Uma das coisas engraçadas de um ser humano adulto, saudável e que vive em sociedade é o ter com quem falar acerca do que bem lhe apetecer. Acho muito bem que o possa fazer. É pena, porém, que seres humanos adultos, saudáveis e que vivem em sociedade não tenham por hábito falar em São Tomás de Aquino, ou discutir entre si os pressupostos teóricos da Teoria da Relatividade. É verdade que não o fazem ou por não saberem nada do assunto, ou porque, mesmo que calhem a sabê-lo, dificilmente estarão constantemente rodeados de quem também o saiba. Como acham, contudo, que devem conversar sobre alguma coisa, decidem escolher assuntos sobre os quais toda a gente acha que sabe alguma coisa. E, ainda que de Filosofia ou de Física Teórica poucos saibam falar, muitos são os assuntos que, normalmente, se consideram acessíveis a toda a gente. De música, de política e, claro está, de futebol, todos acham que sabem qualquer coisa. Dirá quem assim pensa que é natural que assim seja. Música, política e futebol são coisas simples, para as quais basta ter vista (ou audição, no caso da música). São assuntos que não exigem reflexões profundas, que não exigem conhecimentos abstractos, sobre os quais somos bombardeados todos os dias, e sobre os quais, mesmo que inconscientemente, formamos opiniões. Devo dizer que, obviamente, não concordo com isto. O pressuposto errado é o de que há assuntos cujo conhecimento requer esforços intelectuais profundos e assuntos cujo conhecimento é imediato. E a ideia de que se possa conhecer empiricamente o que quer que seja é suficientemente absurda para que não mereça reprovação.
Para dizer a verdade, conheço tanta gente que sabe falar de São Tomás de Aquino quanta a que sabe falar de futebol. Não significa isto que conheça muita gente que saiba falar de São Tomás; pelo contrário, conheço é poucas que saibam falar de futebol. A principal diferença é que, embora o número dos que sabem falar de uma coisa e de outra seja sensivelmente o mesmo, o número dos que não sabem falar de futebol mas que, ainda assim, insistem em fazê-lo é bem maior do que o número dos que não sabem falar de São Tomás mas falam. Como referi acima, assim é porque se julga que futebol, ao contrário de São Tomás, é coisa de que se pode saber empiricamente. Como nos conta Platão, dos idiotas que, por saberem uns truques de retórica, julgavam que podiam falar de todos os assuntos melhor até do que os especialistas em tais assuntos, tratou exemplarmente Sócrates quando se encontrou com Górgias. Tipicamente, pessoas como Górgias não sabem nada de nada, não têm qualquer arte; mas, como falam, por exemplo, de medicina para plateias de não-médicos, podem persuadir essa plateia. Para Sócrates, tais pessoas eram nocivas à cidade, e aquilo que faziam, disseminar opiniões, era uma das actividades menos nobres que conhecia. A prática da lisonja, se aplicada aos Górgias que falam hoje sobre futebol, encontraria extraordinária manifestação no blogue
442. Aqui fala-se de futebol como as massas gostam que se fale; é-se clubista, fala-se de escândalos e de controvérsias públicas, dizem-se banalidades e contam-se mentiras acerca de tudo e mais alguma coisa. Tal como Sócrates, acho que pessoas como as que por lá falam fazem mais mal do que bem. Os disparates que dizem e a lisonja que praticam são consequência da sociedade livre em que habitam. Mas a liberdade de que gozam não os isenta de serem estúpidos. Tal estupidez reside (e para isso serviu o primeiro parágrafo) em acharem que percebem de futebol só porque têm olhos e já viram muitos jogos. Aliás, também falam de música, de vez em quando. Acontece, todavia, que perceber de futebol não depende nem do tempo que se despende a ver futebol nem da capacidade de visão de ninguém; depende, sim, de saber pensar, como aliás depende qualquer tipo de conhecimento, a respeito de qualquer outra coisa. O que estou a afirmar, para quem ainda não percebeu, é que os palermas do 442, que a dada altura da vida terão percebido que eram demasiado estúpidos para que pudessem falar de assuntos mais complexos e acharam que se deviam dedicar a assuntos mais simples, não percebem que o assunto de que tratam é tão complexo como aqueles dos quais, por serem estúpidos, decidiram não falar. Perceber de futebol, perceber a sério de futebol, é tão complicado como perceber de Filosofia ou de Física Teórica. E todos aqueles que acham o contrário (e são muitos), como reconhecem que são demasiado estúpidos para falar de coisas complicadas, mas conservam, ainda assim, o desejo de dar à língua, devotam-se a falar de assuntos sobre os quais, no entender deles, é fácil ter opiniões. Tal como, para Sócrates, a sociedade seria melhor se as pessoas passassem mais tempo caladas, o debate sobre futebol seria bem melhor se não existisse.
Vem isto a propósito de uma recente opinião do Master Kodro no seu clube de sofistas da bola, a respeito do jogo que opôs o Barcelona ao Benfica. Diz o seguinte este Górgias de meia-tigela, acerca daquilo a que decidiu chamar
"a pureza do sistema":
"o Barcelona, na primeira parte, foi
um buraco defensivo. Parece que não é preciso esperar para ver o que
será o trabalho de Guardiola noutro lado. Ontem, com muitos outros
nomes, já se conseguiu perceber onde é que começa e acaba o peso do
sistema e o dos nomes que brilhantemente o interpretam."
Implícita no comentário está a ideia, aliás bem consensual, de que o trabalho de Guardiola dependeu praticamente apenas dos jogadores que interpretavam o seu modelo. Como é sabido, discordo inteiramente disto. E confesso que, pelo contrário, se houve coisa que ficou bem visível no jogo de quarta-feira foi que o modelo catalão tem tanta força que sobrevive à ausência dos seus melhores intérpretes. O nosso Górgias acha que um jogo serve de exemplo para alguma coisa; acha que problemas defensivos, ainda por cima apenas manifestos na primeira parte, permitem fazer inferências gerais; e acha ainda que o trabalho de Guardiola, que já não tem nada a ver com este Barcelona, tem a ver com o que se passou na quarta-feira. Se isto não são três ideias das mais estúpidas que se podem ter, não sei o que serão. Disse-se, acerca do jogo, que o Benfica dispôs de oportunidades suficientes para ganhar o jogo, que o Benfica foi superior ao Barcelona, e que o Barcelona, sem as suas principais pedras, foi uma equipa banal. O que posso dizer disto é que é uma idiotice pegada. Não sei que jogo viram estas pessoas, mas sendo verdade que o Benfica podia ter ganho (houve até quem dissesse que podia ter goleado), não é menos verdade que o Barcelona também o podia (aliás, o Barça teve mais oportunidades claras do que o Benfica). Na segunda parte, o Benfica não existiu. E, mesmo na primeira, as oportunidades que conseguiu criar foram mais a partir de erros catalães do que propriamente depois de jogadas desenhadas com critério. O Barcelona, com dez suplentes em campo e um que costuma ser titular mais vezes do que os outros (David Villa) a fazer um frete, com metade da equipa a rondar os 20 anos, a jogar a feijões, contra uma equipa que pressionou alto, teve 72% de posse de bola (e não foi só na sua defesa, como o disse Jorge Jesus), criou variadíssimas ocasiões, e, não obstante alguns erros defensivos, quase sempre erros individuais (de Montoya e de Adriano, a maioria das vezes), controlou amplamente a partida. Mas, ainda assim, há quem ache que o jogo tornou evidente que o sistema não tem nada a ver com o sucesso de Guardiola. Perdoe-se-lhes a estupidez.
Quanto ao que diz o nosso Górgias, é razoável que se lhe conceda que os suplentes do Barcelona não façam um Barcelona tão forte quanto o fariam os titulares. Mas também não sei em que equipa do mundo é que tal acontece. O que sei é que, mesmo com os suplentes, mesmo com uma base de miúdos, mesmo contra uma das 20 melhores equipas da Europa, o Barcelona impôs o seu estilo. Sim, teve alguns erros defensivos, é verdade. Mas, talvez o Górgias não tenha visto os jogos do Barcelona esta época, erros defensivos (sobretudo quando Piqué e Puyol não são a dupla de centrais) têm sido coisas que têm acontecido muito. Achar que permitir 4 ou 5 oportunidades a um adversário tornam evidente que um modelo de jogo não presta, quando o mesmo modelo lhes permitiu 72% de posse de bola contra uma equipa que pressionou alto (não foi o Celtic, enfiado na toca), ou seja, uma posse de bola sempre dentro do bloco do adversário e não à volta, é francamente estúpido. É evidente que, com estes jogadores, o modelo não é tão forte. Mas isso não invalida que, por si só, o modelo não tenha virtudes que nenhum outro tem. Também concordo com o Górgias: não é preciso esperar pelo próximo trabalho de Guardiola. Mas, ao contrário dele, não acho que seja preciso esperar por tal coisa não porque o jogo desta semana tenha evidenciado alguma coisa, mas porque não preciso de ver outra equipa a jogar à Barcelona para perceber que o que Guardiola fez não foi simplesmente adequar um conjunto de jogadores ao modelo que melhor os servia. Os estúpidos precisam invariavelmente de ver coisas e de verificar hipóteses. E mesmo os estúpidos que dizem que já não precisam de verificar nada dizem-no depois de terem verificado alguma coisa (ou julgam que verificaram). Também assim se distingue quem deveria estar calado.
Antes de terminar, 2 reflexões:
1) Pedro Henriques passou o jogo a dizer que aquele Benfica era mais forte do que aquele Barcelona. O Pedro Henriques, para além de estúpido, também é um bocado Górgias. Há 2 coisas a dizer sobre isto. A primeira é que, ao contrário do que Pedro Henriques pensa, o valor de uma equipa não é simplesmente a soma do valor absoluto de um jogador. Mas também não vou argumentar contra alguém que passou o jogo a dizer que era preciso marcar individualmente no meio-campo, pois o Barcelona tinha superioridade numérica nessa zona. As jaimepachequices não merecem esforços deste tipo. A segunda coisa é que, aceitando ainda assim o argumento de Pedro Henriques de que o valor de uma equipa depende da soma do valor das suas unidades, não é claro que aquele Benfica fosse assim tão superior àquele Barcelona. Disse o antigo defesa-esquerdo de segunda categoria, entretanto promovido a comentador e a macaquinho amestrado, que o único jogador do onze catalão que encaixava no onze benfiquista era David Villa. Será que ele viu Puyol em campo? E Song? E Thiago Alcântara? Será que Melgarejo é melhor do que Planas? E não era o Benfica que andava atrás do Tello? Se calhar ficava por aqui. Não, não fico. O André Gomes até tem qualidade, mas dizer que o Thiago Alcântara, o Rafael Alcântara, e sobretudo o Sergi Roberto não jogavam no seu lugar é no mínimo falta de medicamentos. Pelo contrário, eu é que vejo muito poucos jogadores do Benfica que pudessem tirar o lugar aos que jogaram na quarta-feira pelo Barcelona: Artur, Garay e Nolito seriam os únicos.
2) Há quem critique Rodrigo por não ter passado a bola a Nolito, na primeira grande ocasião do jogo. Gosto muito de gente que gosta de certos jogadores, mas que depois os critica por fazerem aquilo que sempre fizeram, ou seja, tomar más decisões. Se gostam de um tipo que é rápido e tem um bom pé esquerdo, e se o preferem ver em campo a alguém como Saviola, que não parecia fazer a diferença em termos individuais, não podem gostar apenas das coisas boas que ele tem. Têm de gostar de tudo. O Rodrigo sempre foi isto e nunca será outra coisa. Se dão tanta importância aos seus atributos técnicos e físicos, não podem ser incoerentes ao ponto de lhe criticarem aquilo em que nunca foi bom. Se gostam de ananás, não podem criticar um vendedor de ananás por não vender alperces no dia em que há apetite por alperces. Eu, que nunca gostei dele, estou à vontade para dizer mal do rapaz. É um jogador banalíssimo, que tem apenas uma característica interessante: as diagonais nas costas da defesa a solicitar o último passe. Tirando isso (o que dá para aí 99% do jogo), Rodrigo é banal. As suas decisões raramente são boas, e nunca jogaria numa equipa como eu entendo que uma equipa deve ser. O pai de Rodrigo veio defender o filho, tentando isentá-lo com uma frase maravilhosa, dizendo que ele não vira Nolito. Se não fizesse parte de um jogador de futebol ver os colegas, sobretudo em lances como este, tal frase podia ser uma boa desculpa. Como faz, não é desculpa nenhuma; é estupidez. Prova que o pai de Rodrigo não sabe que jogo o filho joga. Tal como o filho, de resto.