quinta-feira, 21 de abril de 2011

A Moral da Derrota

Após o Barcelona ter consolidado a vantagem no campeonato, arrumando porventura a discussão do mesmo, eis que Mourinho, num golpe de asa, arrebata a Taça do Rei. Apesar de ser o terceiro troféu mais importante, é aceitável que, neste momento, antes do duelo decisivo da Liga dos Campeões, Barça e Real se encontram empatados em conquistas. O jogo de ontem foi diferente do jogo do campeonato, em que o Barcelona foi claramente superior em todos os aspectos. Na final da Taça do Rei, o Real optou por pressionar mais alto e, não obstante a utilização quase criminosa de Pepe nas costas de Ronaldo, conseguiu condicionar, durante praticamente toda a primeira parte, o futebol de posse dos catalães. Neste particular, duas notas importantes. Havendo natural mérito na forma como o Real pressionou, a forma agressiva como o fez voltou a ser exagerada (Xabi Alonso, Arbeloa, Khedira e Pepe, pelo menos, fizeram o suficiente para serem expulsos). Além disso, desgastaram-se de tal modo que, na segunda parte, previsivelmente sofreriam as consequências. Se é verdade que a primeira parte correu de feição ao Real e a estratégia de Mourinho parecia ter sido em cheio, faltando apenas o golo, não é menos verdade que as consequências de tal estratégia poderiam ter sido muito danosas.

Assentou a estratégia do Real em condicionar o jogo do Barça através de uma pressão homem a homem intensíssima, procurando roubar a bola em zonas altas e, através de uma transição rápida, criar ocasiões de golo. O Real criou, desta maneira, 3 ou 4 situações interessantes, embora uma apenas clara. O problema é que isto só foi possível, primeiro, às custas de um desgaste que traria implicações para o segundo tempo e, segundo, porque o Barcelona não foi tão forte como é hábito a escapar à pressão alta dos seus adversários. É de registar, aqui, a presença de Mascherano a central e, mais importante, a ausência de Valdez, fundamental na forma como a equipa sai a jogar quando os seus centrais são pressionados. Agora, o que é importante perceber é que, apesar de o Real ter criado tantas oportunidades quantas aquelas que o Barcelona criou na segunda parte, apesar de se poder dizer que, em termos de oportunidades, as equipas dividiram o jogo, estando o Real por cima no primeiro tempo e o Barcelona no segundo, não é lícito concluir que o jogo foi repartido. Isto porque não joga melhor quem cria mais oportunidades de golo. A relação causal entre qualidade de jogo e quantidade de oportunidades de golo é uma das falácias preferidas dos dias que correm. O contra-argumento fácil de fazer é o seguinte: cada oportunidade de golo do Barcelona vale três ou quatro do adversário, independentemente do perigo que causam.

A última afirmação é controversa, mas verdadeira. A razão para o ser advém do facto de as oportunidades criadas por um estilo de jogo de transição serem quase todas em esforço, dependerem da espontaneidade, dos reflexos e - por que não? - da sorte do jogador. Ronaldo teve dois lances, na primeira parte, em que poderia ter marcado. Mas em ambos o gesto é dificílimo. A probabilidade de êxito, em qualquer uma das oportunidades de golo, é por isso muito reduzida. Tirando o lance de Pepe, as oportunidades de golo do Real foram todas lances de pouca probabilidade de êxito. Na segunda parte, o Barcelona teve ocasiões soberanas de golo, e na sua grande maioria foram ocasiões em que os jogadores tinham maiores condições de êxito. Pinto não fez nenhuma defesa incrível; Casillas fez três, pelo menos. Tem isto a ver com o tipo de futebol praticado pelas duas equipas. O Barcelona cultiva um jogo de posse que pretende não apenas ter a bola, mas usá-la para criar as melhores condições possíveis de finalização. O Real cultiva o estilo contrário. Esta diferença, no entanto, não é apenas estílistica. Tem consequências relevantes. Do facto de os dois estilos, tão diferentes entre si, conseguirem produzir situações de golo em quantidade idêntica não se segue que consigam produzir condições de finalização idênticas. Foi por esta simples razão que o Barcelona foi muito superior, uma vez mais, ao Real Madrid; é que, na verdade, criou muito melhores condições para sair vitorioso desta final.

O desfecho da partida foi favorável ao Real Madrid, mas mais uma vez Mourinho foi incapaz de derrotar os catalães nos noventa minutos (aliás, a vitória no prolongamento é praticamente o mesmo que a vitória nos penalties e, mais importante, será perceber que o empate foi tudo o que o Real conseguiu). Todos saúdam o técnico português e a estratégia montada, agora que conseguiu ganhar um troféu. Mas esquecem-se do que é verdadeiramente importante. Mourinho ganhou, mas as probabilidades de êxito mantiveram-se inalteráveis. Ganhou um jogo porque nem sempre o melhor ganha, porque nem sempre quem tem mais probabilidade de ganhar o consegue. O Barcelona manteve-se fiel a si mesmo, manteve a bitola elevada e manteve a convicção de que mais vale criar poucas oportunidades, desde que boas, do que muitas oportunidades em condições de finalização deficientes. Não fez o seu melhor jogo e teve até uma primeira parte pouco conseguida, mas manteve a sua identidade e manteve-se, por isso, dependente de si próprio. O Real de Mourinho utilizou uma estratégia reactiva, muito bem mecanizada, com os jogadores muito concentrados e compenetrados, colectivamente bem organizados. Tudo isto é verdade. Mas a estratégia utilizada, apesar de tudo aquilo que possibilita, continua dependente de muitas coisas, da desinspiração do adversário, da leviandade da arbitragem, do aproveitamento do pouco que se cria, da sujeição ao desgaste da segunda parte, etc.. E bastaria ao Barcelona, perante esta estratégia, ter optado na primeira parte por uma circulação menos assertiva da bola, uma circulação mais segura, menos vertical, procurando menos vezes entrar nas linhas do adversário, uma circulação que visasse pôr os adversários a correr atrás da bola, para provocar na equipa do Real o mesmo desgaste que sofreram, mas em segurança, sem arriscar perdas comprometedoras. O campeonato, a prova mais justa para aferir a verdadeira qualidade das equipas, demonstrou já que a diferença entre os dois conjuntos é assinalável. Vencer uma prova a eliminar é uma casualidade que, por o futebol ser o desporto que é, pode sempre ter lugar. A probabilidade de vitória, porém, continua a pender para os catalães, porque o futebol que praticam está menos dependente de circunstâncias alheias a si mesmo.

Diz-se normalmente que vitórias morais não servem de nada. Discordo totalmente disto. A moralidade está em perceber que, apesar de não se vencer um determinado jogo ou um determinado troféu, a probabilidade de tal vitória se manteve intacta. E isto só é possível se se mantiver o estilo de sempre. Quando Cruyff atacou Mourinho por não ser um treinador de futebol, mas um treinador de títulos, deveria ter explicado que tal não era apenas por questões estéticas. É verdade que Mourinho é, de facto, o melhor a adaptar a sua equipa às necessidades da circunstância e nenhuma outra equipa é capaz de sacrificar tanto da sua identidade sem prejuízo quanto a dele. Mas o preço a pagar por isso é a incapacidade de competir numa prova de regularidade com uma equipa que não o faça. O Barcelona não se vende pelas circunstâncias. Talvez com isso se sujeite a perder um ou outro troféu, face àquilo que o futebol é, mas estará sempre mais perto de ganhá-los do que os seus adversários. Em competições que dependem menos de jogos circunstanciais, como seja um campeonato nacional, isso é por demais evidente. E tal como antevi, há tempos, Mourinho modificou a sua mentalidade para vencer mais provas a eliminar, perdendo com isso capacidade de competir em provas de regularidade. O Real Madrid goza hoje a conquista de um troféu e, finalmente, uma conquista sobre o Barcelona de Guardiola. Mas não está mais próximo da competência dos catalães do que estava no início da época. Pode ter ganho uma taça, mas continua a ter menos probabilidades de ganhá-las.

P.S. É no mínimo irónico que uma taça que tenho sido ganho ao atropelo tenha sido, ela própria, atropelada. Os deuses têm, de facto, um sentido de humor de louvar.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Dois Defesas Australopitecos

São dois os casos, dois os jogos, dois os exemplos. O primeiro, na passada quarta-feira, no jogo que opôs o Shalke 04 ao Inter de Milão. A referência é ao primeiro golo e o ponto é sustentar a ideia antiga, já aqui expressa noutras ocasiões, de que Lúcio, apesar de um defesa muito agressivo e até rápido para a envergadura física que possui, é forte para jogar num bloco baixo, mas não tem condições nenhumas para fazer parte de uma defesa que pretenda jogar mais subida. É que, quando tem de ocupar bem os espaços, quando tem de fazer uso do cérebro e não dos músculos, Lúcio é francamente mau. O exemplo é o golo de Raúl. Já vi o lance várias vezes e ainda não consegui perceber o que se terá passado na cabeça de Lúcio. Jurado conduz a bola e Lúcio só tem que preencher a zona central. Maicon até vem a fechar por dentro e, como tal, não há qualquer possibilidade de a bola entrar por aquele lado. Mas Lúcio, talvez imaginando que Raúl se iria desmarcar por ali, flectiu para a direita e deixou o centro da defesa aberto. Raúl só teve depois que procurar aquele espaço e receber o passe fácil do compatriota. Mais uma vez, fica evidente que Lúcio, quando tem que decidir rápido, quando tem que reajustar o seu posicionamento às incidências de cada lance, falha rotundamente. A este nível, um falhanço deste tipo é patético. Quando não é para ir à bola e para atropelar adversários, Lúcio é demasiado fraco para que possa estar entre a elite dos centrais europeus. Talvez seja bom para salivar atrás de javalis, ou como macho dominante de um grupo de ursos, mas para jogar futebol faltam-lhe algumas capacidades perceptivas fundamentais.

O segundo caso diz respeito ao clássico espanhol, no fim-de-semana, e à exibição de Pepe. Gostava de ter uma compilação dos lances de Pepe, para melhor ilustrar a minha opiniao, mas não tenho. Por isso, fico-me pelas palavras. Há quem jure que Pepe fez um jogo enorme. Enorme, enorme, só o disparate. Em primeiro lugar, Mourinho preparou a exibição de Pepe antes do jogo, quando alertou para o facto de o Real não conseguir acabar o jogo com onze jogadores. Aliás, viu-se bem, após quinze ou vinte minutos de jogo, qual fora a intenção dessas declarações. Visavam condicionar o árbitro e permitir aos jogadores do Real entrar sistematicamente duro. O mais duro de todos, e aquele que manteve a dureza excessiva ao longo dos 90 minutos, foi Pepe. Para mim, que ainda há dias escrevi coisas sobre árbitros, este clássico espanhol representou bem o tipo de injustiças que esta modalidade preconiza. Como é que é possível que Piqué e Xavi vejam amarelos por esbracejar ou dizer coisas, e Pepe passe o jogo impune? Sem qualquer espécie de exagero, Pepe fez o suficiente para ser expulso, no mínimo dos mínimos, cinco vezes, tantas foram as entradas fora de tempo. Talvez não tenha feito uma entrada merecedora de vermelho, mas fez pelo menos dez merecedoras de amarelo. E nem pela repetição de faltas viu o cartão. O seu jogo consistiu basicamente em atropelar jogadores do Barcelona, em correr feito maluquinho direito ao portador da bola, em andar à rabia e a tentar intimidar os adversários sempre que podia. E só não andou de liana em liana porque não havia lianas. Quando um jogador se destaca essencialmente pelo temor que tenta provocar nos outros, muita coisa está mal. Há quem garanta, ainda assim, que foi o melhor jogador em campo. Sinceramente, achava que um critério necessário para se eleger o melhor jogador em campo fosse ser jogador. Pepe talvez tenha sido o melhor animal em campo. Como jogador, fez uma exibição horrível, correu excessivamente e sem nexo, andou feito barata-tonta atrás de tudo o que mexesse, e arriscou entradas duras vezes sem conta e sem qualquer necessidade. Após o jogo, Mourinho reforçou a ideia de não ser possível acabar um jogo contra o Barcelona com onze em campo, mas devia ter acabado com nove. E devia ter ficado sem Pepe, aliás, logo na primeira parte. Aquilo que me parece recomendável, portanto, para quem deseja terminar o jogo com onze mas queira, ainda assim, colocar animais ferozes em campo, é açaimá-los o melhor possível. Útil seria também que não houvesse idiotas a elogiar uma exibição que consistiu em tentar fazer o perfeito oposto de jogar futebol. É que ajudava muito que os homens das cavernas sentissem que passar por cima de colegas de profissão não é jogar futebol.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Um Argumento Político Contra a Arbitragem Portuguesa

É costume a contestação a uma qualquer arbitragem sustentar os seus argumentos nos lances capitais do jogo, em lances de golos anulados, de penálties mal marcados, de ordens de expulsão mal dadas, etc.. Já aqui foi defendido que a avaliação de uma arbitragem não pode, nem deve, conceder maior importância aos lances capitais. A razão é simples: são lances como outros quaisquer e os árbitros estão sujeitos a errá-los como erram outros quaisquer. Nenhum árbitro, por o lance se estar a disputar junto a uma das balizas ou por ter maior importância para o desfecho do jogo, adquire uma competência ou certa capacidade de concentração que não tem ao analisar outros lances. Os árbitros erram, e erram tanto no meio-campo quanto nas áreas. Nenhum árbitro abre mais os olhos ou activa a sua capacidade de concentração só por sentir que o lance merece maior atenção. Por isso, não faz sentido exigir que os erros mais decisivos sejam mais penalizadores que os restantes. Um árbitro que cometa um único erro durante os 90 minutos, e esse erro seja assinalar uma grande penalidade em que, descaradamente, o avançado tenha simulado a falta, faz uma exibição óptima. Em sentido contrário, um árbitro que não comprometa em lances capitais, mas que erre sistematicamente em lances de meio-campo, faz uma exibição miserável. E isto apenas no capítulo técnico.

Serviu este preâmbulo para introduzir uma conversa sobre árbitros que me interessa hoje ter. Sobre, por exemplo, o Benfica-Porto da semana passada, falou-se demasiado na arbitragem de Duarte Gomes. Sim, o penalty contra o Porto é mal marcado. A expulsão de Otamendi resulta de um erro no primeiro cartão amarelo, sim. Também há um lance em que Falcao se isola após cortar com a mão um alívio de Sidnei. Também haverá outros lances relevantes em que Duarte Gomes tenha errado. Nada disso pode servir de argumento para justificar uma arbitragem tendenciosa. Pessoalmente, acho Duarte Gomes um dos melhores árbitros portugueses. Infelizmente, não me pareceu nada tranquilo e acho que fez uma má arbitragem no passado fim-de-semana, mas não por esses lances que tanto têm discutido. Na minha opinião, o lance em que Duarte Gomes mostrou mais essa intranquilidade e que melhor espelha a falta de qualidade da sua arbitragem aconteceu logo nos minutos iniciais. Após uma tentativa de desarme perfeitamente normal de Otamendi, em que apesar do derrube involuntário do jogador do Benfica, não houve intenção nenhuma além de tentar acertar no esférico, a bola seguiu para Aimar e o Benfica poderia desenvolver um contra-ataque perigoso. Duarte Gomes decidiu parar o lance para chamar à atenção o defesa do Porto, o que deixou enervado Aimar, muito compreensivelmente. Ora, se nem quando é para mostrar amarelo se deve parar um lance em benefício do infractor, mais ridículo é pará-lo apenas para apelar à calma, ainda por cima num lance em que Otamendi não tem outra intenção além de jogar a bola. Aimar contestou a decisão e viu ele o amarelo. E aqui se espalhou ao comprido Duarte Gomes. É sobre isto, e sobre as consequências disto, que quero falar.

É quase unânime dizer-se que os jogadores estão lá para jogar e não para protestar, que todo aquele que protesta merece o amarelo, que os árbitros são soberanos e as suas decisões não devem ser contestadas. Sinceramente, acho que esta unanimidade é das coisas que, em futebol, melhor reflecte o que sociologicamente o povo português é. Não sou admirador das arbitragens inglesas, porque são demasiado permissivas e não protegem o talento. Mas admiro uma coisa nos árbitros ingleses: a facilidade do diálogo. Não é raro assistirmos a discussões acesas entre um jogador e um árbitro, o que, a meu ver, é extraordinariamente saudável. Isto pode ser muito chocante para alguns, sobretudo para portugueses, mas tem a ver com democracia. Em Portugal, tal é impossível de suceder não porque os árbitros tenham directrizes diferentes, mas porque a mentalidade das massas é outra. Somos um povo mais conservador, damos demasiada importância ao "respeitinho" e temos ainda o vício salazarento de achar que há agentes soberanos, nas mais diversas áreas, que estão acima do diálogo e não precisam de justificar as suas decisões de modo racional. Obedecer caladinho e servilmente a um árbitro só porque é árbitro não faz sentido nenhum. O diálogo, a argumentação, a contestação, o protesto, fazem parte da vida pública e deveriam, a bem daquilo que é o jogo que melhor representa, nos dias que correm, a nossa sociedade, fazer parte desse jogo. Não é isso que se vê. Mais depressa um árbitro penaliza um jogador por discordar dele do que por ter uma entrada em que põe em risco a integridade física de um adversário. Isto não faz sentido nenhum. Esse árbitro parece preferir ser juiz de carácter do que juiz do jogo, ou seja, parece ter mais facilidade em exercer o poder que o estatuto de árbitro lhe concede quando esse exercício não depende de uma decisão técnica, o que é - convenhamos - absurdo. Isto é autoritário e politicamente primitivo. Faz parte de uma mentalidade ancestral que deveria estar arrumada nos livros de História, mas que sobrevive pela transmissão, de geração para geração, dos mais enraízados valores patriarcais.

O futebol português, como aliás o rochedo à beira-mar plantado que é o país, continua a resistir à invasão da modernidade como pode, com um instinto de auto-preservação cuja natureza consiste em manter uma distinção hierárquica bem definida, dentro da qual aquele que tem o poder deve exercê-lo sem prestar contas do seu exercício. As nossas principais características, enquanto povo, continuam a ser o "bairrismo", a defesa da paróquia de cada um, a família enquanto pilar social. Não somos uma nação moderna, nem existe em Portugal um sentido democrático assaz relevante. Aliás, somos uma democracia apenas institucionalmente, apenas porque temos a liberdade de eleger, por sufrágio universal, aqueles que queremos que nos representem. No que diz respeito a valores morais e a competências políticas, continuamos uma nação feudal; cada um tem por interesse único o modo como os interesses alheios beneficiam ou prejudicam os seus interesses privados. A população sente-se insatisfeita com o estado de coisas a que o país chegou e vai a correr às urnas votar em massa na conservação e na austeridade, de modo a poder preservar o feudo de cada um. Não está em causa, obviamente, a opção de voto de cada pessoa, mas a tendência das massas e a incompreensão colectiva do que é exigido, na verdade, pela responsabilidade democrática. As pessoas revoltam-se hoje contra a classe política como se revoltariam contra o monárquico que nos regesse, caso isto fosse uma monarquia; revoltam-se contra os soberanos quando se deveriam revoltar contra a ideia de soberania. O que está mal não é a classe política, nem os políticos; o que está mal e deveria ser combatido é a relação de soberania, subordinativa e hierárquica, entre quem representa e quem é representado. No actual sistema político, exercemos praticamente um único direito democrático, o de ir, de quatro em quatro anos, conceder poderes de decisão sobre tudo o que nos diz respeito a meia-dúzia de pessoas cujas ideias mal conhecemos. O nosso único sentido democrático, no intervalo que é cada legislatura, é insurgirmo-nos contra aqueles que elegemos anteriormente, é manifestarmo-nos contra a classe que nos governa, é fazer greves, é falar mal por falar mal. Tudo isso são idiotices sindicais e disparates das barata-tontas que somos. No fundo, somos como jogadores de futebol que não aceitam uma decisão do árbitro, mas com a agravante de que, ao contrário do jogador de futebol, que joga um jogo que não tem regulação democrática, estando por isso sujeito à arbitrariedade das regras que elementos exteriores ao jogo estipulam, nós estamos a jogar um jogo em cuja regulação podemos exercer um determinado papel.

O argumento deste texto é ostensivamente político. Consiste em afirmar que a relação de subordinação entre jogador e árbitro ilustra a relação de subordinação a que o povo português está habituado e preza, ainda que pareça não prezar, como aliás ninguém preza nenhum árbitro, nenhum dos indíviduos a que está subordinado. A meu ver, é precisamente essa relação de subordinação entre jogador e árbitro, que quase todos aceitam sem questionar - porque é assim que está estatuído e tudo o que está estatuído parece não merecer reflexão -, que está errada. Como o que está errado no país é a relação de subordinação entre classe representante e representados. Portugal é um país com excesso de moralidade, com um legado católico do qual demorará a libertar-se, no qual vigoraram sistemas anti-democráticos durante demasiado tempo. Sentem-se confortáveis, por isso, os portugueses com aquilo a que estão habituados, com o servilismo, com a vidinha calma, com o "respeitinho pelos mais velhos", com todos os valores, em suma, do país que historicamente é. O que é criticável não são os políticos, de quem se diz que são todos gatunos, não são as fortunas desmesuradas dos milionários, não é a desigualdade económica entre classes. O que é criticável é a mentalidade dos portugueses, é a falta de consciência política das massas, é a aceitação incondicional, ainda que inconsciente, de um sistema que depois cada um se apressa a contestar. O problema do país é só um: temos um conceito de democracia demasiado fraco. Não existe debate público lógico; a troca de argumentos, em qualquer área, é geralmente pobre e vaga; as ideias políticas apresentadas são, por norma, demagogias inconcretas e manipuladoras; as crianças são educadas a obedecer arbitrariamente em vez de serem educadas a obeder ao que faz sentido.

Regressemos ao futebol. Dos jogadores, em Portugal, espera-se que joguem à bola e que aceitem tudo o que o árbitro - versão do tirano de apito na boca - lhes ordene que façam. Acontece que a generalidade dos árbitros, para os quais reservei as palavras finais, representa sublimemente os valores antiquados da nação a que me referi acima e ilustra a falta de competência democrática de que o país padece. Aliás - e agora refiro-me sobretudo a árbitros de futebol distrital, ou seja, a pessoas que optam pela arbitragem apenas como hobby subsidiado (às custas precisamente dos clubes que apitam) e não como carreira - atrever-me-ia mesmo a conjecturar que a grande maioria destes árbitros tem preferências políticas consentâneas com o exercício arbitrário de poder que o apito lhe autoriza. São pessoas que gostam da sensação de poder ou que gostam da relação arbitrária entre quem ordena e quem respeita ordens; são pessoas que não gostam particularmente de discutir as decisões que tomam, embora gostem de tomá-las, ou seja, pessoas que não gostam particularmente de justificar opiniões, que é outra definição para estupidez; são pessoas a quem lhes apraz a irracionalidade da autoridade absoluta e que, por isso, aceitam críticas com muito menos facilidade do que um jogador aceita uma má decisão de um árbitro.

É usual fazer-se o argumento de que, enquanto o árbitro está lá para decidir, o jogador está lá para jogar e não para criticar decisões, e que, portanto, todo o protesto deve ser punível. Não obstante a estupidez, a hipocrisia e a obsolescência do argumento, faço agora o argumento contrário, que refuta o anterior de maneira implacável, com a mesma lógica argumentativa prepotente: se os jogadores, enquanto agentes de um jogo, têm uma missão específica dentro desse jogo que lhes veda a liberdade de se intrometerem nas opiniões sobre a missão que estão desempenhar, então os árbitros, enquanto agentes de um jogo, têm de ter igualmente uma missão específica dentro desse jogo que lhes veda a liberdade de se intrometerem nas opiniões sobre a missão que estão a desempenhar. Por outras palavras, sendo ambos agentes de um jogo com responsabilidades próprias, se o jogador não tem direito a manifestar a sua opinião acerca da decisão do árbitro acerca de um lance, então o árbitro não tem direito a manifestar a opinião acerca da opinião do jogador acerca de um lance. Se o jogador está lá apenas para jogar e o árbitro apenas para decidir, nem o jogador tem direito a protestar nem o árbitro tem direito a punir o protesto. Isto porque, sendo ambos agentes independentes de um jogo, não há razão nenhuma para que uns tenham mais direitos que outros. Declarei acima que o argumento contra a liberdade do protesto do jogador era estúpido, hipócrita e obsoleto. Se a sua estupidez ficou demonstrada pelo meu contra-argumento, a hipocrisia tem que ver com o facto de se esquecer sistematicamente que os jogadores não são máquinas, mas seres humanos, com emoções, com noções de justiça e moral, sujeitos pelo jogo a um desgaste mental e a níveis de adrenalina que condicionam as suas reacções. Achar que devem estar caladinhos e obedecer àquilo de que discordam é não perceber nada de seres humanos. Quanto à obsolescência do argumento, que é, no fundo, aquilo que mais me interessa, tem que ver com o argumento político desenhado acima. Esta é uma defesa do espírito crítico e do ideal democrático, aplicado a um caso concreto do futebol. Se o principal problema da sociedade portuguesa está intimamente relacionado com o conceito de democracia que a mesma cultiva, a prepotência da grande maioria dos árbitros nos campos de futebol do país, sendo um caso particular desse mesmo problema social mais amplo, resulta do facto de não se permitir, por estipulação e tiques de despotismo, que as decisões do árbitro possam ser alvo de discussão e crítica. A este respeito, o que falta ao futebol, como o que falta ao país, é tornar-se mais democrático.