem de assumir a iniciativa do jogo, em que tem de arranjar forma de desorganizar adversários que não querem assumir essa iniciativa: a sua principal força é também a sua principal fragilidade. É por isso que o Atlético de Madrid (como o Valência ou o Liverpool para Benitez) é o clube ideal para Simeone. Num clube de menores ambições e menor orçamento, não teria qualidade individual suficiente para apresentar uma equipa temível nos confrontos directos; e, numa equipa maior, teria de apresentar resultados em provas de regularidade que dificilmente conseguirá apresentar baseando o futebol da sua equipa unicamente no pressing, na concentração defensiva e na forma como procura o erro do adversário. A própria motivação dos jogadores, numa equipa com outras ambições, não seria tão fácil de conseguir. Uma coisa é treinar uma equipa como o Atlético de Madrid, que não tem obrigatoriamente de ficar à frente de Barcelona e Real Madrid, e convencer os seus atletas de que, para conquistarem o que os melhores costumam conquistar e equilibrarem a contenda contra adversários de maior nomeada, devem sobretudo fazer das tripas coração para que tais adversários não explanem o futebol que os distingue; outra coisa muito diferente é treinar um clube que tem necessariamente de ser campeão, e convencer jogadores que se consideram tão bons ou melhores do que os jogadores dos principais rivais de que devem aceitar o papel de equipa inferior, abdicar da iniciativa e desenvolver sobretudo as competências defensivas. José Mourinho, cuja liderança era amplamente elogiada, falhou em Madrid precisamente porque escolheu tentar convencer os seus jogadores de que, para vencerem o Barcelona de Guardiola, precisavam de deixar de ser jogadores de futebol. Numa equipa parecida com o Atlético, que não ganhe nada há muito tempo e cujos adeptos não tenham expectativas muito elevadas (no Inter de Milão, que já disse que gostaria de treinar), Simeone pode repetir o sucesso que tem tido em Madrid. Numa equipa com mais ambições, num grande europeu, por exemplo, dificilmente conseguirá fazer sequer parecido. É exactamente por ter tido a oportunidade de treinar clubes que lutam pelo título nos seus respectivos países (Inter de Milão, Chelsea e Real Madrid) que quase ninguém reconhece hoje a Benitez a extraordinária competência que, há dez anos, poucos lhe recusavam. A incapacidade que demonstrou sobretudo nesses clubes tornou evidente que não é um treinador de equipa grande, que o sucesso que obteve principalmente no Valência e no Liverpool era afinal indissociável do tipo de equipa que comandou e do tipo de competições em que esse sucesso se verificou. Diego Simeone não é diferente, e diria mesmo que, no dia em que sair de Madrid, não será difícil ao Atlético escolher o seu sucessor: se a ideia para o clube se mantiver inalterada, não há treinador com perfil mais adequado do que Rafa Benitez.
A final da Liga dos Campeões foi, como seria de esperar, um jogo horrível. E o Atlético voltou a ser derrotado pelo velho rival. As pessoas que acham que o desfecho foi injusto devem, no entanto, ter em conta que a mesma equipa que teve o azar de perder a final nas grandes penalidades foi a mesma que teve a sorte de passar os oitavos de final após as grandes penalidades, frente a uma equipa claramente inferior, o PSV, à qual não conseguiu marcar um único golo em 180 minutos. As pessoas que, além disso, acham que o desfecho injusto teria sido outro, se o golo de Sérgio Ramos tivesse sido anulado, como devia, devem, no entanto, ter em conta que a mesma equipa que assim foi prejudicada foi a mesma equipa à qual, nos quartos de final, foi perdoada uma grande penalidade claríssima, já no período dos descontos, que, se transformada em golo, adiaria a decisão da eliminatória para o prolongamento (e a mesma equipa a quem foi concedida uma grande penalidade inacreditável, nas meias-finais, que poderia ter fechado a eliminatória mais cedo, se tivesse sido convertida). Uma equipa que depende quase exclusivamente do peso dos detalhes e das circunstâncias extrínsecas ao jogo (sorte, árbitros, etc.) para ter sucesso não pode queixar-se dos detalhes ou das circunstâncias extrínsecas. Foram esses detalhes e essas circunstâncias que lhes valeram no passado. O futebol do Atlético de Madrid é o mais parecido que há com a roleta: está sempre tão perto de perder com um adversário quando é favorito (podia bem ter caído nos oitavos de final, aos pés de uma equipa muito mais fraca) como está perto de vencer qualquer um dos principais favoritos à vitória na Liga dos Campeões. E há qualquer coisa de profundamente irracional em lamentar que a bola caia num número preto, quando se apostou no vermelho. Lamentar a sorte, num jogo de sorte, é como lamentar ter nascido português ou que faça chuva amanhã. Acontece. Tal como, há uns meses, aconteceu ao Atlético ter passado os oitavos de final, aconteceu agora ao Atlético perder outra final. Às vezes a bola cai duas vezes seguidas no preto. Acontece.
P.S. Uma das coisas que mais repudio num treinador é não aproveitar o talento que tem ao seu dispor. Diego Simeone tinha no plantel, este ano, um dos médios mais promissores do futebol espanhol. A sua ideia de jogo, porém, é incompatível com médios talentosos. Ou melhor, é incompatível com médios talentosos que têm dificuldades em abdicar daquilo que os define (a inteligência, a criatividade, etc.) para serem sobretudo os jogadores abnegados que o técnico argentino exige que sejam. Oliver Torres é da geração de Saúl Ñinguez.
Falei dos dois assim que os vi, ainda jovens. Embora tenha reconhecido talento a Saúl Ñinguez (como o reconheci, por exemplo, a Campaña, ou a Suso, ou a Grimaldo), reconheci de imediato uma diferença enorme entre o talento dele e o de Oliver Torres, o melhor da sua geração, a par de Dénis Suarez (ao contrário de Oliver, este teve a sorte de ter um treinador que aposta no talento, e está a caminho de Barcelona). A verdade é que Saúl, cujo talento é inegável, tem coisas que Simeone aprecia, e foi ele que despontou esta época, não Oliver. É pena que assim seja. E é pena que haja tanta gente a aplaudir o que Simeone tem feito, e não lamente o esquecimento a que foi votado o melhor jogador do seu plantel.