Serve o presente texto de argumento contra a ideia de que é possível perder técnicas. Nele tentarei expor aquilo que entendo por técnica e rebater a ideia, aparentemente querida de muita gente, de que Cristiano Ronaldo, ao modificar o seu corpo, perdeu atributos técnicos. A extensão do mesmo resulta da complexidade do assunto e da dimensão filosófica pela qual decidi enveredar.
Coisas que não se esquecemPor que razão, depois de aprendermos a andar de bicicleta, nunca mais desaprendemos? Por que é que, depois de se aprender a fazer malabarismo com três bolas, nunca mais se desaprende? Como é que conseguimos falar ao telefone e conduzir ao mesmo tempo? Por que é um canhoto consegue escrever tão bem com a mão esquerda e parece um deficiente mental com a direita? A resposta a estas perguntas tem um denominador comum: a técnica. Aprendemos uma técnica e, ao contrário do que querem crer algumas pessoas, nunca mais a voltamos a perder. Ter uma técnica ou ser capaz de uma habilidade consiste num processo de aprendizagem mental, processo esse que, uma vez concluído, fica "gravado" em nós, muito possivelmente na parte subconsciente do nosso cérebro. O acesso a essa "gravação", nestes casos, será imediato e instintivo. Executamos todas estas técnicas sem raciocinar, sem pensar se o estamos a fazer bem, mas de uma maneira natural. Isto ainda que, numa determinada altura da vida, não fôssemos capazes de fazê-lo. Noutros casos mais complexos, o acesso à "gravação" pode ser mais demorado e pode requerer, por falta de prática, uma determinada afinação.
No caso do futebol, a aquisição da técnica é um processo gradual, de constante modificação e aperfeiçoamento da relação entre indivíduo e bola, que é obviamente influenciado pelo crescimento do corpo. Durante o crescimento, a relação com os objectos tem de ser constantemente reavivada, pois o corpo, conforme vai crescendo, vai alterando a forma como reage aos estímulos. Ao contrário do que muita gente pensa, ser alto não é sinónimo de ser tosco. É verdade que o facto de ter um centro de gravidade mais baixo permite outras coisas aos jogadores, mas permite sobretudo agilidade, velocidade de reacção. É perfeitamente possível que um jogador alto seja tão dotado tecnicamente quanto um jogador baixo e há inúmeros casos de jogadores prodigiosos a nível técnico que não tinham um centro de gravidade baixo: Zidane, Riquelme, Ibrahimovic. Assim, a técnica não depende de uma certa estrutura morfológica, mas sim de um processo aquisicional. O facto de os jogadores altos, de uma maneira geral, terem menores competências técnicas não se explica pelo seu corpo, mas sim pela forma como o seu corpo cresceu. É portanto uma questão do foro da história do crescimento e da relação que se mantém, ao longo do crescimento, com o corpo. Maior parte dos jogadores grandes que são toscos terão tido, por certo, um crescimento gradual. Uma vez que o seu corpo cresceu de forma progressiva, não se estabelecia durante muito tempo de maneira a que desse tempo ao atleta para perceber exactamente como o seu corpo funcionava, o que, por fim, gerou um futebolista com competências técnicas abaixo do desejado. Por outro lado, os atletas cujo crescimento foi mais abrupto, tiveram mais tempo, em cada uma das fases de crescimento, para se relacionar com o seu corpo e para adquirir uma técnica aceitável. Por exemplo, dificilmente o crescimento de Ibrahimovic terá sido uma coisa gradual. O mais certo é ter crescido por etapas, muito de cada vez, o que lhe deu tempo para se aperceber das faculdades motoras ao seu dispor e para desenvolver uma competência técnica que, de outro modo, não poderia desenvolver.
Ter técnica é, pois, ter adquirido uma determinada competência mental. Aceder a essa competência mental, porém, não é um processo automático e depende muito da natureza da própria competência. No caso de andar de bicicleta, provavelmente porque envolve menos coisas e porque o aperfeiçoamento é menos exigente, temos poucos problemas, mesmo que o nosso corpo sofra modificações significativas. No caso do futebol, porque envolve muito mais coisas, porque implica não só a relação com o próprio corpo como a relação com uma bola e com um jogo muito específico e complexo, o acesso à técnica pode ser mais complicado. Mas detenhamo-nos, para já, em dois exemplos: bater livres e fazer truques com a bola. Estes dois exemplos são peculiares porque eliminam boa parte das variáveis que tornam o futebol um jogo cuja competência técnica depende de muita coisa. No caso dos livres, um jogador aperfeiçoa a sua técnica ao longo da carreira. Aperfeiçoar a técnica de bater livres é aperceber-se, gradualmente, das melhores condições para ter êxito nessa actividade. Ao longo do processo de aprendizagem, o jogador vai retendo as condições ideais de equilíbrio, a posição do corpo no momento de tocar na bola, o ponto específico da bola no qual deve acertar, a potência que deve dar ao remate, etc. Essa retenção nunca mais desaparece, embora o seu acesso possa não ser imediato. A interrupção da prática constante de bater livres pode tornar o acesso às condições ideais para o fazer mais complicado. Mas, nesse caso, é uma questão de retomar a prática constante, que "aviva" de certo modo a "gravação" do processo técnico. É por isso que, mesmo em idades avançadas, em idades em que já perderam grande parte das faculdades físicas, maior parte dos exímios marcadores de livres continuam exímios marcadores de livres. Lembremo-nos de André Cruz, por exemplo. Não passa pela cabeça de ninguém, certamente, que David Beckham algum dia deixe de ser periogoso a bater livres, sofra o seu corpo as alterações que sofrer (desde que essas alterações não impeçam que continue apto para praticar futebol ao mais alto nível). De igual modo, fazer truques com uma bola depende de uma aquisição técnica que não se volta a perder. Fazer a chamada "volta ao mundo" só custa antes de sabermos fazê-la. Depois de aprendermos a técnica, sai naturalmente, porque "gravamos" as condições ideais para a sua execução. Nestes dois casos específicos, a execução perfeita pode ser afectada pela ausência de prática, mas nunca existe um esquecimento do que foi adquirido mentalmente.
A aquisição de uma técnica é, por isso, segundo esta defesa, um processo irreversível. Uma vez adquirida, temo-la para sempre. O que pode mudar é o acesso a essa técnica, sendo que este pode ser influenciado pela regularidade do acto de aceder a essa técnica, ou seja, a prática dessa técnica, ou pela modificação dos estímulos que nos fazem aceder à técnica. Um atleta, ao modificar o seu corpo, modifica a relação que tem com ele. Por outras palavras, modificará a forma como capta os estímulos exteriores. Ora bem, era aqui que pretendia chegar. Um jogador, ao modificar o seu corpo, não perde faculdades técnicas. O que acontece é que põe em conflito uma determinada "gravação", ajustada para responder de determinada maneira em função de um conjunto de estímulos específico, com um corpo que, por estar diferente, é estimulado de forma diferente. O novo conjunto de estímulos, uma vez que é diferente, não conduz à mesma "gravação" e tem de haver, nesta altura, uma readaptação da "gravação" ao novo conjunto de estímulos. Essa readaptação não constitui necessariamente, todavia, uma perda da "gravação" anterior. Trata-se somente de um ajuste.
Terá Cristiano Ronaldo perdido Técnica?Dito isto, há quem defenda, muito seriamente, que Cristiano Ronaldo, ao modificar o seu corpo, tornando-o mais potente, perdeu faculdades técnicas. Por tudo o que foi dito acima, não concordo com isto. Perdeu, certamente, alguma coisa, mas nada do que perdeu é técnica. Terá perdido agilidade, capacidade de reacção, reflexos. Nada disto é técnica. São coisas, é certo, que podem participar do acesso à técnica. Mas não são a técnica em si. Podem facilitar a sua execução, mas não são, em concreto, a técnica. Aliás, no caso de Cristiano Ronaldo, a importância destas faculdades na sua técnica era até diminuta. A sua técnica nunca foi apurada ao ponto de necessitar do máximo de agilidade ou do máximo da capacidade de reacção imediata. Nunca foi forte, por isso, em espaços curtos; o seu drible curto estava pouquíssimo trabalhado, a sua capacidade para proteger a bola em condições espaciais reduzidas nunca foi relevante, etc. Assim, a perda necessária de algumas dessas características terá até tido uma participação diminuta na readaptação dos novos estímulos corporais à técnica pré-existente.
Ronaldo não perdeu a técnica que tinha, nem sequer perdeu capacidade individual, o que é muitas vezes confundido com "técnica". E isto por uma razão simples: aquilo que perdeu não era, já antes, predicado necessário na capacidade individual que tinha. A sua capacidade individual era manifestada mais pela potência do que pela agilidade ou pela velocidade de reacção. A competência individual de Ronaldo sempre dependeu da sua potência muscular e não dos seus atributos técnicos. Há, de facto, diferenças, mas elas não têm necessariamente a ver com técnica. O Ronaldo de antes fazia meia-dúzia de truques quando encarava os adversários no um para um, mas o factor que desequilibrava era sempre a sua explosão, a velocidade com que saía do drible. E isto ele não perdeu. Pelo contrário, a sua potência muscular actual permite-lhe ser mais forte até neste pormenor. A única diferença é que agora, antes de fazer valer a sua potência muscular, já não recorre a tantos malabarismos. E não porque não seja capaz de fazê-los (ainda que, muito provavelmente, a velocidade com que os executava não possa ser a mesma), mas antes porque percebeu a pouca importância dos mesmos no desfecho do duelo individual. Aquilo que mudou em Ronaldo foi o seu comportamento perante as situações. Ao ganhar experiência, percebeu que o recurso determinante era a forma como saía do drible e não tudo o que antecedia esse momento. Por isso, passou a conceder cada vez menos espaço aos artifícios técnicos e a dar prioridade ao arranque, à explosão, à mudança de velocidade, à velocidade de ponta. Nada disto implica que tenha perdido técnica.
Tem sido usada, para reforçar a tese de que que Cristiano Ronaldo perdeu competências técnicas, a
entrevista de Nuno Amieiro a Vítor Frade, publicada no blogue
Falemos de Futebol. Não tenho quaisquer problemas com as concepções teóricas veiculadas nessa entrevista e concordo que a aquisição de algumas coisas implica a perda de outras. Mas não considero que isso se passe ao nível da técnica porque simplesmente considero a técnica como um atributo próprio (ainda que, na sua formação, possa ser influenciado por um conjunto de atributos) e não uma soma de atributos. Tentando ser o mais analítico possível, aqueles que defendem que a alteração de atributos como a agilidade, a força, a velocidade, a potência muscular, os reflexos e a capacidade de resposta a estímulos, só para dar alguns exemplos, alteram a competência técnica do atleta não podem crer que exista uma coisa chamada "técnica". Essas pessoas acham que a "técnica" é uma substância predicada pela soma dos seus atributos, sendo esses atributos os acima mencionados. Neste sentido, a técnica seria uma entidade abstracta e o atleta mais competente a nível técnico seria aquele que reunisse o melhor equilíbrio entre os diferentes atributos mencionados. Ao contrário desta hipótese, considero a técnica um atributo em si e não uma substância. Isto é, para mim, a técnica é um atributo como os outros, conquanto de natureza diferente. É esta diferença de natureza que é necessário investigar.
A natureza relacional da TécnicaAtributos como a agilidade, a força, a potência muscular e afins são atributos que podem ser treináveis não-especificamente. Isto é, dependem apenas do indivíduo. Por outro lado, uma técnica, qualquer que seja, depende sempre da relação entre um indivíduo e um objecto. Equilibrar pratos no nariz, andar de bicicleta ou dançar requerem técnicas que só podem ser treinadas com o objecto sobre o qual se debruçam, respectivamente pratos, bicicletas e ritmos musicais, e também sob uma determinada forma de usar esses objectos. Nesse sentido, enquanto os outros atributos são especificamente atributos corporais, uma técnica é um atributo mental cuja execução é mediada pelo corpo. Adquirir uma técnica é, por isso, diferente de adquirir agilidade ou velocidade. Fica, portanto, evidente que a natureza de uma técnica é diferente da natureza de outro tipo de atributos. Falta explicar por que razão considero que essa diferença de natureza não faz da técnica uma substância predicada por vários atributos, mas sim um atributo como tantos outros. Se a técnica fosse uma substância, isto é, uma entidade abstracta que mais não é que um conjunto de vários atributos arranjado de uma forma específica, teria de poder ser treinável de forma descontextualizada, isto é, sem a presença do objecto sobre o qual essa técnica se debruça. Mas ninguém aprende uma técnica sem prática. Para aprender a técnica de andar de bicicleta é preciso andar de bicicleta. Logo, se aprender uma técnica depende do contacto com o objecto sobre o qual essa técnica se debruça, é impossível que ela seja apenas a soma de determinados atributos que não têm uma relação específica com esse objecto. Pelo contrário, a técnica é um atributo mental que se origina pela prática, isto é, que radica unicamente na relação entre indivíduo e objecto. Todo o ser humano adulto aprendeu, em determinada altura da vida, a andar. Andar é uma técnica porque consiste unicamente na relação entre um indivíduo e uma superfície. E é nessa relação e não nos dois pólos (indivíduo e objecto) que jaz a competência técnica.
Ao contrário, portanto, de muitos outros atributos, a técnica é essencialmente um atributo mental, um atributo cuja natureza é relacional e não intrínseca. Para que tudo isto seja coerente, tenho de defender que nenhuns dos atributos mentais são perecíveis. É o que pretendo. A técnica é um atributo semelhante à memória. Quando dizemos que memorizamos algo estamos a mentir. Memorizamos, isso sim, uma impressão de algo. E uma impressão é a relação entre um indivíduo e o algo que impressiona. A natureza da memória é, pois, igualmente relacional. Será que as memórias se perdem? Não creio. Acredito que retemos toda a experiência que acumulamos, (ou grande parte dela, pelo menos) ainda que não tenhamos consciência disso e ainda que certas coisas sejam mais difíceis de relembrar do que outras. Quando achamos que algumas das nossas memórias são pouco claras, não será apenas o acesso a elas que é deficiente? Há técnicas, como a hipnose, que nos permitem aceder a lembranças a que, de outra forma, nunca conseguiríamos aceder. Será, por isso, pelo menos legítimo afirmar que o que se modifica com o tempo é o acesso à memória e não a memória em si. E o mesmo se poderia passar com uma técnica: aquilo que se altera ou danifica é o acesso à técnica e não a técnica em si. O funcionamento de uma memória é assim muito semelhante ao funcionamento de uma técnica. Se exercitarmos recorrentemente uma memória, mantemos intacta a relação entre indivíduo e objecto. Da mesma maneira se mantém intacta essa relação, se exercitarmos recorrentemente uma técnica. Indo mais longe, possuir uma técnica consiste em possuir uma memória de uma relação entre o indivíduo e o objecto sobre o qual se debruça a técnica. Possuiremos sempre essa técnica, embora seja possível que nem sempre a tenhamos afinada, pelas mais variadas razões.
Há, porém, uma diferença relevante entre memórias e técnicas. Ao contrário do que acontece com uma memória, exercitar uma técnica depende daquilo que medeia a relação entre indivíduo e objecto, ou seja, o corpo. Seria possível, portanto, defender que, sendo o corpo precisamente o instrumento pelo qual se estabelece a relação entre indivíduo e objecto, relação essa que é a própria essência da técnica, qualquer alteração nesse instrumento resultaria numa necessária alteração da técnica. Discordo. A técnica mantém-se intacta. O que se modifica são os estímulos. Pensemos no exemplo de um pintor que tem por hábito pintar ora com os dedos ora usando pincéis. Se, por questões profissionais, estiver um ano a pintar com pincéis, perderá o jeito, a habilidade, a técnica de pintar só com os dedos? É óbvio que não. Poderá a sua prática estar enferrujada, mas a técnica não a perde, seguramente. E não consistirão, porventura, pintar com pincéis e pintar com os dedos duas técnicas diferentes, podendo o pintor dominar as duas? Penso que não. E penso que não porque o objecto sobre o qual se debruça a técnica de pintar não é nem o lápis, nem o pincel, nem os dedos. A técnica de pintar consiste na relação entre pintor (indivíduo) e tela (objecto). Os dedos e os pincéis são o corpo, isto é, aquilo que medeia a relação entre pintor e tela, sendo que o pincel é uma extensão do corpo na mesma medida em que uma caneta é uma extensão do corpo na técnica de escrever. Dito isto, é evidente que pintar com os dedos produz efeitos diferentes de pintar com pincéis. Mas o que produz esses efeitos diferentes é tão-somente a execução da técnica, que tem logicamente de ser diferente, pois é mediada de forma diferente. Assim, uma mesma técnica pode ter diferentes execuções, consoante o instrumento (e as potencialidades desse instrumento) através do qual se materializa a sua execução, mas não se modifica. Isto não implica que quem domina uma técnica seja capaz de executá-la das mais variadas formas. Como já ficou dito acima, uma técnica não se aperfeiçoa descontextualizadamente, mas pela prática. E praticar é executar a técnica, dependendo a execução do instrumento que se usa.
Ora bem, um pintor que tenha passado toda a vida a pintar com os dedos terá dificuldades, no imediato, em exprimir a sua técnica através do uso de um pincel. Mas aprender a usar um pincel não é o mesmo que aprender uma técnica. É uma questão meramente instrumental e requer apenas uma ligeira habituação. É certo que as potencialidades de pintar com pincéis são diferentes das potencialidades de pintar com os dedos, mas a técnica de desenho será igual nos dois casos. O que varia é a forma como essa técnica é colocada em prática e não a técnica em si. Um jogador de futebol, ao "engrossar", modifica a relação que tem com o corpo. Perde agilidade, reflexos, rapidez de execução. Ou seja, altera o instrumento através do qual executa a técnica que possui. Mas nada disto é técnica. A perda destas coisas pode implicar uma execução deficiente da técnica que possui, já que essa técnica está programada para reagir a estímulos diferentes daqueles que agora são captados. Mas da perda dessas coisas não se segue uma perda de técnica. O que ocorre é um conflito, um desajuste entre um conjunto de estímulos desconhecido e uma técnica conhecida e preparada para um determinado conjunto de estímulos específico. Este novo conjunto de estímulos, embora desconhecido, não irá requerer uma nova aprendizagem e não irá produzir uma nova técnica. Isso seria admitir que a mais pequena transformação corporal destruiria por completo a técnica pré-existente. O que vai acontecer é que este novo conjunto de estímulos irá ter de aprender a aceder à técnica já existente. Dessa aprendizagem, dessa habituação, não resultam perdas de técnica, pese embora as potencialidades não sejam as mesmas. Tal como um pintor, ao pintar com os dedos, não tem ao seu dispor as mesmas potencialidades que tem ao pintar com pincéis, um jogador de futebol, ao "engrossar", tem potencialidades diferentes. Provavelmente, não conseguirá executar aquilo que tem em mente com tanta rapidez, pois possuirá menos flexibilidade. Mas também é provável que consiga executar aquilo que tem em mente com mais potência. Assim, não é a técnica que se perde ou se altera; o que sofre modificações é a forma como essa técnica é executada. A execução de uma técnica corresponde àquilo a que chamei "acesso" a uma técnica. Esse acesso pode ser dificultado por ausência de prática, que no fundo é tornar menos presente a relação entre indivíduo e objecto, ou por alterações no indivíduo ou no objecto, o que implica alterações na relação entre os dois. Ultrapassar esta última dificuldade implica, como tentei demonstrar, um ajuste. "Engrossar" não implica, portanto, uma perda de competência técnica, mas um ajuste dessa competência técnica, ajuste esse que só pode ser conseguido pela prática da técnica. Ajustar uma determinada competência técnica passa então por aplicar a técnica pré-existente aos novos estímulos propiciados pela nova relação entre indivíduo e objecto.
Técnica e TalentoFalta dedicar, por fim, algumas palavras em relação à diferença entre técnica e talento. Por técnica entendo, como penso ter ficado claro, a relação de um indivíduo com um objecto, relação essa que é orientada para uma determinada finalidade. Assim, o mesmo indivíduo e o mesmo objecto podem originar técnicas diferentes, mediante a finalidade a que se proponha a própria técnica: um homem pode relacionar-se de diferentes maneiras com uma caneta, consoante o fim a que se proponha, e desenvolver a técnica da escrita, a técnica do desenho, a técnica de equilibrar canetas no nariz, etc. Uma vez que a essência de qualquer técnica é precisamente o ser uma relação específica e contextualizada entre um indivíduo e um objecto, possuir uma técnica é possuir um atributo diferente de atributos como a velocidade, a agilidade, a força, etc. Estes atributos são treináveis por si, podendo ser adquiridos através de um treino analítico, descontextualizado. Como defendi, uma técnica, por ser essencialmente uma relação entre coisas, é um atributo mental, atributo esse cujo aperfeiçoamento não está, de maneira nenhuma, dependente da quantidade existente dos outros atributos. Pode ser que, por esta altura, para muita gente, a noção de talento entre em conflito com a noção de técnica. Não creio que exista problema algum. Uma técnica consiste numa relação simples entre um indivíduo e um objecto; um talento consiste numa relação complexa entre um indivíduo e um objecto e uma situação. Assim, o talento será igualmente um atributo mental, ou seja, será um atributo da mesma natureza que a técnica. Mas será um atributo mental de natureza complexa, que envolverá, mais do que a relação entre um indivíduo e um objecto, a relação entre estes dois e uma situação complexa. Assim, de uma pessoa que sabe andar de bicicleta diz-se que tem técnica para tal, mas não se diz que tem talento. Andar de bicicleta requer técnica, não talento. Andar sobre uma corda, equilibrar pratos, fazer malabarismo são técnicas, não talentos. Aliás, nenhuma arte circense requer talento. É por isso que são artes menores, quando comparadas com as grandes artes. O mesmo se aplica a um guitarrista. É perfeitamente possível que consiga desenvolver uma técnica perfeita e que consiga tocar guitarra de uma forma exemplar. Mas isso não basta para ser talentoso. Através do uso dessa técnica será capaz de imitar os grandes guitarristas, mas é possível que não consiga criar nada de verdadeiramente grandioso. Isto porque o talento para a música é muito mais do que o domínio perfeito da relação entre o indivíduo e uma guitarra.
Contribuem para o desenvolvimento de um talento não só a técnica, mas também outros atributos mentais, como a inteligência, a criatividade, o conhecimento, a intuição, etc. Há inúmeros casos de pessoas que possuem uma técnica perfeita mas que não são minimamente talentosas. Um exímio falsificador de quadros tem de ser alguém possuidor de uma técnica perfeita, mas não é, se não for capaz de produzir arte sua com relativo valor, um artista talentoso. Também no desporto há exemplos destes. Os Globetrotters são tecnicamente perfeitos e conseguem fazer coisas em basquetebol que não está ao alcance de todos. Mas terão talento para jogar basquetebol? Isto é, conseguiriam ser tão competitivos como os melhores jogadores de basquetebol? Em futebol, são incontáveis as pessoas que são capazes de fazer truques com a bola e que dominam com perfeição a relação com a bola. Mas para serem talentosos teriam de saber jogar futebol, e muitas destas pessoas não o sabem. Falcão, o mais reputado jogador de futsal do planeta, é tecnicamente perfeito, domina a relação com a bola como poucos. No entanto, o seu talento para jogar futebol de 11 é diminuto, não obstante ser um muito talentoso jogador de futsal. É possível concluir, portanto, que ao contrário da técnica, o talento não depende apenas de uma relação específica, orientada para uma determinada finalidade, entre indivíduo e objecto, mas de uma relação entre essa relação e uma situação complexa que exige uma competência diferente de uma competência técnica. Adquirir um talento depende por isso, muito mais do que do domínio da relação com um objecto, de uma determinada percepção de uma situação complexa. Nesta percepção intervem, muito mais do que quaisquer competências técnicas, todo o intelecto. É por isso que um talento é uma capacidade complexa, passível de ser adquirida apenas pela experiência da situação complexa em questão, e nunca uma predisposição inata. Na sua aquisição influem muitas coisas, nenhuma delas possível de desenvolver na ausência da situação complexa que o determina. Há, para finalizar, ainda outra diferença importante entre uma técnica e um talento. Uma técnica, sendo a relação entre um indivíduo e um objecto, é mediada por um corpo, ou seja, a sua execução depende de um corpo que a concretize. Um talento não tem esta dimensão; não se executam talentos. A execução tem um papel relevante numa técnica, mas não o tem num talento. O xadrez é tipicamente um desporto para o qual não existe uma técnica relevante, mas para o qual é necessário talento, ou seja, formas eficazes de perceber coisas. Assim, ao contrário da técnica, que é um atributo mental que se concretiza pela acção de um corpo num objecto, o talento é um atributo mental puro, desenvolvido independentemente do corpo e do objecto e em função de uma situação complexa.