terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Certezas (21)

Quando apareceu, compararam-no imediatamente a Theo Walcott, mas depressa me pareceu que a comparação requeria ajuste considerável. Como apareceu a jogar numa posição semelhante, mais avançado e junto à linha, e como fazia uso da velocidade como Walcott, não tiveram dúvidas em relação ao rótulo. Antes mesmo de o ver jogar, torci o nariz, precisamente por causa da comparação. Mas, ao vê-lo, percebi que não era apenas o que Walcott é, um jogador veloz e mortífero quando se apanha com espaço, mas sim alguém de toque mais curto, mais refinado tecnicamente, e sobretudo mais imaginativo. A evolução que a sua curta carreira foi tendo comprovou as minhas suspeitas: tratava-se de um atleta fadado para outras coisas e para outra posição no terreno. A sua colocação na zona central foi para mim óbvia, essencialmente porque a sua capacidade para inventar requeria a problematização que o centro do terreno oferece. Faltava perceber, apenas, se conseguia juntar à criatividade e à capacidade de improvisação a frieza e a natureza cerebral de um médio centro clássico. Este ano, apareceu precisamente a jogar no meio-campo, não como médio-ofensivo que é, mas como médio recuado, numa posição em que se lhe exige que seja mais cerebral e menos mágico. Confesso que não é aí que me parece que possa ser extraordinário, não necessariamente por ser fisicamente débil e pouco fiável no choque, mas porque nessa posição a sua criatividade não é verdadeiramente posta à prova. Desembaraça-se com facilidade e empresta ao jogo da sua equipa uma fluidez notável, fruto da sua qualidade com bola e da sua inteligência, mas acaba por não estar tantas vezes em zonas densamente povoadas e acaba por não estar sujeito tantas vezes a problemas que exijam soluções de dificuldade acrescida. O seu crescimento, porque a sua capacidade actual assim o exige, deveria passar por uma posição central, sim, mas mais avançada no terreno, mais junto dos avançados e mais metido dentro do bloco adversário, obrigado a jogar mais vezes entre linhas e menos de trás para a frente. É vítima, por isso, do problema do duplo-pivot do qual Wenger tarda em libertar-se. O seu pé esquerdo e a sua imaginação são, porém, demasiado grandes para que possa vir a cair no esquecimento e, dentro de um ou dois anos, Jack Wilshere será certamente um dos nomes maiores do futebol inglês.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Só para alguns

Por que é que o Barcelona de Guardiola é a melhor equipa da História do Futebol? Porque consegue, pode e dá-se ao luxo de fazer coisas como esta. Quem for capaz de perceber a relação causal entre este lance e o que é este Barcelona está no bom caminho para perceber o que de tão distinto representa esta equipa. Não é o caso de quem comentava o jogo na televisão, que achou que o pontapé para o ar de Abidal foi a coisa mais sensata de toda aquela aventura suicida.


sábado, 27 de novembro de 2010

Certezas (20)

É a primeira vez que um guarda-redes é elogiado nesta rubrica, mas a qualidade deste jovem é tanta que dificilmente lhe poderia escapar. Os melhores clubes do mundo andam já interessados no seu concurso e não é crível que aguente muito mais tempo no seu clube. De qualquer modo, porque a concorrência não podia ser maior, o seu lugar na selecção do seu país continuará a ser difícil de assegurar. À parte disso, o seu futuro é quase uma certeza absoluta. O que mais impressiona, quando o vemos na sua baliza, é a frieza e a segurança, como se fizesse aquilo há já muitos anos. Aliando a esta capacidade mental uma técnica de guarda-redes prodigiosa e a facilidade com que rapidamente se impôs na ribalta do futebol europeu, diria que estamos na presença de um dos cinco melhores guarda-redes dos próximos dez anos. Tanto quanto me pude aperceber, não tem propriamente pontos fracos. Ainda que não tenha uma envergadura invejável, é seguro a sair dos postes. Nas saídas aos pés dos avançados, faz uso da sua agilidade e, não sendo muito agressivo e intimidador, é no entanto tecnicamente evoluído e sabe esperar pelo momento certo quer para fazer a mancha, quer para cair. Naquilo em que é, todavia, indiscutivelmente muito forte é na meia distância. A sua elasticidade e a perfeição técnica com que voa para qualquer um dos lados é ímpar. Não me lembro, talvez à excepção de Preud'homme, de outro guarda-redes tão elegante e com um gesto técnico tão perfeito quanto ele. De resto, é capaz de segurar bolas muito difíceis, bolas que outros, pela dificuldade do voo, preferem invariavelmente defender com a palma da mão para canto. Esta, a meu ver, é a imagem de marca dos melhores do mundo na baliza: ser capaz de voar para um dos lados e, ainda assim, agarrar a bola. Preud'homme era mestre nisso; este miúdo também parece sê-lo. Não duvido, por tudo isto, que David De Gea terá, muito brevemente, o mundo a seus pés...

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Um Jogo Estúpido

Por que é que o futebol é um jogo estúpido, de gente estúpida, para gente estúpida, disputado por gente estúpida e arbitrado por gente estúpida? Porque as leis do jogo, que são estúpidas, e os árbitros que as interpretam, que são ainda mais estúpidos, permitem que, no mesmo jogo, um jogador veja dois amarelos por um puxão e por um empurrão, acabando expulso, enquanto outro jogador, inocentado pela estupidez intrínseca do jogo, envia um adversário para o hospital com uma rotura de ligamentos no tornozelo, após entrada por trás para travar um contra-ataque, e é admoestado com um amarelo, com o qual acaba o desafio, satisfeito com a sorte.

P.S. Às vezes, gostava de acreditar que o futebol era um jogo para seres racionais.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Defender o um para um

Muito se discutiram, após o clássico que opôs o Porto ao Benfica, as opções de Jorge Jesus e o rotundo falhanço estratégico da sua abordagem ao jogo. Corroboro grande parte dessas críticas, sobretudo a não-utilização de Saviola, a opção pelo 442 clássico, e o medo em relação a Hulk que levou à troca de Coentrão por David Luiz. Nenhuma crítica, porém, foi mais referida que a utilização de David Luiz à esquerda. Há, nessa aposta, dois erros primários: o primeiro - e também o mais óbvio - tem a ver com a opção por contrariar as qualidades individuais de um adversário utilizando as qualidades individuais de um atleta. Jesus falhou, neste particular, não só porque alterou uma estrutura enraízada, mas também porque não compreendeu que a melhor estratégia para contrariar qualidades individuais é necessariamente colectiva. Muito mais fácil do que procurar remediar um problema individual através da promoção de um duelo individual teria sido promover a criação de superioridade numérica, em momento defensivo, sempre que a bola chegasse aos flancos, por exemplo. Mas esse foi, como referi, apenas um de dois erros. O segundo, e que poucos certamente saberiam identificar, porque corroídos pela opinião pública convencionada, tem a ver com a escolha de David Luiz para essa função. Jorge Jesus escolheu-o porque o considera o mais capaz a defender duelos individuais. Poucos disputariam esta consideração. Afinal, para estas pessoas, a característica essencial para que um defesa seja forte no um para um é a velocidade. Afirmo frontalmente que estão equivocados.

David Luiz é rápido, é agressivo e, graças a estas duas características, tem uma boa capacidade de antecipação. Nada disto faz com que seja bom a defender o um para um. O objectivo deste texto é precisamente desmontar esta ideia, assim como argumentar que há coisas bem mais importantes que a velocidade para travar um adversário especialmente forte no um para um. David Luiz tem estas características muito desenvolvidas e é principalmente por elas que é tão apreciado. Acontece, contudo, também porque se deixa deslumbrar por elas, que tem outras características pouquíssimo desenvolvidas. Não evoluiu rigorosamente nada em termos de leitura dos lances e continua com uma péssima abordagem a jogadas que exigem que raciocine rapidamente, jogadas em que a defesa não está organizada, por exemplo. Já para não falar das faltas de concentração e das displicências com bola. O que pretendo demonstrar é que defender eficazmente o um para um não é necessariamente distinto de tudo o resto e que, portanto, é muito mais importante o defesa ter capacidade de concentração e boas abordagens ao lance do que propriamente rapidez para reagir à iniciativa do adversário.

Para muitos, defender o um para um é uma questão de capacidade de resposta àquilo que o adversário propuser. Isto é, se o adversário investe pela direita, o defesa tem de ter rins e pernas para o perseguir pela direita; se investe pela esquerda, o mesmo. Parece-me isto um modo fácil e antiquado de olhar para a coisa. É óbvio, porém, que quem pense assim tenha a pressa de afirmar que o melhor a defender o um para um é aquele que reage melhor à investida do adversário, vá ele por onde for. Discordo amplamente disto. Creio até que defender o um para um é uma técnica, idêntica a outras técnicas relacionadas com o jogo, e que, ainda hoje, é muitíssimo negligenciada. Deixando de fora, para já, as especificidades do adversário particular que se pretende defender, coisa que pertence ao plano estratégico e que deve ser interiorizado apenas mediante o confronto particular com esse jogador e que não tem necessariamente a ver com a técnica geral de defesa do um para um que aqui quero referir, acho que há, para quem defende, muitas outras coisas a fazer para além de esperar pela iniciativa do adversário e reagir o melhor que souber. É disso que quero falar em seguida.

A primeira coisa que quero contestar é que a iniciativa seja necessariamente do avançado que tem a bola. Não quero, com isto, afirmar que o defesa deve tentar a intercepção antes de o avançado optar por um dos lados. É possível tomar a iniciativa de outro modo. Como? Sugerindo um lado, por exemplo. Por definição, o defesa coloca-se entre o avançado com bola e a baliza, exactamente a meio, permitindo a quem tem a bola escapar por um de dois lados. Este posicionamento convencional garante iguais possibilidades ao defesa de chegar ao lance quer o avançado vá pela esquerda, quer vá pela direita. Mas tem a desvantagem de permitir a escolha a quem tem a bola. Optando por este tipo de posicionamento, a iniciativa é sempre de quem tem a bola. Basta que esse avançado seja especialmente rápido e forte para que o defesa esteja constantemente em desvantagem. Do meu ponto de vista, sobretudo contra avançados que não são imprevisíveis, isto é, que vão optar pelo lance individual, este posicionamento convencional não é o mais eficaz. Muito mais eficaz é retirar poder de escolha ao avançado e, assim, ter a iniciativa do lance. Por exemplo, no caso de David Luiz e Hulk, defender mais o lado direito, convidando a que a iniciativa individual se desenrolasse para a linha e para o pé direito do avançado portista, teria sido uma estratégia individual muito mais produtiva. Condicionava-se um jogador pouco capaz de responder a obstáculos imprevistos a optar sempre pelo mesmo caminho e a fazer uso do seu pior pé mais vezes; propiciavam-se situações de cruzamento com o pé direito de Hulk cuja resposta poderia até ser trabalhada em treino durante a semana; e, sobretudo, nunca se promoveria a possibilidade de Hulk ultrapassar individualmente o seu opositor directo, criando situações de superioridade numérica. Outra possibilidade seria a contrária, optar por fechar mais a linha e convidando Hulk a fintar para dentro. Fazendo depois uso de um bom jogo posicional de toda a equipa e juntando os jogadores no momento defensivo, obrigar-se-ia Hulk a voltar recorrentemente para trás ou a forçar lances individuais pelo meio em franca inferioridade numérica. A opção foi outra e passou por ter David Luiz sempre em cima de Hulk, à espera da iniciativa do avançado portista e sem qualquer plano previamente concebido. Como Hulk é fortíssimo quando lhe oferecessem a iniciativa e quando o adversário não se acautela colectivamente para responder às suas investidas, deu no que deu.

Como devem saber, os que lêem este blogue, tal como não sou especial admirador de David Luiz, não sou especial admirador de Hulk. Tem duas ou três características extraordinárias e que podem fazer a diferença ocasionalmente, mas tem atributos subdesenvolvidos e que considero essenciais no futebol moderno. Quero com isto dizer que Hulk faz ou pode fazer a diferença quando se reúnem circunstâncias favoráveis à exploração das suas características, mas terá sempre dificuldades quando tiver de ser ele a procurar essas circunstâncias. Ou seja, a preponderância de Hulk dependerá sempre mais do contexto criado do que dele próprio. Villas-Boas tem tido o mérito de ser capaz de forçar o aparecimento dessas circunstâncias e, assim, de tornar produtivas ao máximo as capacidades do brasileiro, mas a criação dessas circunstâncias depende sempre em parte da proposta do adversário. O erro de Jesus, mais do que ter medo de Hulk, foi ter medo das coisas erradas. Receou o momento em que Hulk tinha a bola quando deveria era ter receado o momento anterior e o momento posterior a esse; receou Hulk quando deveria ter receado era o Porto enquanto colectivo capaz de criar as circunstâncias favoráveis às capacidades de Hulk; receou o drible de Hulk quando deveria era ter receado a explosão dele. É que Hulk com bola não é especialmente perigoso; Hulk com espaço sim. E foi precisamente o espaço que Jesus não acautelou. O medo de Jesus, portanto, para além de todas as consequências que daí resultaram, radicou ainda no equívoco magistral de ser infundando precisamente por ser um medo acerca das coisas erradas.

Regressando agora à generalidade do tema e utilizando Hulk como paradigma do jogador difícil de parar no um para um, por ser rápido e forte, devo dizer que o melhor modo de defender o um para um contra estes jogadores é precisamente como sugeri acima, tomando a iniciativa. Tomar a iniciativa, deste ponto de vista, implica modificar o padrão a que o adversário está habituado e, com isso, condicioná-lo e limitá-lo. Tratando-se de um jogador previsível - residindo a sua previsibilidade no facto de apostar invariavelmente no um para um - esta opção nunca constitui uma desvantagem e o próprio defesa saberá sempre, por antecipação, aquilo que o avançado vai fazer, porque o preparou para isso limitando-lhe as escolhas. Ao invés de se ficar a meio metro do adversário, deve-se ficar ligeiramente mais afastado e deve-se dar ostensivamente um dos lados, concedendo-lhe uma aparente liberdade que tem o condão de o condicionar. Há ainda truques defensivos eficazes, como 1) forjar um mau posicionamento aparente, convidando o adversário a atacar a zona aparentemente desprotegida, mas estando preparado para atacar essa zona e fazendo-o assim que o adversário dá o toque na bola, momento em que a capacidade de reacção do avançado é nula; 2) dar espaço e fingir esperar a iniciativa do adversário, atacando depois repentinamente a bola antes de essa iniciativa ser tomada; 3) simular um pequeno reajustamento de posição (como simular um pequeno passo para a frente ou para os lados, ou ameaçar atacar a bola), o que obriga o adversário a reajustar-se também ou a reagir mais decisivamente, atacando depois o lance no momento em que a reacção do adversário à simulação se efectiva. Todos estes truques servem para que o defesa tenha parte da iniciativa do lance do seu lado. São modos de tornar mais eficaz o seu desempenho em duelos individuais, modos de tornar menos relevantes possíveis diferenças de atributos físicos e modos de tornar menos determinantes jogadores que só o podem ser se tiverem a seu favor certas circunstâncias, como o sejam a possibilidade de tomar a iniciativa em duelos individuais e o espaço posterior propiciado por uma abordagem defensiva, individual e colectiva, deficiente.

Esta forma de defender o um para um é extraordinariamente negligenciada e constitui uma técnica pouquíssimo trabalhada, onde quer que seja. Há poucos jogadores que recorram a este tipo de coisas e maior parte deles fá-lo-ão de forma inconsciente, talvez como protecção involuntária contra a ausência de certos atributos físicos. Um defesa rápido, e que tenha orgulho na sua rapidez, nunca recorre a isto. Encara os adversários sempre de igual modo, concedendo-lhe a iniciativa para depois recuperar em velocidade e dar a impressão de um grande feito. Veja-se a diferença entre Ricardo Carvalho e Pepe, agora que jogam juntos, na forma como abordam este tipo de lances. Pepe aproxima-se muitíssimo do portador da bola e espera a sua iniciativa para reagir, fazendo uso da sua velocidade; Ricardo Carvalho espera, dá mais espaço, força um dos lados. E nunca é ultrapassado. Veja-se ainda Piqué ou Daniel Carriço. Raramente enfrentam este tipo de lances de frente; estão de perfil, concedendo um dos lados, diminuindo as possibilidades do adversário que tem a bola. Isto é cultura e inteligência. E é a forma mais eficaz de defender o um para um. David Luiz é só um defesa veloz. Não é especialmente inteligente nem tem cultura suficiente que o torne excepcional a defender o um para um. Contra um adversário poderoso em termos de velocidade, é facilmente ridicularizado. César Peixoto, o tal que agora os mentecaptos têm por passatempo assobiar, tem metade da velocidade de David Luiz e fez muito, mas muito melhor, no jogo da Supertaça. Passou essencialmente por reconhecer as suas limitações em termos atléticos e por procurar resolver os problemas de outro modo. O Benfica, Jorge Jesus e David Luiz quiseram vencer o Porto e Hulk nos termos destes, tentando contrariar velocidade com velocidade. Um duelista experiente saberia de antemão que teria mais hipóteses de vencer um pistoleiro excepcional se, tendo a possibilidade de escolher, escolhesse um duelo de espadas. É que raramente se vence um perito com as armas em que essa pessoa é perita.

P.S. Há quem diga que Hulk, por ser especialmente forte, nunca deve receber de frente e, portanto, que a marcação individual tem de ser sempre apertada e movida a todo o terreno. Isto é absurdo. Foi precisamente por isto que Villas-Boas venceu o jogo. Antecipou que Jesus iria mover uma perseguição individual a Hulk e que o jogador que o marcasse, fosse qual fosse, iria abandonar a sua zona para ir atrás do brasileiro. Com isto em mente, terá treinado durante a semana movimentos semelhantes ao do terceiro golo, com Hulk a baixar, levando David Luiz e criando um buraco, e a bola a ser metida nesse espaço, no qual entraria Belluschi. Aliás, o segundo golo não é muito diferente. As preocupações excessivas com Hulk fizeram com que a linha defensiva do Benfica nunca estivesse bem formada, com David Luiz sempre demasiado subido. Falou-se muito em Sidnei e na sua pretensa falta de rotina, mais foi o mais esclarecido de toda a linha defensiva. O terceiro golo é o exemplo perfeito disto e é inteiramente da responsabilidade de David Luiz (ou de quem lhe ordenou que se comportasse assim), que vai atrás de Hulk até ao meio-campo e propicia o espaço aproveitado por Belluschi. Sidnei chega em esforço e não pode cometer falta, sob pena de conceder penalty. Aliás, foi mais um jogo, entre tantos, penoso para David Luiz, com responsabilidades directas nos três primeiros golos.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

A avalanche

Há quem fale em crise, quem diga que o Barcelona, este ano, está mais fraco, e patetices parecidas. Acredito que as pessoas que o dizem não têm visto os jogos e que, olhando para os resultados, e comparando-os com os de épocas anteriores e, sobretudo, com os do Real Madrid, achem que há qualquer coisa de inferior. Não há. Aliás, exceptuando o desafio perdido em casa frente ao Hércules, o Barcelona tem sido sempre superior e nunca teve uma vitória em causa. Em vários jogos, e sobretudo porque Guardiola começou a época a gerir esforços, a equipa tem preferido ser menos massacrante e mais cautelosa e ponderada. Mas, quando é preciso passar 90 minutos a jogar à rabia com os adversários, o Barcelona continua impecável. Na semana passada, a goleada imposta ao Sevilha revela isso mesmo. Mais do que a goleada, a forma quase humilhante como os sevilhanos foram vergados é elucidativa. As pessoas esquecem-se que o Real Madrid só ainda jogou contra dois dos primeiros dez classificados da Liga Espanhola, Mallorca e Espanyol. Esquecem-se igualmente que, dos 9 jogos do Barcelona no campeonato, 5 foram contra equipas de entre esses mesmos dez. Esquecem-se, por fim, que o Barcelona já jogou e venceu, em casa, o Valência e o Sevilha, e que já passou incólume nas deslocações dificílimas ao terreno do Athletic de Bilbao e do Atlético de Madrid. Uma revisão do calendário talvez não fizesse mal aos papagaios que pensam que podem descobrir os mistérios do universo olhando simplesmente para resultados.



Fica o vídeo dos primeiros 4 minutos do jogo frente ao Sevilha. As imagens deverão ser esclarecedoras. Se não forem, diga-se ao menos que foram 4 minutos de atropelamento, com o Barcelona a jogar, a trocar a bola cada vez mais perto da baliza adversária, a progredir no terreno, a criar oportunidades de golo, e o Sevilha a correr atrás da bola. A avalanche foi de tal modo intensa que, quando o golo surge, a sensação de inevitabilidade era óbvia. Quando houver outra equipa com a capacidade para fazer 4 minutos tão demolidores como estes, ainda por cima jogando quase a passo, avisem.

P.S. A forma como Sergio Busquets antecipa o que os adversários vão fazer e a forma como se coloca em campo e como reage ao modo como os adversários atacam é genial. É o exemplo máximo de inteligência em momento defensivo. Tem a perfeita noção de quando deve atacar o lance e de como o deve fazer. Com pezinhos de lã, está no sítio certo à hora certa para impedir a transição, para fechar espaços, para roubar bolas. É de longe, mas de muito muito longe, o melhor médio defensivo da actualidade.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

A Falta de Confiança

A conversa da falta de confiança, em relação ao rendimento de um avançado, já chateia. Importa, porém, continuar a desmistificar ideias feitas e opiniões assentes em especulações infundadas. Mantenho aqui o que tenho vindo a defender há já algum tempo. A principal diferença, em termos de finalização, entre Postiga e Liedson, é o número de ocasiões de que os dois dispõe. O brasileiro, pelo tipo de movimentações que prefere, goza de muito mais oportunidades do que o português, que se preocupa com outras coisas além de aparecer nas zonas de finalização. Como tal, Liedson marca mais golos. Mas também falha mais. É estúpido dizer que Postiga é perdulário, que falha muitos golos, que tem um problema mental, que é maluco, etc. E é estúpido porque não é verdade. O que acontece é que, como tem menos oportunidades de golo, cada falhanço tem uma importância acrescida. Sempre que falha, então, é crucificado e dizem-se disparates sem fim. O que aconteceria se, apesar de falhar dois ou três golos num jogo, marcasse outros tantos? Ninguém se lembraria de maldizer a sua prestação, certamente.

Ora bem, de Liedson não se diz o mesmo que Postiga simplesmente porque, apesar de falhar tanto ou mais, e de forma tão ou mais clamorosa, marca com mais regularidade. Mas isso apenas porque tem mais oportunidades para fazê-lo. Em termos de percentagem de aproveitamento de oportunidades, Postiga não é de maneira nenhuma inferior a Liedson e não é de maneira nenhuma inferior a qualquer ponta-de-lança de créditos firmados. No passado jogo frente à Islândia, Postiga marcou um golo e falhou outro, no frente a frente com o guarda-redes. Muitos se apressaram a referir o falhanço como imperdoável. Mas a verdade é que marcou um golo em duas oportunidades, tendo nesse jogo um aproveitamento de 50%. Por que razão não se dizem as mesmas coisas de Liedson? É que, frente ao Gent, o avançado-deus marcou dois golos, sim, mas falhou três escandalosos, alguns de baliza totalmente aberta. Que dizer disto? Apesar dos dois golos, o aproveitamento de Liedson foi inferior ao de Postiga nesse jogo em que, tão depressa, se aprontaram a ver nele um problema qualquer. Será que Liedson também tem um problema de confiança? Será que é maluco, também? Neste mesmo jogo frente ao Gent, Postiga assistiu Salomão para o primeiro golo; foi ele quem recebeu a bola comprida, deixando-a à mercê de João Pereira, que assistiu Liedson para o segundo; foi ele quem arrastou a defesa e abriu o espaço por onde entrou Maniche no quarto golo; foi ele quem marcou o quinto. E não falhou clamorosamente nenhum golo, ao contrário do seu companheiro de sector que, para muitos, é exímio na finalização.

O objectivo deste texto é duplo. Em primeiro lugar, pôr em evidência a falácia que há em pensar que Liedson e Postiga diferem essencialmente pela capacidade de finalização, que no primeiro é boa e no segundo insatisfatória. Liedson marca mais e falha mais. E a razão por que tal acontece é porque é um tipo de jogador diferente, que usufrui de maior número de ocasiões de golo. O seu rendimento, de acordo com as ocasiões de que dispõe, não é superior ao de Postiga. O segundo objectivo é demonstrar que Postiga, além de não ser inferior a Liedson em termos de finalização, garante à equipa muito mais que o momento da finalização. E é esse excedente que o faz bem mais útil à equipa do que o brasileiro. Postiga não tem problema mental nenhum. É um avançado que, porque se preocupa com muitas coisas (servir de apoio frontal, apoiar os colegas à linha, tabelar, arrastar defesas sem bola, etc.) não consegue atacar as zonas de finalização com tanta frequência quanto um avançado que tenha por preocupação apenas os movimentos para finalizar. E, como tal, é um avançado que goza de poucas oportunidades para marcar, quando comparado com avançados de outro tipo. Assim, porque os adeptos são, tendencialmente, esquecidos, sempre que falha uma dessas ocasiões é assobiado e vêem nele alguém pouco concretizador. A verdade, contudo, é outra. E o seu rendimento, se tivermos em conta os golos que marca em função das oportunidades de que dispõe, e até superior ao de certos avançados que marcam mais golos. Assim se desmascaram falsas certezas.

sábado, 9 de outubro de 2010

Postiga

Comecemos por onde se deve começar: há poucos jogadores que me enchem as medidas, jogadores que me fazem assistir a um jogo apenas para, de entre 22 atletas e um jogo de futebol, me deliciar com aquilo que fazem em campo. Sei reconhecer qualidade, mas nem sempre conservo a disposição para ver os melhores do mundo jogar. Muitas vezes porque a sua competência deriva das suas qualidades físicas e atléticas. O verdadeiro requinte está no único atributo que não me canso de contemplar: a classe. E classe não é coisa que todos tenham. Pedro Barbosa era um jogador fenomenal porque transbordava classe. Fazia as coisas com uma calma, um auto-controlo e uma vaidade quase divinos. Como um toureiro. Alguém se lembra de um bósnio que jogou no Estrela da Amadora na década de 90 chamado Velic? Mal se mexia durante 90 minutos. Quando a bola vinha ter com ele, era preciso um batalhão para lha tirar. Enquanto não o conseguiam, fazia maldades atrás de maldades, sempre com uma calma e uma classe inusitadas. Jogava com a gola da camisola levantada, à Cantona, e tinha o cabelo rapado. É à qualidade que fazia com que Velic valesse o preço do bilhete que me refiro. Riquelme é, nos tempos que correm, o paradigma dessa virtude. Quando estes jogadores estão dentro de campo, parece que gozam com o mundo inteiro. Os fãs da intensidade jamais serão capazes de percebê-los e de aceitar que façam parte de uma equipa ambiciosa. A classe não se coaduna, para eles, com a competitividade. Estão, evidentemente, equivocados.

Na passada sexta-feira, preparava-me para mudar de canal ainda não ia o jogo da selecção a meio da segunda parte. Estava a ser um jogo aborrecido, mal jogado, com a selecção portuguesa concentrada, mas pouco clarividente, incapaz de criar situações de golo a não ser aproveitando os erros do adversário. Não me apetecia perder mais tempo com tal banalidade. Ainda que estivessem a jogar vários jogadores que admiro, nenhum me encanta como me encantavam Figo, Rui Costa, João Pinto, Paulo Sousa ou Pedro Barbosa. O futebol português pode hoje estar mais competitivo. Mas o que ganhou em competitividade perdeu em classe. Faltam hoje à selecção jogadores de classe, jogadores com capacidade para deslindar problemas complicados, para resolver situações de modos inesperados. As principais carências da selecção são a criatividade, a espontaneidade, a imprevisibilidade. Ronaldo e Nani podem estar entre os melhores do mundo, mas não são capazes de momentos de requinte. Quando percebi que Hélder Postiga ia entrar, detive-me e decidi continuar a ver o jogo. De repente, percebi que é dos poucos jogadores portugueses que tem a capacidade para me entreter e dos poucos que, por mais chato que esteja a ser o jogo, me consegue manter cativado. A razão é simples: é o último herdeiro de uma geração em que a classe abundava.

A classe é a habilidade de resolver problemas da maneira mais imprevista, fazendo a resolução parecer simples. Ronaldo pode ser o melhor jogador português da actualidade. Jamais o verão a resolver um problema difícil. Falta-lhe génio para isso. A sua qualidade vem do facto de aproveitar as suas características ao máximo e de potenciar as situações em que essas características podem fazer a diferença. Não tem, no entanto, criatividade para solucionar situações difíceis, situações em que precisa de pensar rápido e em que precisa de encontrar uma solução imprevista. Hélder Postiga pode não ser um jogador de topo. É, porém, o jogador mais genial desta selecção. Tivesse ele a capacidade, como tem Ronaldo, para potenciar as suas melhores características, e seria um dos melhores do mundo. Não a tendo, resta-lhe a esperança de estar incluído num colectivo que lhe potencie essa genialidade. Nos últimos anos, não tem tido essa sorte e a opinião pública desvalorizou-o. Felizmente, há sempre momentos num jogo em que essa qualidade vem ao de cima. Pode não ter, em termos gerais, tanta categoria quanto poderia ter, caso juntasse ao seu génio atributos físicos que lhe permitissem resolver jogos sozinho, mas, sempre que é solicitado, empresta uma qualidade que poucos conseguem emprestar. Num colectivo que privilegiasse a ideia de colectivo, que privilegiasse, portanto, o intelecto dos jogadores, Postiga seria enorme. Na mediocridade que grassa, é um patinho feio.

O que me agrada em Postiga é a sua cabeça, o seu modo de pensar. A forma como resolve os lances, encontrando invariavelmente não só a melhor solução, mas muitas vezes uma solução que poucos considerariam existir, é extraordinária. O "souplesse" com que o faz, a descontração com que executa, é que me deixa de boca aberta. E isto é o que ninguém vê, preocupados como estão em perceber se o rapaz transpira o suficiente, ou se marca muitos golos. Isto é que é formidável! Estivesse ele incluído numa estrutura que potenciasse esta virtude e todos lhe fariam largas vénias. Disse Mourinho dele, a propósito da final da Taça UEFA que não pôde jogar, que teria muitas finais na sua carreira. Enganou-se Mourinho! Não porque Postiga não tivesse a qualidade que Mourinho desde logo percebeu que tinha, mas porque as qualidades que Postiga desenvolveu não interessam à comum récua de treinadores e opinadores. A sua classe é assim arte apenas para os olhos de quem vê para além do que os números mostram. Lamento, portanto, a educação estética errada dos restantes.

Sobre ele há a teoria de que falha muitos golos. Por causa desta teoria, há a teoria de que falha muitos golos porque é mentalmente fraco e tem tendência para tremer nos momentos de decisão. É sobre isto que pretendo falar até ao fim. Não concordo com a teoria nem com a teoria sobre a teoria. E, se os próprios termos em que descrevo Postiga são verdadeiros, gera-se um paradoxo. Isto é, se Postiga é alguém com uma capacidade intelectual acima da média, se tem classe, se tem génio, se é capaz de fazer coisas difíceis e inesperadas, como é que pode ser também mentalmente instável? É um contrassenso. Significa isto que ou é falso que Postiga tenha a classe que digo ter, ou é falso que seja mentalmente fraco.

A teoria que defende que ele é mentalmente fraco procura justificar a sua pouca produção, no que diz respeito a golos, desse modo porque entende que a sua causa está na quantidade de golos falhados e não noutra coisa. O erro está em assumir que essa fraca produção advém do não aproveitamento de oportunidades de golo e não de outra causa diferente. Acontece que Postiga não falha assim tantos golos, não é perdulário ou displicente. como parecem crer. Por norma, é até muito frio na hora de finalizar. Vejam-se vários lances de finalização dele para se perceber isto. Veja-se o último jogo com o Beira-Mar e perceba-se que, em todos os lances em que não marcou golo, fez o que estava ao seu alcance para marcá-lo. Muitas vezes, o que acontece é que não goza de tantas oportunidades assim. Mas quando as tem, não treme. Dizer o contrário é simplesmente mentira. A sua fraca produção tem explicações diferentes. Tem a ver com as suas preocupações e não com problemas mentais. Postiga é fortíssimo, do ponto de vista mental. Tem um carácter fortíssimo, também. É vaidoso, fino, requintado. Gosta e consegue fazer coisas difíceis. À frente da baliza, raramente fecha os olhos e fuzila. Não é como Nuno Gomes, por exemplo, que tinha bastantes dificuldades, sobretudo a partir de uma dada altura na sua carreira, para finalizar lances fáceis. Postiga faz tudo com critério e é mais racional que a grande maioria dos jogadores de futebol. Como é que é possível alegar que é mentalmente fraco?

Aliás, esta moda de justificar o que não se consegue justificar recorrendo a factores emocionais já chateia. Sempre que não se consegue perceber oscilações de rendimento - e isto acontece sobretudo em avançados porque se associa o rendimento destes aos golos que marcam - justifica-se o mesmo com falta de confiança. Isso é um absurdo. A falta de confiança afecta os jogadores, obviamente, mas reduzir a produção de golos de um avançado à falta de confiança deste é uma patetice. Postiga não tem falta de confiança. Pode já tê-la tido, pontualmente, sobretudo quando sentiu que tinha de provar algo a alguém, mas não só isso não o afecta ou afectou sempre, de forma consistente, como jamais será a explicação mais correcta para marcar poucos golos. Postiga, para certas pessoas, tem um problema de finalização. Essas pessoas não só não sabem identificar causas de problemas e, por conseguinte, só são capazes de justificar essas coisas deste modo fácil, como não conseguem sequer perceber o próprio Postiga. Dizer tal coisa não faz o menor sentido. Postiga tem uma personalidade forte e não tem problema de finalização nenhum. Finaliza bem, tem critério, preocupa-se com o gesto técnico, preocupa-se em escolher um lado, em executar em conformidade com as necessidades do lance, etc. Simplesmente não é um avançado que goze de tantas oportunidades como um jogador clássico de área, e isto porque tem muitas outras preocupações para além das destes. Antes de teorizarem, certos teorizadores deviam, pois, perceber se as teorias em que se apoiam de modo a sustentarem os pilares da sua teoria serão, de facto, verdadeiras. É que, começando com uma premissa errada, como Descartes com o seu "cogito, ergo sum", toda a filosofia que dela procede não passa de uma torre de Babel de raciocínios viciados. E o resultado é uma asneira filosófica de todo o tamanho.

domingo, 26 de setembro de 2010

Lições de Mestre (6)

Comecemos por uma ideia defendida habitualmente por muita gente e que está absolutamente errada. Para muitos, o Barcelona de Guardiola é uma equipa que abre muitíssimo, em momento ofensivo, fazendo campo grande e circulando a bola a toda a largura do terreno. Dizem certos entendidos que é esta faculdade que possibilita ao Barcelona o seu jogo rendilhado e que é no jogo exterior da equipa que está a sua principal virtude. Luís Freitas Lobo, a semana passada, a propósito do massacre a que o Braga foi sujeito em Londres, sugeriu que as pessoas estão equivocadas quando dizem que o Arsenal joga de maneira idêntica ao Barcelona. O seu argumento era o de que, ao contrário do Barcelona, que abre o seu jogo, o Arsenal privilegia a zona central para atacar.

Também considero que há diferenças entre o modo de jogar das duas equipas, mas esta não é certamente uma delas. É que, se há coisa em que as duas se aproximam, é no privilégio quase contra-intuitivo dos espaços centrais para atacar. O Barcelona não faz campo grande como julgam. Se há coisa que distingue o 433 dos catalães é a não fixação dos extremos nas linhas. Quem quer que jogue como extremo, tem por missão jogar por dentro, aproximar-se do portador da bola. A profundidade, em organização ofensiva, é sempre dada pelo lateral. Os extremos só ocupam a linha em momentos de transição ou como ponto de origem, de onde saem para vir receber um passe curto numa zona central. O futebol do Barcelona, assim como o do Arsenal, é preferencialmente jogado pelo meio; Luís Freitas Lobo está completamente enganado quando pensa que não.

O lance que se segue fortalece esta ideia. Mas podia ainda alegar, por exemplo, a opção clara de Guardiola pelo 442 losango nos dois últimos jogos, frente ao Gijón e frente ao Bilbao, com Busquets a trinco, Keita e Xavi como interiores, e Iniesta como médio ofensivo, a cair preferencialmente em zonas centrais, ficando o ataque entregue a Villa e Pedro/Bojan. Neste esquema, então, foi ainda mais visível a ocupação dos espaços centrais e o privilégio dado ao jogo pelo meio. Fazer campo grande não é algo que esteja nos princípios do Barça, simplesmente porque tal é contraditório à filosofia de jogo da equipa, que requer uma rede de apoios muito mais próxima e compacta. Para que o Barcelona possa jogar como joga, tem de ter, mesmo com bola, os jogadores muito juntos uns aos outros. A largura e a profundidade é, por isso, tarefa de quem vem de trás, nunca dos extremos.




O golo começa a ser construído com a vinda da bola da linha para o meio e é a partir do meio que tudo se desenha. Neste momento, estão 9 jogadores do Panathinaikos atrás da linha da bola. Um passe vertical de Messi trata de deixar batidos os dois médios entre os quais a bola passa. Entre linhas, Xavi devolve de primeira a Messi, que entretanto se desmarcara para a frente. Ao receber a bola de Xavi, Messi torna-se no alvo das atenções dos defesas gregos. O defesa que estava em cima de Pedro sai da marcação para travar Messi, que passa a poder jogar com Pedro. Fá-lo e recebe de imediato a devolução, já no interior da área. Depois, é dominar a bola e rematar. O mais difícil estava feito.

Com duas tabelas perfeitas, as duas iniciadas por um passe vertical que queima linhas, o Barça ultrapassou uma defesa que, inicialmente, estava composta por nove jogadores. É assim que se entra numa defesa compacta, que opta por colocar quase todos os seus jogadores atrás da linha da bola. Esta jogada exemplifica várias coisas. Reforça, em primeiro lugar, a ideia que referi há algumas semanas acerca de fazer da bola um engodo. Desmente, igualmente, a teoria de que o Barcelona não ataca pelo meio. E demonstra, por fim, a utilidade que há num simples passe vertical. Nos dias que correm, o jogador que tenha por preocupação este tipo de passes é sempre um jogador com uma capacidade acima da média. Era esta qualidade que, por exemplo, Pontus Farnerud possuía e que poucos valorizavam. É esta qualidade, também, que faz de Hélder Postiga um avançado muito mais valioso do que se quer crer. Mas como se prefere a garra, a capacidade de luta e a obsessão pelo golo, jogadores como estes dificilmente agradam às massas. É pena que não haja mais Guardiolas para educá-las.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Mascherano e a Competência de uma Equipa

Mascherano foi o último reforço do Barcelona para esta temporada. Para muitos, é um dos melhores médios defensivos da actualidade e traz ao Barcelona uma agressividade e uma capacidade de recuperação invulgares, sendo por isso natural o interesse que o clube catalão depositou no jogador. Não partilho desta ideia. E vou mais longe. Nem sequer compreendo esta aquisição. Faria sentido em qualquer outro clube do mundo. No Barcelona de Guardiola, simplesmente não faz.

Mascherano é um jogador de grande utilidade defensiva, um atleta incansável, com uma capacidade de luta pouco vulgar. É, além de tudo isto, um jogador de passe fácil, raramente se aventurando em coisas que não são para ele. Com as suas características, há pouquíssimos jogadores no mundo inteiro com a sua qualidade. O problema é que o Barcelona não faz uso dessas características nem necessita propriamente de um jogador para fazer algo que, habitualmente, faz em equipa. Aquilo em que Mascherano é forte e aquilo que pode oferecer é capacidade de recuperação, agressividade e muita disponibilidade física. Com ele em campo, o Barça ganha maior capacidade de luta. Mas perde muitíssimo mais. Perde critério, qualidade posicional, entendimento do jogo e capacidade de decisão. E, enquanto as primeiras coisas são pouco importantes, uma vez que a equipa funciona como um todo a defender, não necessitando propriamente de um jogador estritamente vocacionado para os momentos defensivos do jogo, a capacidade de decisão do colectivo depende em muito da soma da capacidade de decisão dos seus atletas. E, nesse particular, a permanência de Mascherano em campo é incrivelmente nociva ao Barcelona.

O argentino estreou-se este Sábado, num jogo que o Barcelona acabou por perder, frente ao Hércules. Dificilmente, porque é difícil relacioná-lo aos lances dos golos, haverá quem justifique a derrota catalã com essa estreia. Pois é precisamente o que pretendo fazer. A relação não é directa, isto é, não é nos lances decisivos que quero justificar esta ideia. É antes no que, em termos gerais, significou ter em campo um jogador como o argentino. Mascherano não só não esteve ligado aos golos, como teve intervenções que, aos olhos de muitos, foram boas. Raramente falhou um passe, não comprometeu, esteve relativamente bem posicionado, etc. Estatiscamente, para aqueles que acham que as estatísticas reproduzem fielmente o rendimento de um jogador em campo, Mascherano fez um jogo extremamente positivo. De que modo então é possível, como eu quero fazer crer, que tenha feito um jogo deplorável e, mais do que isso, que tenha tido sérias responsabilidades na derrota dos catalães?

O Barcelona tem no seu plantel um jogador relativamente parecido com Mascherano, embora esteja mais habituado a jogar como médio-ofensivo, ao lado de Xavi, e não como pêndulo defensivo. Esse jogador é Keita. Acontece que, ao contrário de Mascherano, Keita não só leva dois anos de avanço de aprendizagem, não prejudicando tanto a equipa com a sua menor capacidade de decisão, como esgota a sua utilidade nos movimentos verticais e na capacidade que denota em juntar os sectores, fruto da sua excelente recuperação defensiva. Se Mascherano viesse para ser substituto de Keita, utilizado ao lado de um médio criativo e para equilibrar a equipa, menos mal, embora não me pareça tão necessário como isso ter sempre um jogador dessas características em campo, nesta equipa. Mas Mascherano vem para jogar como médio-defensivo, onde sempre jogou, para funcionar como cobertura dos médios mais ofensivos. E, tendo em conta a exigência específica da posição nesta equipa, nem para suplente de Busquets tem categoria, ficando muito aquém, por exemplo, de Yaya Touré, que é o jogador que vem, possivelmente, substituir no plantel.

Ora, foi precisamente como médio-defensivo, no lugar de Busquets, que Mascherano actuou. E, apesar de ter dado praticamente sempre seguimento às jogadas, apesar de não ter falhado praticamente nenhum passe, apesar de se ter conseguido desembaraçar das duas ou três situações complicadas em que se viu envolvido, fez um jogo miserável. A razão? Não percebeu ainda - e duvido que venha a percebê-lo - o que significa jogar nesta equipa e que tipo de competências deve desenvolver. Mascherano optou quase sempre pelo mais simples: jogar para o lado e para trás. Quando não o fez, quando procurou algo diferente, explorou o passe longo, para as alas. Nenhuma destas opções se coaduna com o jogar deste Barcelona. Mascherano não fez um único passe vertical. Repito: um único! E foram várias as vezes em que podia tê-lo feito. Por passe vertical entendo, como já o referi várias vezes, um passe rasteiro, não necessariamente comprido, a explorar um apoio frontal. Este tipo de passe é, nos dias que correm, algo a que pouquíssimas equipas dão importância, mas uma das mais interessantes opções que uma equipa que quer mandar no jogo pela posse de bola tem ao seu dispor. Mascherano preferiu sempre lateralizar ou, quando com espaço, esticar nas linhas. Não é assim que se joga à bola. Lateraliza-se ou joga-se para trás quando não há opções para a frente, quando o adversário fechou bem e a pressão vertical é eficaz. Estica-se nas linhas quando a pressão horizontal do adversário congestionou o jogo de um dos lados, quando há espaço e tempo para a bola chegar em condições a um colega e quando esse colega tem apoios próximos. Mascherano utiliza estas duas opções sem critério, apenas porque entende que ele (repare-se no individualismo da coisa) tem condições para decidir desse modo e executar em conformidade.

Mascherano não pensa o jogo colectivamente. Individualmente, é um dos médios defensivos mais fortes do mundo. Colectivamente, é banal. E o problema de jogar no Barcelona é que pode não chegar ser dos melhores em termos individuais, se não se souber pensar colectivamente. Por não sabê-lo, Mascherano comprometeu sempre o jogo catalão. Nunca procurou o apoio frontal, nunca arriscou um passe vertical, que ganharia metros à equipa, quando um colega tinha perto de si um adversário (coisa que qualquer jogador habituado ao futebol do Barça faz de olhos fechados, sabendo perfeitamente que o colega vai devolver a bola), nunca jogou curto sem ser para o lado, em total segurança. Fez um jogo medroso, não comprometendo com perdas de bola ou com passes falhados, mas comprometendo com más decisões, simplesmente por não decidir pelo melhor. A melhor decisão não é simplesmente a que permite à equipa permanecer com a posse de bola. Se a equipa pode progredir e ultrapassar uma linha defensiva, com um simples passe, jogar para o lado é uma má decisão, ainda que segura. Mascherano teve oportunidades de sobra para fazer evoluir o jogo da sua equipa, mas optou sempre por um passe de menor risco. O Barcelona manteve a posse de bola, mas raramente conseguiu ser incómodo com ela, raramente a conseguiu fazer entrar nas linhas adversárias.

Mascherano nunca respeitou os movimentos de abaixamento do avançado ou do médio mais ofensivo, nunca explorou os movimentos entre linhas dos colegas. Preferiu sempre o passe certo e a bola longa. Com isso, fez do Barcelona uma equipa muito mais previsível. É por isso que as estatísticas individuais objectivas, que contabilizam números de passes e percentagens de passes acertados e fazem disso um critério irrevogável para aferir o rendimento de um jogador, não servem para nada. É que incorrem num erro crasso. O rendimento de um jogador é uma coisa colectiva e não pode ser calculado pela soma objectiva das suas intervenções individuais. Para se aferir o rendimento de um jogador, é necessário perceber o impacto que cada uma dessas intervenções individuais teve no rendimento colectivo. E isso, por mais que o pretendam, não pode ser calculado somando acções contabilizáveis e fazendo contas de algibeira. Mascherano, para aqueles que acham que podem contabilizar o rendimento de um jogador somando-lhe as acções mais visíveis, teria feito um jogo exemplar. Para aqueles que desconfiam disso e sabem que o rendimento é muito mais do que aritmética primária, Mascherano fez um jogo fraco. Foi incapaz de ligar, com bola, a equipa e, muita por sua causa, o Barcelona foi uma equipa demasiado especulativa, demasiado horizontal, demasiado previsível a circular a bola.

É verdade que o argentino saiu ao intervalo e é verdade que o Barcelona não melhorou significativamente. Mas também é verdade que a equipa já se encontrava a perder e tinha necessariamente de fazer as coisas mais depressa, o que conduziu a alguma precipitação. No seu lugar, na segunda parte, jogou Keita, que oferece mais ou menos o mesmo que o argentino, nessa posição. Também por isso, o Barcelona não melhorou substancialmente. O erro de palmatória de Guardiola foi subestimar o Hércules, que além de se ter apresentado muito personalizado, tinha jogadores interessantes na frente. O Barcelona circulou demasiado a bola à roda do bloco defensivo do adversário, não procurando movimentos verticais de penetração. Competia isso, em grande parte, ao médio defensivo, porque era aí que começava a construção blaugrana. Quando esse médio é apenas um pêndulo defensivo, quando não procura ser ele a iniciar os movimentos de ruptura, a equipa fica com menos armas do que habitualmente tem. Que diferença para Busquets! Mascherano tem muito que evoluir, se algum dia interessar a Guardiola que seja útil ao seu Barcelona. No Sábado, apesar da ficha imaculada com que as estatísticas o terão certamente apresentado, Mascherano foi, não só uma nulidade, mas o melhor amigo de um adversário cuja estratégia passava por esperar pelo Barcelona no seu meio-campo, com as linhas muito juntas e quase todos os homens atrás da linha da bola. Quando, em simultâneo com o argentino, coincidiu no onze Adriano, outro dos reforços desta época, o Barcelona jogou com menos dois. E ainda há uns palermas que gostam de falar nas contratações da época passada!

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

O Engodo da Bola

Referi há dias algo em que acredito há já muito tempo, mas a que só muito recentemente consegui dar uma expressão satisfatória. Sou, como se sabe, defensor da ideia de que a bola é tudo, em futebol. E sempre o fui. Sempre me pareceu, ainda que não o soubesse articular convenientemente, que ter a bola era a mais fundamental das coisas no jogo. Os argumentos que arranjava para defender esta ideia eram os tradicionais: sem a bola a equipa está sempre mais próxima de sofrer; sem a bola a equipa está sempre dependente do que o adversário fizer, etc. Mas houve sempre algo mais, houve sempre uma ideia difícil de explicar por palavras que me fazia acreditar que a bola era, enquanto instrumento, o mais importante de possuir num jogo. O aparecimento do Barcelona de Guardiola veio dar visibilidade a todas (ou quase todas) as ideias acerca do jogo que se defendiam por aqui, veio pôr num campo de futebol a teoria que o Entre Dez formulou em palavras desde que fora criado. E o Barcelona de Guardiola fez e faz com a bola precisamente aquilo que, para mim, faz da bola algo tão precioso. Ainda assim, continuava a ser complicado expressar em argumentos a razão pela qual é tão importante possuir a bola.

Ora bem, a bola é importante se, acima de tudo, for utilizada como engodo. Claro que é importante saber circulá-la, saber preservá-la, mas isso não chega. Sobretudo no último terço do terreno e sobretudo contra adversários que optem por defender com muitos homens atrás da linha da bola e com um bloco baixo, há que saber utilizar a posse da bola para fabricar os espaços necessários para se poder penetrar nessas defesas. Ora, é fazendo da bola um engodo que tal passa a ser possível. Nos dias que correm e, de acordo com as sofisticadíssimas filosofias defensivas dos tempos modernos, há cada vez menos espaços para jogar e, por mais velozes, fortes e hábeis que os jogadores sejam, dificilmente uma defesa concentrada e bem posicionada zonalmente permitirá veleidades aos atacantes adversários. A única coisa que uma defesa bem organizada não pode deixar de perseguir, porque se movimenta e posiciona de acordo com a posição relativa dela, é a bola. Assim, é fazendo com que a bola atraia de certo modo os defensores para onde se pretende que melhor se pode forçar uma defesa a abrir espaços. A bola, quando circulada com critério e imaginação, torna-se por isso o mais eficaz abre-latas no futebol dos tempos que correm.

Quando o adversário activa o seu pressing (e tal, podendo acontecer em qualquer zona do terreno, de acordo com as instruções do treinador, acontece necessariamente junto à grande área defensiva), o portador da bola é sempre alvo de pressão. Se, nestas alturas, a equipa que tem a bola tiver a capacidade para circulá-la rapidamente entre os seus vários jogadores, mudando o portador da bola velozmente, cria necessariamente indecisões e movimentações descoordenadas no adversário que está a pressionar. Se a bola entra num determinado jogador, esse jogador será alvo de pressão por um defesa; se esse jogador soltar a bola e a endossar a um colega, passará a ser esse colega o alvo da pressão. Ora, se isto for feito com velocidade e critério, e sobretudo muito continuamente, a simples alteração naquele que transporta a bola cria problemas na reacção do adversário que pressiona. Assim, trocando rapidamente a bola, troca-se rapidamente de portador da bola e obriga-se o adversário a mudar rapidamente de alvo de pressão. O que isto provoca é a necessária desorganização defensiva de quem está constantemente a reagir a uma nova situação.

Jogando com toques curtos, muitas vezes inconsequentes, forçando até por zonas muito congestionadas, não é por isso necessariamente mal jogado. Muitas vezes, é o modo mais eficaz de desorganizar o adversário, sobretudo se feito com qualidade. Ouve-se vezes sem conta dizer, da boca de sábios que repetem a matemática dos livros, que, por exemplo, a bola deve rodar por toda a equipa e que, se vem de um lado, deve obrigatoriamente ir para o lado contrário, por ser o menos povoado. Isto não tem necessariamente de ser assim e só quem não consegue interpretar com clareza os lances e prefere que as pessoas ajam de um modo geral, sem a análise no terreno, de acordo com o que mandam as boas maneiras e os livros, é que o pode proferir. O jogo deve ser virado quando tiver de ser virado. Muitas vezes, o melhor é insistir pelo mesmo lado, obrigar a que o adversário, com muitos homens naquela zona, se precipite na tentativa de recuperar a bola e abra espaços. Aliás, virar o flanco ao jogo tem apenas o ganho momentâneo de fazer com que a equipa que tem a bola possa respirar, mas não consiste num verdadeiro problema para quem defende, que tem tempo para bascular e para se organizar enquanto percebe onde a bola vai cair. Com vários toques curtos sucessivos, torna-se muito mais difícil ao adversário a capacidade de reorganização. Assim, insistir em toques curtos e em espaços de difícil penetração, se feito com qualidade, é muitas vezes a solução mais indicada para um lance.

Compete à equipa que tem a bola fazer dela não apenas a ferramenta do seu ataque, mas um instrumento de desarrumação da defesa contrária. Para que o consiga, precisa de transformá-la num engodo. O adversário, porque tem necessariamente de recuperá-la, persegue-a obsessivamente. Mesmo quando define as zonas onde efectua essa perseguição, não tem como não a perseguir. Se quem tem a bola for capaz de fazer com que o adversário, enquanto a persegue, se desorganize, terá também conseguido com que a necessidade deste em persegui-la passe a possuir uma natureza perniciosa. Assim, é tendo a bola e gerindo-a de um modo particular que se pode fazer com que uma necessidade vital do adversário se transforme no seu próprio cadafalso.

Ter a bola e saber como fazer dela um engodo é, portanto, não apenas um modo de jogar, mas o modo mais eficaz de jogar. É por isto que a bola é tudo em futebol. É que, contra esta estratégia, não há uma que se lhe possa superar. Toda a equipa que não tem a bola tem de persegui-la, quer o faça com um bloco alto, quer o faça com um bloco baixo. Pode desposicionar-se muito ou pouco, mas desposicionar-se-á necessariamente. Trata-se de uma imposição própria do jogo. Como tal, se a equipa que não tem a bola tem de persegui-la e a equipa que a tem souber como fazer da bola um engodo, não há como a equipa que não tem a bola não fique à mercê da equipa que a tem e sabe o que fazer com ela. Essa equipa não terá, por isso, nenhuma estratégia alternativa com que contornar a estratégia de um adversário que tenha e saiba usar a bola, restando-lhe tão-somente confiar na sorte ou na desinspiração desse adversário. Não há assim nenhuma estratégia defensiva que possa contornar ou combater o engodo da bola e, por isso mesmo, não haverá outra competência colectiva que deva ser mais ambicionada que esta. Fazer da bola um engodo, eis a meta de qualquer equipa verdadeiramente ambiciosa.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Respostas às Dúvidas de um Sábio

Sábio: O que é preciso um jogador ter para ser um bom central?

Alguém: Ser alto para ganhar bolas de cabeça e ser agressivo para desarmar os adversários.

Sábio: E quanto a um lateral, de que precisa um lateral?

Alguém: Um lateral, hoje em dia, tem de ser alguém com capacidade para fazer o corredor todo. Precisa, portanto, de ser rápido, de ter pulmão e de ser capaz de dar profundidade pela faixa.

Sábio: E para jogar no meio-campo, o que é preciso?

Alguém: É preciso correr e lutar muito, porque se está sempre em jogo.

Sábio: E para se ser um criador de jogo, também é preciso correr muito?

Alguém: Não. Um criador de jogo deve ser alguém com boa capacidade de passe e visão de jogo.

Sábio: E um extremo, o que precisa um extremo de ter?

Alguém: Um extremo precisa de ser rápido porque é na linha que há mais espaço e precisa de ter habilidade para criar desequilíbrios individuais.

Sábio: E um avançado, que características deve ter um bom avançado?

Alguém: Um avançado deve ser alguém com capacidade para marcar golos.

Sábio: Estou a ver. Então, se tivermos os centrais mais altos e agressivos, os laterais mais rápidos e resistentes, os médios mais lutadores, os criativos com melhor capacidade de passe, os extremos com mais velocidade e habilidade e os avançados que mais golos marcam, temos necessariamente a melhor equipa, certo?

Alguém: Não necessariamente. No futebol, nada é assim tão simples.

Sábio: Então? Há algo mais que os jogadores tenham de ter?

Alguém: Os jogadores não. Mas a equipa precisa de funcionar colectivamente.

Sábio: Não percebo. Se o central alto e agressivo ganhar as bolas todas com a sua altura e a sua agressividade, como é que os adversários serão capazes de criar perigo? Se os médios lutarem mais que os médios adversários, não será a equipa mais capaz que a adversária? Se os avançados marcarem mais golos, como é que se pode perder um jogo?

Alguém: Nada é assim tão literal. Há circunstâncias...

Sábio: Não entendo.

Alguém: Teoricamente, se tivermos os melhores em cada posição, temos a melhor equipa. Mas eles têm de se entender entre eles, não podem fazer tudo sozinhos.

Sábio: Mas a altura do central é do central, não da equipa. Assim como a sua agressividade. A velocidade dos laterais e a habilidade dos extremos é dos laterais e dos extremos, não da equipa. A capacidade de passe é dos criativos, não da equipa. A capacidade de marcar golos é do avançado, não da equipa. Se eles valem pelos seus atributos individuais, mas não podem fazer as coisas sozinhos, ou seja, usando os seus atributos individuais, em que é que ficamos?

Alguém: Ah! Mas eles têm de pôr os seus atributos individuais ao serviço do colectivo.

Sábio: Continuo sem perceber. Como é que se põe a velocidade que é própria de alguém ao serviço de uma entidade abstracta como o colectivo?

Alguém: Fazendo com que a velocidade tenha consequências positivas para a equipa.

Sábio: Sim, mas como?

Alguém: Fazendo com que o jogador não se valha apenas por ela.

Sábio: Ah, mas então isso significa que o melhor extremo, aquele que é mais rápido e habilidoso, não se pode, para que a equipa em que joga seja a melhor, valer apenas da sua rapidez e da sua habilidade.

Alguém: Sim, assim parece.

Sábio: Então de que tem de se valer mais?

Alguém: Não sei.

Sábio: Pois, bem me parecia. Parece que afinal o melhor extremo tem de ter, além de habilidade e velocidade, algo mais. Mas que coisa misteriosa é essa que ele tem de ter além da habilidade e da velocidade?

Alguém: Não sei. Tem de ser colectivamente eficaz, talvez.

Sábio: Sim, mas o que significa isso? De que atributos necessita um jogador para ser colectivamente eficaz?

Alguém: Não sei. Não consigo formular verbalmente uma resposta a essa pergunta.

Sábio: Já calculava que não. Só tenho mais uma dúvida. Disseste que o melhor defesa era o mais alto e o mais agressivo, que o melhor lateral era o que tinha mais velocidade e pulmão, de modo a ter capacidade para fazer o corredor todo, que o melhor médio era o que lutava mais, que o melhor criativo era o que passava melhor e o que tinha melhor visão de jogo, que o melhor extremo era o mais veloz e o mais habilidoso, e que o melhor avançado era o que marcava mais golos, certo?

Alguém: Certíssimo.

Sábio: E o que é preciso para se ser jogador de futebol?

Alguém: ?!?!?!

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Lições de Mestre (5)

A primeira coisa a dizer é que o lance não resultou em golo. A segunda é que isso é o que menos importa, no mesmo lance. Como intervenientes, dois jogadores que se separaram esta época, apesar de, a dada altura, parecer possível que ambos rumassem a Londres. Yoann Gourcuff é o herdeiro natural de Zidane, um criativo como não há muitos no futebol mundial que ostenta não só a capacidade imaginativa do astro francês como o mesmo estilo. Marouane Chamakh, por sua vez, é um avançado móvel, versátil, mas forte a jogar como apoio vertical, inteligente e rápido a executar, que gosta da tabela e do toque curto, sentindo-se confortável em espaços reduzidos. Tanto um como outro, estou certo, irão dar muito que falar nos próximos tempos. Fica a jogada, com as reflexões possíveis mais abaixo.



O lance começa na esquerda, com o adversário bem organizado defensivamente e havendo pouco espaço de penetração. O que fazem Gourcuff e Chamakh de seguida é notável. No meio de quatro adversários, com pouquíssimo espaço, completam três tabelas de seguida, acabando por arranjar espaço, em zona frontal, para o remate do marroquino. A capacidade criativa que este lance requer é imensa, assim como a velocidade a que os jogadores têm de pensar e de executar. A execução de calcanhar de Gourcuff não é por si extraordinária. O que é extraordinário é o entendimento que os dois fizeram do lance, a capacidade para perceberem como e quando deveriam executar. O remate não dá golo, mas o lance é uma autêntica invenção de uma ocasião de golo. Demonstra que é possível fabricar espaços, mesmo nas mais adversas circunstâncias. E para que se possam fabricar esses espaços, só há uma coisa fundamental: imaginação. É por isso que a criatividade, prima da inteligência, é o atributo mais importante no futebol moderno. A criatividade é aquilo que permite a um jogador encontrar espaços onde não os há, fabricar soluções de problemas insolúveis. Criatividade não é malabarismos, não é capacidade de drible, não é execução técnica refinada; é um atributo intelectual.

Quanto ao lance em si, releva dele a importância que a bola pode ter na criação de espaços. Trata-se do engodo da bola. Por mais concentrada e por mais bem organizada que uma defesa seja, há alturas em que se desorganiza, ainda que apenas momentaneamente. Normalmente, essa desorganização temporária dá-se no momento em que se efectiva a zona de pressão. Por exemplo, uma equipa que defenda junto à sua área, efectiva uma zona de pressão nas imediações da área. Significa isto que, nas imediações da área, todo o portador da bola deve ser pressionado e constrangido. Ora, é precisamente no momento em que se dá esse movimento de pressão, esse ataque ao portador da bola, que se gera a desorganização. Um defensor pressiona, outro movimenta-se de acordo com o movimento do primeiro e por aí em diante. É, sabendo isto, que a bola pode servir de engodo. Pode entrar num espaço, arrastando um defensor para esse espaço, para imediatamente a seguir sair desse espaço, criando zonas livres de adversários pela movimentação do defensor, que foi pressionar aquele que ia receber a bola. No fundo, isto é a consequência mais comum do famoso tiki-taka catalão. Os pequenos toques para o lado, para trás e para a frente parecem inconsequentes, mas não o são. Servem para isto, para desorganizar a estrutura defensiva adversária. Se uma equipa tiver capacidade para trocar a bola ao primeiro toque, fazendo-a entrar em zonas que suscitem movimentos de defensores para logo de imediato a tirar dali, conseguirá sempre fabricar os espaços de que precisa para penetrar em defesas fechadas. É assim que se joga futebol, fazendo da bola um engodo.

Este lance exemplifica na perfeição essa potencialidade. Chamakh dá em Gourcuff, que devolve de primeira ao marroquino. Este recebe e é imediatamente pressionado por um adversário, indo no engodo da devolução de Gourcuff. Dá novamente no francês, que, com um adversário nas costas, tabela de calcanhar, para o espaço vazio. Com esta tabela, ultrapassa-se o primeiro adversário, que fica incapacitado de reagir por estar preocupado com a bola. É nesta altura que sai a Chamakh um segundo adversário, novamente atraído pelo engodo da bola. Mas antes que este possa fazer mais do que pressionar, já Chamakh jogara de primeira novamente em Gourcuff. No mesmo instante, um quarto defesa, se contarmos com aquele que se mantém nas costas de Gourcuff, sai à bola, procurando limitar as possibilidades de Gourcuff. Gourcuff, porém, novamente de calcanhar, devolve pela terceira vez a bola a Chamakh, que ocupara o espaço vazio. Com esta terceira tabela, vence-se o segundo defesa que saiu a pressionar Chamakh e cria-se o espaço decisivo na zona central que permite o remate do marroquino. Com três simples tabelas, venceram-se quatro opositores. Isto só é possível porque o recurso técnico da tabela tem a potencialidade de chamar adversários e desposicioná-los. Enquanto a bola estiver num só homem, só um adversário sai a pressionar. Mas quando a bola viaja entre dois jogadores, há sempre pelo menos dois adversários a reagir à alteração no portador da bola. Trocando rapidamente a bola entre si, dois jogadores são capazes, por isso, de destruir defesas inteiras. Isto porque o portador da bola está constantemente a mudar e a reacção dos defensores é ditada pela posição da bola. É por isso que a bola, para quem sabe o que fazer dela, é a ferramenta fundamental do jogo. Só com ela se pode atrair os adversários para onde se deseja e fabricar os espaços que se pretende. Chamakh e Gourcuff conseguiram-no, neste lance, com mestria.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Os Golos de Liedson

Liedson é, há muito, um dos assuntos predilectos deste espaço. Uma das coisas que defendemos sempre é que se trata de um jogador que, embora mantenha um faro de golo apreciável, está incrivelmente sobrestimado. Do meu ponto de vista, Liedson tem como único atributo interessante o facto de marcar golos; em tudo o resto é um jogador banal ou até bem abaixo da média. Além de tudo isso, creio mesmo que a sua apetência para o golo advém de algo bem particular e é até parte da razão pela qual Liedson é depois mais fraco nos restantes momentos do jogo. Em poucas palavras, Liedson marca muitos golos (ou pelo menos, marca golos com alguma regularidade) porque não se preocupa senão com isso.

Esteja um colega a precisar de um apoio, seja necessário um movimento nas costas para criar uma situação de desequilíbrio, esteja ele de costas para a baliza e um colega de frente em melhor posição, Liedson prefere sempre procurar o golo. Toda a sua movimentação sem bola é no sentido da baliza, das zonas de finalização, para aproveitar ressaltos, bolas defendidas para a frente pelo guarda-redes, cruzamentos, etc. Se um ponta-de-lança deve ter este tipo de movimentações no seu código genético, não deve porém limitar-se a elas e deve, sobretudo, perceber quando é que as circunstâncias de jogo as requerem.

Ora, uma das coisas que sempre se disse aqui é que Liedson marca muitos golos porque só se preocupa com este tipo de movimentações, com o estar no sítio certo à hora certa, seja isso a melhor coisa a fazer ou não. Se isso lhe vale a reputação que, com o tempo, construiu, vale também uma menor capacidade colectiva à equipa em que actua. Em suma, Liedson marca mais golos, mas a equipa joga pior e ganha menos. O que este texto pretende é demonstrar que os golos de Liedson são, invariavelmente, resultado deste tipo de movimentação e que, ao contrário do que se diz, falta muita coisa ao avançado do Sporting para ser um grande avançado. Como se verá, os golos de Liedson são quase todos obtidos ao primeiro toque, isto é, sem preparação, e em zonas próximas da baliza. O que ele faz é aparecer muitas vezes nas zonas vitais e, como aparece lá muitas vezes, goza de muitas oportunidades para marcar. Não marca golos trabalhados por si, não marca golos de fora da área, nunca dispõe de lances de um para um com o guarda-redes, e marca muitos golos depois de ressaltos, depois de erros de adversários, ou em lances em que é só preciso meter o pé na altura certa e fechar os olhos. Fica o filme, ao ritmo de Mozart, com os lances dos golos marcados por Liedson na temporada transacta. Mais abaixo, algumas reflexões acerca dos mesmos.



1. Liedson marcou um total de 22 golos, 2 deles ao serviço da selecção e 20 ao serviço do Sporting: 13 golos na Liga, 4 na Taça UEFA, 2 na Taça de Portugal e 1 na Taça da Liga. De acordo com os minutos jogados em cada competição, Liedson marcou então 0,47 golos por cada 90 minutos na Liga Portuguesa, 1 golo a cada 90 minutos na Taça de Portugal, e 0,44 golos por cada 90 minutos na Taça UEFA. As suas médias de golos são assim parecidíssimas com a de anos anteriores, não havendo por isso grande alteração a esse respeito, ficando claramente atrás de jogadores como Mantorras, Farías ou Cardozo nesse aspecto.

2. Dos 22 golos que marcou, 14 foram obtidos de primeira, em respostas a cruzamentos em que tudo o que se impõe a um avançado é que ataque a zona de finalização no momento certo. Assim, 64% dos golos que marcou foram marcados graças a movimentos para zonas de finalização e em desvios oportunos.

3. Dos 22 golos, 4 foram obtidos por erros grosseiros não potenciados de defesas contrários, como sejam o falhanço do defesa do Penafiel, que perde a bola para Moutinho, ou a entrega de Nuno Santos, pensando que o jogo estava parado, ou o passe de Gustavo Lazaretti, que acerta nas pernas do avançado do Sporting e o deixa isolado, ou o falhanço clamoroso do central norte-coreano. A acrescentar a estes, obteve ainda 2 golos por obra do acaso, como sejam o golo contra a China, que lhe bateu nas pernas sem que houvesse da sua parte qualquer intenção de desviar a bola, e o segundo golo frente ao Belenenses, após confusão na área, com a bola a sobrar fortuitamente para ele. Ou seja, 27% dos golos marcados por Liedson foram obtidos por mero acaso, por erros alheios ou por pura sorte, sendo que em nenhum destes lances é possível apelar a qualquer espécie de mérito do avançado leonino. E ainda há quem diga que o rapaz não tem sorte...

4. De entre os 15 adversários na Liga, poderíamos, com algum grau de exactidão, eleger o Benfica, o Porto, o Braga, a Académica de Villas-Boas e o Rio Ave como as cinco equipas que melhor defendiam, aquelas que tinham conceitos de zona mais bem definidos e nas quais a interpretação do momento defensivo era mais bem conseguida. Ora, dos 13 golos que Liedson marcou na Liga da época transacta, só 1 foi a uma destas 5 equipas, precisamente ao Rio Ave, na goleada da segunda volta, e num jogo em que o Rio Ave sofreu cinco golos, defendeu muito pior do que o habitual e vinha de outra derrota por cinco golos, num período de clara descompressão, em que os objectivos do clube já tinham sido atingidos. Assim, podemos concluir que 92% dos golos de Liedson foram apontados contra equipas defensivamente menos bem organizadas e contra as quais a falta de qualidade e a previsibilidade das movimentações ofensivas de Liedson (que procura sempre a zona de finalização) menos se fazem notar.

5. De igual modo, dos 13 golos marcados por Liedson, só 3 foram marcados contra equipas que terminaram na primeira metade da tabela. Assim, 77% dos golos de Liedson foram obtidos contra equipas mais acessíveis, indiciando, de outro modo, o mesmo a que fiz alusão acima, que a capacidade goleadora de Liedson não é, de modo algum, regular, sendo muito influenciada pela qualidade do adversário.

O que estes números evidenciam é que o avançado do Sporting não goza da reputação que tem apenas por mérito próprio. Muito dela se edificou com base em números descontextualizados, assumindo-se a capacidade goleadora como resultado de um talento especial que, em quaisquer circunstâncias, se manifestava. Não é bem assim. Liedson não consegue manter a bitola contra equipas mais fortes e, sobretudo, contra equipas cujo modo de defender se baseie numa ideia colectiva. A razão pela qual isso é assim tem a ver com a outra evidência que estes números tornam clara: mais de dois terços dos golos de Liedson são obtidos do mesmo modo, aparecendo em zonas de finalização sem qualquer tipo de movimentação extraordinária, limitando-se a desviar a trajectória da bola. Acontece que esse tipo de capacidade pode ser-lhe útil contra equipas que não defendem bem, que apostam na capacidade individual dos defesas. Contra equipas que formam boas coberturas, em que se privilegia o ocupamento das zonas de finalização e não as marcações aos atacantes adversários, o espaço onde Liedson costuma aparecer é menor. Assim, a sua produtividade, contra esse tipo de equipas, diminui drasticamente. Sendo um avançado que marca sobretudo nessas situações, é um avançado limitado contra equipas que se defendem bem desse tipo de situações. Assim, Liedson, enquanto finalizador, é previsível contra essas equipas. Não tendo, igualmente, muitos mais recursos (raramente consegue isolar-se, não é bom no um para um com o guarda-redes, não é bom a rematar de meia distância), torna-se, enquanto finalizador, uma nulidade. Se acrescentarmos a isto o facto de a capacidade de finalização ser o seu único recurso interessante, concluímos que Liedson é um jogador banal, um jogador que goza de uma reputação que não condiz com a sua real qualidade essencialmente porque, apesar de marcar alguns golos, marca-os sobretudo contra equipas menos cotadas, eclipsando-se em jogos em que o grau de exigência aumenta (como, aliás, Pedro Pauleta), e não é sequer, enquanto finalizador, que é a sua melhor característica, um jogador excepcional. O problema é que as pessoas tendem a valorizar a regularidade sem um critério claro. É que, neste caso, a regularidade de Liedson é obtida às custas de uma irregularidade gritante, que faz com que marque muitos golos contra equipas fracas e poucos contra equipas melhores, ficando assim, no final, com uma soma agradável aos olhos dos míopes.

sábado, 31 de julho de 2010

Certezas (19)

A cara de miúdo, a alegria a jogar e a coragem são os atributos que mais transparecem. Por trás deles, está o enorme talento em que se funda toda a sua qualidade. Possuidor de um pé esquerdo finíssimo, é um jogador elegante, que trata bem a bola e com muitos recursos técnicos. Não é malabarista, como muitos, até porque a sua nacionalidade parece ser à prova dessas inconsequências, mas é extremamente habilidoso. Usando essa habilidade pelas razões certas e nas alturas certas, deslumbrou esta época ao serviço do seu clube, motivando a cobiça dos grandes do seu país. Acabou vinculado a um deles e tem agora todo um futuro promissor à sua frente. Distingue-se dos outros jovens da sua idade por parecer mais maduro, por ter chegado ao escalão sénior e se ter imposto sem dificuldades. A sua margem de progressão, até por estas características, é por isso muito grande. Joga preferencialmente como segundo avançado e seria um erro, pelo menos nesta fase da carreira, fazê-lo actuar como médio organizador de jogo. Trata-se de um jogador mais vertical, excelente no drible e que procura muito o último passe. É principalmente um desequilibrador e é, por isso, em zonas mais adiantadas do terreno que o seu potencial deve ser aproveitado. Como médio organizador, falta-lhe alguma lucidez e alguma capacidade para ponderar a melhor solução de passe em zonas mais recuadas. Não raras vezes, mesmo estando ainda consideravelmente longe da área, procura protagonizar o último passe, procura excessivamente o movimento de ruptura decisivo. Actuando na frente, com liberdade para aparecer ora nas linhas, ora no espaço entre linhas, ora a aproveitar as costas de um avançado mais fixo, pode explorar todo o seu talento sem prejudicar a equipa mais atrás. A sua evolução passa por isso por jogar como avançado móvel e, tratando-se de um jogador muito imaginativo, inteligente e com boa capacidade técnica, depressa crescerá o suficiente para perceber como deve actuar em zonas mais recuadas. Para já, é como atacante e não como médio que Mourinho deverá tentar tirar todo o proveito dele. E talvez daqui a uns anos a selecção espanhola tenha mais um prodígio na sua principal selecção. Assim evolua Sergio Canales...

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Beware the Jabberwocky

Tal como na edição anterior da Liga dos Campeões, ficará mais para a História uma das meias-finais do que propriamente a final da prova, neste caso, a eliminatória que opunha Barcelona a Inter de Milão. A esmagadora maioria das pessoas, após o apito final que carimbou a passagem do Inter, em pleno Camp Nou, à final de Madrid, não teve dúvidas: o Inter era um justo finalista. Creio, porém, que muitas destas opiniões estão viciadas por animosidades próprias. Só assim se explica o favorecimento tão vincado a uma equipa que, na segunda mão, só defendeu e, por pouco, por muito pouco, não foi eliminada. Que o Inter passou e que faz parte do futebol equipas que só defendem passarem, tudo bem. Que tenha merecido, incontestavelmente, essa passagem, é que me parece francamente duvidoso. Afinal, de um modo muito parecido, foi assim que a Grécia de Otto Rehhagel se sagrou campeã da Europa em 2004, e na altura não só a maioria das opiniões afirmava que a Grécia não merecera ganhar, como a própria balança das opiniões estava bem mais equilibrada. Enfim, do meu ponto de vista, isto só se explica porque o Barcelona de Guardiola incomodava, de maneiras diferentes, grande parte dos que vêem futebol.

Entre aqueles que defendem que o Inter foi um justo vencedor, haverá certamente simpatizantes incondicionais de José Mourinho. Este é o modo mais comum de se observarem factos errados e de se terem opiniões não fundamentadas e é muito parecido, em abono da verdade, com o sentimento de clubismo que tolda a visão a tanta gente. Em minha defesa, e para que não suscite precisamente o argumento contrário, quero deixar claro que o meu apoio ao Barcelona de Guardiola não é incondicional e que, caso o Barcelona não tivesse jogado bem, ou pelo menos o suficiente para merecer passar, não estaria aqui a defendê-lo. Não há, por isso, simpatia excessiva por uma das equipas a dificultar a observação objectiva do que se passou. No ano passado, com o Chelsea, o Barcelona jogou bem pior e teria aceitado muito mais facilmente a sua eliminação, embora o jogo da primeira mão fizesse com que merecesse, ainda assim, a passagem. Mas este ano o Barcelona, não tendo feito um jogo brilhante, fez o suficiente para marcar os dois golos de que precisava e só a sorte protegeu o Inter. Como tal, é-me até difícil perceber o argumento dos que dizem que Mourinho deu uma lição táctica em Camp Nou, quando na verdade perdeu o desafio, por pouco não era eliminado e só passou por causa da primeira mão.

Tirando estes, tirando também os que não suportam o próprio Barcelona, e tirando talvez ainda os que, convencidos de que o Barcelona fora ajudado na época passada (o que no fundo é uma mentira grosseira que maior parte das pessoas decidiu perpetuar), só consigo perceber tamanha posição por aquilo a que, em tempos, designei como um certo medo do desconhecido. É sobre isso que quero falar, pois é sobre isso que acho que se deve falar nesta altura. Os comentários imbecis acerca do que se passou em Camp Nou continuam a circular e criou-se agora uma tendência ignominiosa de vilipendiar e rebaixar o trabalho de Guardiola. Fala-se em Chygrinsky, como se algum dia tivesse sido expectativa de alguém o ucraniano ir para Barcelona para ser central de caras, esquecendo-se, por exemplo, que em sentido contrário ninguém esperava nada de Piqué e agora é, muito provavelmente, o melhor do mundo no seu posto; fala-se na época menos conseguida de Ibrahimovic, como se o sueco algum dia se tivesse evidenciado por ser um goleador extraordinário e como se o Barcelona não tivesse lucrado, em termos de jogo, com a presença deste; fala-se da ingenuidade de Guardiola, que não foi perspicaz estrategicamente, como se a insistência nas suas ideias não fosse a principal razão para o Barcelona ser a melhor equipa de todos os tempos e para que tivesse ganho tudo o que ganhou. Subjaz, a todas estas críticas, uma só coisa: o Barcelona transformou-se num monstro e, para o ser humano comum, que não compreende senão o que tem diante dos olhos, todo o monstro incompreensível tem de morrer, sob pena de nos deixar sem saber o que fazer com a sua presença.

É isto que é, para 99% das pessoas, esta equipa. Reconhecem a sua grandeza, mas ainda assim desejam intimamente a sua queda. Respeitam-na por medo e não por reconhecerem nela a grandeza humana que lhe está por trás. Admitem a sua força, mas torcem para que um herói qualquer, humano como eles, embriagado de uma humanidade que possam compreender e suportar, a liquide. Faz parte da pequenez humana, e fez sempre, estar contra os que estão para além da mediania; é parte integrante da vida comunitária a repressão da singularidade, o conduzir ao desterro os mais brilhantes. O Barcelona, para o mundo do futebol, é um monstro que tem de ser derrotado pela simples razão de que lhe lembra a mediocridade própria. É esta e não outra a principal causa de tanta exaltação com o insucesso europeu de Guardiola. O Barcelona ofuscou de tal modo o passado futebolístico que o precedeu que criou à sua volta uma aura que, para aqueles que habitam o mesmo tempo, se tornou insuportável. Por não compreender nem poder irmanar aquilo que é este Barcelona, o resto do mundo sentiu nesta equipa uma ameaça à sua existência medíocre. Todas as hostilidades que se seguiram à eliminação catalã são somente a activação do instinto de auto-preservação de uma espécie que, sentindo correr perigo de vida, viu neste acontecimento a oportunidade ideal para espezinhar definitivamente o predador que temiam.

O futebol é, a meu ver, uma das coisas que melhor representa a evolução civilizacional a que se chegou, ainda que, naturalmente, conserve em si instintos primitivos evidentes. No entanto, é no próprio futebol e neste caso em específico que o ser humano demonstra que, apesar dos 3000 anos de civilização, continua, na sua raiz, uma espécie animal conservadora e estúpida, uma espécie bárbara que, apesar de viver em comunidade, ter leis, andar vestida e ter inventado a linguagem, permanece mais próxima dos mamutes do que do ideal de uma civilização avançada. Somos uma espécie que precisa de se saber segura, que precisa de aniquilar o que é do domínio do misterioso, que precisa de saber palpáveis todos os cantos do mundo. Temos medo de monstros e só estamos bem quando expulsamos do nosso círculo de gente gorda e que procria esses monstros que não compreendemos. Ora, é precisamente sobre isso que versa "Jabberwocky", o célebre poema contido em Through the Looking Glass, o segundo livro das aventuras de Alice no país das maravilhas:

JABBERWOCKY

'Twas brillig, and the slithy toves
Did gyre and gimble in the wabe;
All mimsy were the borogoves,
and the mome raths outgrabe.

'Beware the Jabberwocky, my son!
the jaws that bite, the claws that catch!
Beware the Jujub bird, and shun
the frumious Bandersnatch!'

He took his vorpal sword in hand:
Long time the manxome foe he sought -
So rested he by the Tumtum tree,
and stood awhile in thought.

And as in uffish thought he stood,
The Jabberwock, with eyes of flame,
Came whiffling through the tulgey wood,
and burbled as it came!

One, two! One, two! And through and through
the vorpal blade went snicker-snack!
He left it dead, and with its head
he went galumping back.

'And hast thou slain the Jabberwock?
Come to my arms, my beamish boy!
O frabjous day! Callooh! Callay!'
He chortled in his joy.

'Twas brillig, and the slithy toves
Did gyre and gimble in the wabe;
All mimsy were the borogoves,
and the mome raths outgrabe.

Em nenhuma parte do poema se diz o que é o Jabberwocky e grande parte das palavras que o compõem não existe. Não é possível inferir do poema senão que existe algo que se chama Jabberwocky, que tem mandíbulas que mordem, garras que agarram e olhos flamejantes. Ainda assim, a presunção é de que se trata de um ser hostil, com o qual tem de se ter cuidado e que é preciso matar. Não é incomum, em adaptações para cinema dos livros de Lewis Carroll, que o Jabberwocky, ainda que não tenha existência nas aventuras de Alice e que seja apenas esta figura difícil de descrever que só aparece num poema dentro dessas mesmas aventuras, apareça como um dragão horrendo, um bicho medonho e o ser mais malévolo do País das Maravilhas. O Jabberwocky, como se pode comprovar pelo poema, não é nada disto. É a interpretação excessiva e errada das pessoas que transforma mandíbulas, garras e olhos em dragões, que pega em dois ou três pormenores de algo que desconhece para construir uma imagem que lhe é familiar.

O Barcelona de Guardiola é o Jabberwocky e o mundo que não o compreende é o pai que adverte o filho para que tenha cuidado com ele. Como não o compreende, teme-o e não pretende senão matá-lo com uma "espada vorpal". Depois de morta a besta, resta ao ser humano que matou o conforto dos braços do pai, o que mais não é que a consolação de reconhecer que sobreviveu mais um dia. A pequenez do mundo, que se regozijou com a derrota dos catalães, pôde assim, com tal derrota, preservar a sua existência e, por conseguinte, a sua pequenez, isto é, a sua própria essência. Tal como qualquer espécie ameaçada, os cânticos de glória em torno do monstro caído mais não são que o testemunho da própria estupidez de uma espécie que não compreende outra espécie e tem, por instinto e não por racionalidade, a conservação dos seus hábitos estúpidos e a intolerância dos hábitos dos outros. Os seres humanos raquíticos e pobres de espírito que agora saltam eufóricos em cima do corpo do monstro, cantando e bebendo alacremente, são só os justos descendentes da torpe seita humana que, no passado, fez o mesmo com espécies diferentes das suas, raças diferentes das suas e famílias diferentes das suas. Trata-se do reflexo inequívoco do mais interiorizado vício humano: a intolerância com a diferença. E o que preside a essa intolerância é a incompreensão, filha primogénita da estupidez, mãe de todos males humanos.

O futebol do Barcelona (assim como, em parte, o futebol apresentado pela Espanha campeã do mundo) não é só mais um estilo de futebol. Trata-se de uma evolução conceptual, com diversas inovações que rompem com o passado. O futebol de toque curto, para o lado e para trás, privilegiando a posse de bola acima de tudo, é talvez a imagem de marca desse futebol. Não é a única característica extraordinária deste modo de jogar, mas é o mais desconcertante. A aparente inconsequência, em muitos momentos, dessa circulação, é uma absoluta novidade. Nunca a inconsequência fora vista como uma virtude. Para os que não conseguem pensar por si e que estipulam verdades de acordo com o que conhecem, um futebol que assenta, em parte, na inconsequência, é alvo de suspeição. É por isso que o "tiki-taka" não é unânime. Para muitos, é demasiado elaborado e escapa ao princípio máximo do jogo, que devia ser o ataque constante. No fundo, são as mesmas pessoas que não conseguem perceber que no futebol há mais do que o objectivo do golo que não percebem a utilidade da "inconsequência" desse tipo de futebol. O mesmo se poderia dizer em relação aos poucos remates, aos poucos passes longos, ao abdicar dos momentos de transição, etc. O comum mortal acha que o futebol é um conjunto fixo de ideias e, por achar isso, não é capaz de compreender o quão revolucionária é a filosofia do Barcelona de Guardiola. Por não a compreender, intuindo-lhe porém a força, teme-a. E por temê-la, na sua pequenez e na sua impotência, só pode regozijar-se com a sua queda.

P.S. O Barcelona não ganhará sempre. A Espanha não ganhará sempre. Mas é notável que o modelo de Guardiola e o tipo de jogador ideal para o futebol de toque curto, rendilhado, baseado na técnica e na inteligência, tenham ganho o que ganhou o Barcelona em 2009 e tudo a nível de selecções nos últimos três anos. Há muito tempo que uma ideia tão clara sobre o jogo não se elevava acima de tudo o resto com tanta supremacia e que não assustava tanto o mundo. Está feita a revolução. Antecipa-se o futuro da modalidade, como de resto, muito antes da clara demonstração de força dos últimos três anos, já o Entre Dez apregoava.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Os melhores do Mundial 2010

Uma semana e tal depois, eis os melhores do mundial, em 433. De acordo com o esquema táctico, é natural que um ou outro jogador não se encontre na posição exacta em que actuou ou que tenha actuado nessa posição apenas algumas vezes.

Guarda-Redes: Iker Casillas
Defesa Direito: Maicon
Defesa Esquerdo: Fábio Coentrão
Defesas Centrais: Gerard Piqué e Ricardo Carvalho
Médio-Defensivo: Sergio Busquets
Médios-Ofensivos: Xavi e Iniesta
Extremo Direito: Thomas Müller
Extremo Esquerdo: David Villa
Avançado: Diego Forlán

Treinador: Joachim Löw

Suplentes:

Guarda-Redes: Manuel Neuer
Defesa Direito: Philip Lahm
Defesa Esquerdo: Jorge Fucile
Defesas Centrais: Juan e Puyol
Médio-Defensivo: Mark Van Bommel
Médios-Ofensivos: Leo Messi e Wesley Sneijder
Extremo Direito: Arjen Robben
Extremo Esquerdo: Mesut Özil
Avançado: Miroslav Klose

Treinador: Marcelo Bielsa

O melhor jogador da competição foi, em nosso entender, Andrés Iniesta.

domingo, 18 de julho de 2010

A maldição de Bento...

Foi um primeiro tempo que deverá ter criado ainda mais reticências sobre a época que se avizinha.O conjunto orientado pelo técnico Paulo Sérgio apenas apresentou como positivo o facto de não abusar no jogo directo. De resto, desde o sistema táctico utilizado, até aos movimentos preconizados pelos seus jogadores, excepção feita a Postiga, Carriço e Evaldo, o desafio frente ao Young Boys nao deixou antever nada de bom. A equipa demorou demasiado tempo a formar um bloco compacto nas transições defensivas, com André Santos e Maniche a conceder muitos espaços nas suas costas, facto que só não foi aproveitado de forma mais eficiente devido à falta de qualidade do adversário leonino.

Notou-se na equipa leonina a preocupação de integrar os laterais nos movimentos ofensivos, deixando no entanto os avançados muitos sós nas acções entrelinhas. Ainda que a espaços se notasse a intenção de os extremos efectuarem movimentos diagonais de aproximação aos avançados. O problema reside na ocupação correcta dos espaços nas transições, ficando a equipa demasiado dependente das suas individualidades para que se mantenha equilibrada durante os vários momentos de jogo.

Na segunda parte, com a entrada de Nuno André Coelho e a subsquente alteração táctica, a equipa leonina conseguiu alguns movimentos mais interessantes, sendo que os mais relevantes foram os movimentos que permitiram o surgimento dos dois médios-centros entre linhas, facto que resultou num maior número de problemas colocados à equipa suíça.

O segundo encontro apresentou um Sporting mais sólido e mais forte nas transições, destacando-se a maneira como a equipa efectou a pressão alta. No processo ofensivo, o pormenor, até ver bastante interessante e profícuo para a equipa, de os extremos jogarem e procurarem movimentos interiores, sendo que os movimentos exteriores foram efectuados principalmente pelos laterais. Mas isto apenas até se regressar ao 442 clássico. A partir desse momento e até ao final do encontro, o Sporting voltou a funcionar como um amontoado de jogadores, demonstrando enormes fragilidades nos processos ofensivos.

Frente ao PSG, voltou a opção inicial pelo 442 clássico, sendo que neste jogo se notou a intenção de os alas jogarem mais por dentro, o que torna ainda mais difícil de perceber a opção por este sistema táctico. Durante bastante tempo, notaram-se as dificuldades do Sporting nas transições, recorrendo em demasia ao jogo directo para os seus avançados, ainda que as únicas jogadas dignas de registo tenham resultado da iniciativa de um deles: Postiga. Graças à inteligência do avançado, que soube gerir posse da bola fazendo as pausas necessárias, a equipa pôde reorganizar-se para que pudesse desenvolver alguns ataques de forma apoiada e organizada. Todavia, e aqui que reside o principal problema do Sporting, o sistema obriga os seus jogadores a jogarem em constante desvantagem e desconforto, ficando obrigados a esconder as debilidades desse sistema.

Paulo Sérgio até tem pinta de ser um porreiro, mas ou emenda a mão e opta por um sistema que permita a equipa jogar à bola, ou quando for corrido de Alvalade nem esse epíteto vai manter. Mais do que jogadores, estava na altura de se recrutarem treinadores competentes. Se é cedo para crucificar Paulo Sérgio? Talvez - e espero estar errado - mas os seus primeiros dias como timoneiro da nau leonina não auguram nada de bom...

terça-feira, 13 de julho de 2010

Campeonato do Mundo dos Idiotas

Há quem tenha opiniões esquisitas, há quem tenha opiniões erradas e há quem tenha opiniões que não devia ter. Há um quarto grupo de pessoas que tem opiniões que não consigo classificar. É o caso de Miguel Lourenço Pereira, que escreveu preciosidades atrás de preciosidades neste brilhante texto e respectivos comentários. Findo o campeonato do mundo de futebol, eis o campeonato do mundo dos idiotas.

Antes da final do campeonato do mundo e antes também de escrever um texto em que confessa o seu desdém para com pessoas que não sabem da existência de um campeonato do mundo não-oficial, Miguel Lourenço Pereira decidira escrever um texto em que a principal ideia era equiparar esta selecção de Espanha às tradicionais selecções italianas. A sugestão, só assim, já provoca o riso. Mas vejamos o que diz concretamente.

1. Embora comece por considerar que a Espanha se apurara para a final com justiça, percebemos que o diz simplesmente porque se apurou. Continuando a ler, é com facilidade que compreendemos que não nutre profunda admiração pelos espanhóis e que estava obviamente a torcer pelo apuramento alemão. Diz então que o jogo espanhol é "horizontal e irritante". Não sei por que razão o diz, até porque não há outra selecção no mundo que faça tantos passes verticais e que consiga penetrar verticalmente, pelo meio, como a Espanha. Quanto à irritação, percebo-a apenas se houver da parte de quem sofre essa irritação um certo desconforto com o que é bom. O futebol espanhol, para Miguel Lourenço Pereira, é certamente irritante do mesmo modo que a música de Beethoven é irritante.

2. Continua Miguel Lourenço Pereira, afirmando agora que a Espanha não joga bem e que "esta equipa continua a funcionar bastante melhor como um hábil producto de marketing acente na escola do Barcelona". Gosto especialmente da forma como decidiu trocar os dois "s" do verbo "assentar" pelo "c", certamente mais económico e menos "horizontal e irritante". Aliás, a obsessão com a letra "c", nesta frase, é incrível, ao usar a letra na palavra "produto", numa espécie de fenómeno de hiper-correcção contra o novo Acordo Ortográfico da língua portuguesa. Mas achar que esta equipa joga assim por efeitos de marketing, o que quer que isso queira dizer, só numa cabecinha muito diferente. Não sei, mas parece que Miguel Lourenço Pereira está a dizer que os jogadores espanhóis, em vez de estarem a jogar futebol, estão constantemente a protagonizar um reclame desportivo. Será isto?

3. Prosseguindo, diz Miguel Lourenço Pereira que a selecção espanhola "abdicou de jogar bem para ganhar", tendo herdado "essa cultura italiana que hoje mais nenhuma equipa no Mundo tem". Gosto aqui também do uso da maiúscula na palavra "mundo", como se estivesse a falar de uma coisa maior que o próprio mundo. Talvez Miguel Lourenço Pereira tenha um mundinho (com maiúscula, claro) só seu. Isso explicaria muita coisa. O que é extraordinário é que Miguel Lourenço Pereira consegue achar que a Espanha não jogou bem este mundial, apesar de ter dominado todos os jogos, de ter tido constantemente mais bola, de ter empurrado vários adversários para as imediações da sua baliza. Para o senhor Miguel Lourenço Pereira, nada disso interessa, assim como não interessa as selecções italianas terem por cultura precisamente o oposto, isto é, abdicar da bola, entregar a iniciativa ao adversário, remeterem-se ao momento defensivo e atacar venenosamente pela certa.

4. Querendo justificar a afirmação anterior, diz Miguel Lourenço Pereira que "não se vê nessa troca de bola lateral constante um fluxo de ideias como as equipas que marcaram a evolução do jogo". Já sabíamos que o senhor Miguel Lourenço Pereira tinha um problema oftalmológico que o impedia de ver coisas verticais, mas ficamos agora a saber que também não é capaz de perceber na troca de bola espanhola qualquer ideia. Onde, de facto, abundam ideias, e das boas, é na cabecinha do senhor Miguel Lourenço Pereira. Não sei ao certo que equipas é que, para Miguel Lourenço Pereira "marcaram a evolução do jogo", mas pela conversa cheira-me que está a falar do Boavista de Jaime Pacheco.

5. Diz ainda Miguel Lourenço Pereira que o futebol da Espanha está "a anos-luz de outras grandes selecções" e que "em números, serão o pior finalista de que há memória, incapazes de ganhar por mais de 1-0 nos jogos a eliminar", sendo que "nem a pior azurra" teve números tão escassos. Confesso que a história dos números já chateia. As tartarugas que acham que os números servem para alguma coisa esquecem-se que esta Espanha passou o mundial a jogar contra equipas fechadinhas lá atrás, como a Suíça, Portugal ou Alemanha, e que, naturalmente, é muito mais difícil vencer por muitos golos quando o adversário tem por estratégia não atacar durante 90 minutos. Em nenhum jogo a Espanha foi inferior ao adversário e em todos merecia ganhar por mais de um golo de diferença - era isto que os idiotas deviam ter em conta e não a inutilidade dos números, hábito norte-americano que no futebol não tem nem pode ter aplicação eficiente. O problema do senhor Miguel Lourenço Pereira, agora percebemos, é achar que a força desta Espanha está espelhada nos seus números. Não está, como nada está espelhado nos números, em futebol. É porque a Espanha marcou poucos golos (e não porque tenha subjugado todos os adversários pela posse de bola) que Miguel Lourenço Pereira a considera parecida com a Itália. A estupidez da comparação não está por isso nas conclusões, mas nas premissas e no método de análise.

6. A propósito do jogo com a Alemanha, diz Miguel Lourenço Pereira que a razão pela qual a Espanha ganhou facilmente aos alemães não se explica por mérito dos espanhóis, mas sim porque a Alemanha "não quis fazer o jogo duro de pressão alta de suiços, portugueses e paraguaios, que optaram por não deixar a Espanha jogar confortavelmente com a bola". Mais uma vez, há qualquer coisa de muito esquisito com o cérebro do senhor Miguel Lourenço Pereira. Não sei ao certo que mundial andou a ver este senhor, mas não foi certamente o da África do Sul. Os suíços passaram 90 minutos encaixotados na sua área e Portugal pressionou sempre atrás da linha de meio-campo. A única equipa que optou por uma pressão mais alta foi o Paraguai, e ainda assim privilegiou zonas de pressão à entrada do meio-campo espanhol. Miguel Lourenço Pereira acha que se tratou de pressão alta. São opiniões. Também haverá, por certo, quem ache que os sete anões eram, na verdade, gigantes.

7. Quando incitado por alguém, na caixa de comentários, a justificar a sua afirmação acerca da semelhança entre a Espanha e a Itália, Miguel Lourenço Pereira diz o seguinte:

"Fico contente que tenha vontade de rir, mas basta olhar para a campanha da Itália em 2006 para perceber a comparação. Uma fase de grupos mediana, com um apuramento algo trapalhão, um jogo de Oitavos com golo polémico, uma eliminatória de Quartos demasiado sofrida e um excelente jogo nas meias-finais, quando é a doer, contra uma equipa melhor".

Lá está. Miguel Lourenço Pereira não está a comparar estilo de jogo nem qualidade de jogo; está a comparar campanhas. Ou seja, números. A obsessão matemática vale-lhe por isso a idiotia de não perceber tudo o que está para lá dessa matemática. E consegue, por isso, porque ignora o mais importante, comparar o dia com a noite. Se eu também ignorasse todas as propriedades que distinguem o branco do preto e me cingisse apenas ao facto de ambas as cores estarem dentro dos limites do espectro visível, também poderia dizer que o branco é igual ao preto. O que Miguel Lourenço Pereira está a fazer, por isso, é uma espécie de batota intelectual: de entre vários dados a ter em conta, apenas lhe interessa aquele que torna as duas equipas semelhantes: o facto de terem tido sucesso com números parecidos.

8. O carácter anedótico da proposta de Miguel Lourenço Pereira, porém, não fica por aqui. Diz ainda que "esta maturidade competitiva dos espanhóis, capaz de aguentar tudo e todos, compensa a falta de um toque de classe, improvisação e genialidade." Falta de classe, improvisação e genialidade? Que outra selecção teve algum dia mais classe, improvisação e genialidade que esta Espanha? Depois de voltar a frisar que "a Espanha é uma equipa horizontal" (a mais falsa das suas barbaridades), o absurdo da tese de Miguel Lourenço Pereira chega ainda ao ponto de sugerir que a equipa espanhola tem "muitos problemas ofensivos" e que, "se não fosse assim não era a primeira equipa finalista da história a chegar tão longe com 3 eliminatórias a 1-0 cada um". Fica evidente, uma vez mais, que para Miguel Lourenço Pereira, uma equipa que ganha várias vezes por 1-0 é necessariamente alguém com "muitos problemas ofensivos". Uma vez mais, carece a análise de Miguel Lourenço Pereira de algum tacto e de alguma inteligência. Uma boa razão para uma equipa não fazer mais golos é o facto de jogar tanto, de ter tanto a supremacia do jogo, que o adversário se recolhe atrás para perder pelo mínimo possível. Mas o que é extraordinário é que a equipa que mais ataques fez em toda a prova seja uma equipa horizontal e com muitos problemas ofensivos.

9. A incrível imaginação de Miguel Lourenço Pereira permite-lhe ainda dizer coisas como:

"O problema está no estilo de jogo. Xavi, Iniesta, Silva ou Navas, são jogadores que procuram quase sempre o passe. Daí que o destaque no Barça seja o Messi, o homem que joga verticalmente para o golo, quando os outros jogam para a "orquestra"".

Para Miguel Lourenço Pereira, os problemas ofensivos vêm do estilo de jogo, interpretado por jogadores que procuram quase sempre o passe. Segue-se deste raciocínio que a equipa espanhola deveria apostar mais no remate antes de meio-campo e que um estilo de jogo que dê preferência ao pontapé sem nexo (por oposição ao gesto técnico do passe), às correrias parvas e à tentativa de marcar golo sempre que se está no meio-campo ofensivo é um estilo, na cabeça de Miguel Lourenço Pereira, com menos problemas ofensivos. Faz sentido. Para este senhor, jogar à bola é como dar marteladas num prego. Como se não bastasse, tem a capacidade de juntar a Xavi, Iniesta e Silva, jogadores de toque curto e refinado, que procuram a tabela e jogam de cabeça levantada, o jogo rectilíneo, individualista e de espaço nas costas das defesas de Jesus Navas, como se uma coisa tivesse a ver com a outra. Para finalizar, ainda é capaz de, num tom sarcástico, elogiar a verticalidade de Messi (ignorando que o argentino privilegia o mesmo tipo de coisas que os colegas do Barcelona) e menosprezar o futebol dos restantes colegas que, segundo ele, jogam apenas para o espectáculo. Aquilo que Miguel Lourenço Pereira não consegue perceber é que existe uma coincidência entre o estilo de "orquestra" desse futebol e a eficácia do mesmo. E isto por uma só razão, que desconfio que o senhor Miguel Lourenço Pereira ainda está para descobrir: é que futebol não é halterofilia.

10. A saga continua com o seguinte:

"Espanha abre muito bem o campo, fecha muito bem os espaços defensivos, troca muito bem a bola pelo meio, numa série de 50 passos sem sentido que não o de nao perder a bola, e subitamente tenta passes rápidos para o espaço onde surge um jogador veloz para encarar. Ou, com defesas mais fechadas, procura, qual equipa de andebol, circular a bola à volta da área à procura do falho de marcaçao (golo a Portugal) ou do remate de meia distancia (papel de X. Alonso, Ramos ou Villa)."

O único sentido que Miguel Lourenço Pereira encontra para a troca de bola espanhola é o não perder a posse de bola, como se isso por si só fosse mau. E sugere ainda que os espanhóis trocam a bola sempre à espera de uma falha de marcação, não arriscando o passe se tal não ocorrer. O que Miguel Lourenço Pereira não percebe é que a posse de bola serve precisamente para provocar esses erros e que os cinquenta passes têm, além da virtude de permitir manter a posse de bola e, por isso, não ter de defender, a maior virtude de fazer com que o adversário, na tentativa de recuperar a posse de bola, se desposicione. Mais brilhante do que isto só mesmo o sotaque brasileiro com que articula o seu pensamento nesta frase, usando não só o extraordinário verbo "encarar" como inventando o substantivo masculino "falho".

11. Voltando a querer impingir a sua teoria de que isto é exactamente o mesmo que aquilo que os italianos fazem tradicionalmente, Miguel Lourenço Pereira afirma então o seguinte:

"Esse modelo de jogo é bastante similar ao historico futebol italiano, sempre com um ponta de referencia, um meio campo estendido pelo terreno de jogo, um duplo pivot-defensivo e um regista (Xavi como Pirlo) a pautar o jogo. Com menos "tiki taka" inconsequente, que os italianos são bem mais práticos. Pode não ser tão estético, mas o jogo italiano de base é muito similar ao jogo espanhol desta equipa. "

Se alguém, algum dia, viu a Itália a jogar qual equipa de andebol, a circular a bola pelos seus jogadores contra uma defesa compacta, enfiada na sua grande área, esse alguém foi Miguel Lourenço Pereira, pois garante que isso é precisamente o que os italianos costumavam fazer. Embora com menos trocas de bola, que os italianos não têm a paciência de santo dos espanhóis. É, portanto, com sabedoria que termina, dizendo que a principal diferença entre o futebol desta Espanha e o futebol dos italianos é uma diferença estética, sendo o resto "muito similar". Como disse no início, não sei se consigo classificar opiniões deste tipo. Parece-me francamente injusto tentar contrariar opiniões de arcas frigoríficas.

12. Já para o fim da conversa na caixa de comentários, Miguel Lourenço Pereira deixa finalmente perceber aquilo que está por trás de todos estes disparates:

"O português tem uma obsessão preocupante com tudo o que vem de Espanha, um sentimento de pequenês mental que faz com que tudo engrandeça. Da mesma forma que Espanha olha para o resto do Mundo aliás."

Trata-se, portanto, de um ódio mesquinho ao povo espanhol, de uma generalização pateta que tem eco no desdém pela selecção que representa o povo que abomina. A análise da selecção espanhola é assim influenciada pelo sentimento que nutre pelo povo que essa selecção representa. O que Miguel Lourenço Pereira, contudo, não percebe é que, da mesma forma que há portugueses que padecem daquilo a que Fernando Pessoa chamou "provincianismo", que consiste em elogiar tudo o que vem de fora, neste caso, de Espanha, e que coincide com a "pequenês mental" a que Miguel Lourenço Pereira se refere, há também portugueses que, num ponto diametralmente oposto, padecem de um nacionalismo tonto que consiste em rejeitar obsessivamente o que vem de fora, neste caso, de Espanha, e que é no fundo a doença do senhor Miguel Lourenço Pereira. Mais engraçado é quando a pessoa que o faz vive ou trabalha em Madrid.

13. Logo a seguir, vem a minha frase preferida: "ninguém espeterá 4 a esta equipa porque o seu futebol cinico, disfarçado de estética de museu, nunca o permitiria." Numa só frase, Miguel Lourenço Pereira consegue transgredir várias vezes a gramática portuguesa, primeiro ao inventar o verbo "espeter", depois esquecendo o acento de "cínico", e finalmente usando o condicional "permitiria" na oração causal quando na oração principal tentara usar um futuro. O jornalismo é tão bonito! Mas o que é importante é que, para Miguel Lourenço Pereira, a Espanha joga um futebol cínico, que parece muito bonitinho e servir para entreter, mas que afinal de contas é um engodo para atrair o adversário e depois atacar pela certa, como faziam as selecções italianas. Aquilo que Miguel Lourenço Pereira não percebe é que ter a posse de bola, e fazer tanto por tê-la, como seja pressionar alto ou não a perder à toa, é a maior declaração de intenções de uma equipa. Ao ter a posse de bola, a Espanha deixa necessariamente de ser cínica. Quer a bola, assume que a quer, e quer a bola para vencer o jogo. O adversário sabe-o perfeitamente e é por isso que se fecha a sete chaves lá atrás. Isto é o oposto do cinismo italiano, cuja estratégia consistia em "fingir" não querer atacar e não querer a bola para depois, assim que a recuperava, chegar à frente e, sem rodeios, sentenciar os desafios. Se há alguma coisa que a Espanha não é é cínica. E o futebol dos espanhóis é tudo menos disfarçado.

14. Quando confrontado com a ideia de que a Itália, ao contrário da Espanha, se sentia confortável era sem a bola, Miguel Lourenço Pereira propõe que tal acontecia porque, ao contrário da Itália, que era uma selecção multifacetada e se sentia confortável a jogar de muitos modos, a Espanha "joga sempre o mesmo estilo de jogo, mesmo tendo opçoes para outras abordagens". Para Miguel Lourenço Pereira, portanto, a Espanha está refém do seu estilo de jogo horizontal e irritante, com muitos problemas ofensivos, no qual os jogadores só sabem fazer passes. Com tantas deficiências no estilo de jogo e não tendo competência para jogar de outro modo, gostava muito que o senhor Miguel Lourenço Pereira explicasse como é que a Espanha conseguiu ser campeã do mundo.

15. Por esta altura, intrometeu-se um leitor espanhol na conversa, obviamente para criticar, com bons argumentos, a proposta atoleimada de Miguel Lourenço Pereira. Quando este leitor, apresentando como argumentos o facto de a Espanha, ao contrário do que acontece tradicionalmente com as selecções italianas, ter sido a equipa que mais rematou, que mais passes e posse de bola teve, que mais faltas sofreu e que menos faltas fez, dinamitou o argumento de Miguel Lourenço Pereira, a resposta não podia denotar melhor a xenofobia evidente desde o princípio do texto, assim como a estultícia que lhe vem atrelada, e Miguel Lourenço Pereira, depois de sugerir, com imbecilidade e despeito, que até os galegos podem opinar sobre futebol, acaba por contra-argumentar com isto:

"Uma equipa com muita posse de bola no miolo nao é uma equipa ofensiva. É uma equipa controladora. O que é bem diferente. Contra defesas organizadas há alternativas tácticas que Espanha nao se presta a utilizar, provavelmente porque nao sabe."

Não, caro Miguel Lourenço Pereira. A posse de bola, quando utilizada como arma, como a Espanha, é tudo em futebol. Serve, por exemplo, para ser campeã do mundo. É uma equipa ofensiva e controladora, não uma coisa ou outra isoladamente. Tendo a bola, ataca-se e, ao mesmo tempo, defende-se pelo simples facto de não se estar a defender. Contra defesas organizadas, há muitas maneiras de marcar golo. A mais eficaz e a que mais garantias de sucesso dá é a posse e circulação de bola rápida, com passes curtos, tabelas, apoios próximos, paciência e muita qualidade de passe e recepção. A Espanha não utiliza alternativas tácticas não só porque é fortíssima neste estilo como porque percebe que não há melhor maneira de alcançar o que pretende.

16. Como a idiotia de Miguel Lourenço Pereira não parece ter limites, continua aventando que o futebol da Espanha, porque "lento e aborrecido", não ficará na História. Miguel Lourenço Pereira está por isso convencido de que, daqui a dez anos, as pessoas se vão lembrar é da "fresca Alemanha" e não desta Espanha. Como Miguel Lourenço Pereira é tão bom na arte da adivinhação como a falar de futebol, não sabe o que diz. Aliás, poucas selecções serão tão lembradas como esta Espanha no futuro, pela revolução ideológica que esta vitória representa. Tal como o futebol total da Laranja Mecânica de setentas e o estilo italiano que Arrigo Sacchi ajudou a cristalizar, o "tiki taka" do Barcelona de Guardiola importado por esta Espanha ficará evidentemente para sempre e constitui até um salto evolutivo que tem apenas um ou dois precedentes significativos. Só a má fé, a desonestidade e a galhardia de novo-rico de Miguel Lourenço Pereira é que não o percebem.

17. Já noutro texto, quando fala dos onze melhores jogadores do mundial, Miguel Lourenço Pereira volta a deslumbrar e diz:

"sem Xavi esta equipa espanhola era um conjunto absolutamente vulgar. De isso não sobra nenhuma dúvida."

Gosto, antes de mais, da forma como Miguel Lourenço Pereira "descontrai" a contracção da preposição "de" com o pronome demonstrativo "isso", revelando uma vez mais a sua extraordinária vocação para inventar não só palavras como categorias gramaticais inteiramente novas. Para Miguel Lourenço Pereira, todo o plantel da Espanha, à excepção de Xavi, é portanto absolutamente medíocre. O que é estranho, não só porque antes diz que Piqué é o melhor central do mundo, como num texto mais recente sugere que a Espanha reunira o melhor plantel de sempre da sua História e que, por isso, merecera bem a vitória. Não sei se Miguel Lourenço Pereira sofre de esquizofrenia, mas julgo que não. Estou mais virado para falta de coerência crónica agravada pelo facto de querer dizer mal de uma selecção que representa um povo que odeia e acabar por não conseguir organizar as ideias.

Foram portanto dezassete pontos interessantes acerca das ideias de Miguel Lourenço Pereira sobre o futebol da selecção espanhola. Como terá ficado visível, há pessoas muito esquisitas. Miguel Lourenço Pereira é uma delas. Não sei se os três nomes denotam a sua natureza aristocrática e antecipam o seu carácter nacionalista e xenófobo, tão vincado naquilo que procura defender. Sei, contudo, que Miguel Lourenço Pereira tem por patologia o não perceber nada do que diz e, como muito gente, o querer falar do que não sabe. É um mal comum nos dias que correm. Tal como muita gente, Miguel Lourenço Pereira não percebe patavina do futebol desta Espanha. Juntando a isto o facto de não perceber muito de português e de destilar sentimentos violentos contra o país representado por essa selecção, o resultado só poderia ser ridículo. Se há , todavia, muita gente que não percebe o futebol da Espanha, mas se resigna à sua superioridade, o quixotismo de Miguel Lourenço Pereira, espanholice que afinal, contra a sua vontade, tão bem o define, fez com que visse nesse futebol o mais perfeito contrário do mesmo. Não querendo com isto fazer qualquer juízo de valor acerca dos dois termos da comparação, comparar esta selecção àquilo que costumam ser as selecções italianas não faz qualquer sentido e só merece o descaro do riso.