terça-feira, 17 de julho de 2012

Hegemonia e Geração Espontânea

Falar em hegemonia a respeito do futebol espanhol pode parecer, nos dias que correm, profundamente redundante. Depois da conquista de mais um campeonato europeu, poucos se atreverão a não conceder à Espanha esse estatuto. Há 4 anos, porém, quando tudo isto começou, poucos, como nós, arriscavam em votar no favoritismo espanhol. Entretanto, e reagindo ao futebol espanhol como se tem reagido ao Barcelona de Guardiola, insiste-se que qualquer adversário poderoso vencerá esta equipa, e que outros tempos se sucederão aos actuais. Não tenho dúvidas de que a selecção espanhola não ganhará tudo o que há para ganhar, nos próximos anos. Do que tenho dúvidas é de que, tão depressa, apareça um futebol capaz de se sobrepor a este, e de que a Espanha deixe de estar no lote dos grandes favoritos à vitória nas competições em que participar nos próximos... 20 anos. Para muitos, estes três títulos representam uma fase, uma hegemonia temporária, como tantas outras no passado, protagonizadas por outras selecções, que necessariamente será interrompida. Para mim, aquilo a que se assiste agora não tem paralelo na História do Futebol, precisamente porque não se pode medir-lhe a manifestação apenas pelos troféus que tem amealhado. Por trás das vitórias há um modelo fortemente enraízado, um estilo de jogo que é dominador, que condiciona irremediavelmente qualquer que seja o adversário, e que faz daqueles que o põem em prática mentalmente superiores. O jogador espanhol é hoje, pelo próprio estilo de jogo que pratica, superior, em termos de mentalidade, aos seus adversários, como em tempos os germânicos o eram. Para que a Espanha deixe de ser a principal favorita à vitória em cada prova que participar, não basta esperar que esta geração acabe, até porque esta geração tem bem mais do que onze jogadores competentes, e a esta geração, já se percebeu, sucederão outras igualmente talentosas. Também não bastará que seja derrotada na próxima grande competição, porque sabe-se que voltarão a ser favoritos na seguinte, apesar da derrota. Não bastará, ainda, que uma selecção qualquer, muitíssimo talentosa, apareça nos próximos anos, pois essa selecção, pelo carácter extraordinário do seu surgimento, desaparecerá sem deixar legado, enquanto os espanhóis, com novas gerações, continuarão a reinar. Para que a Espanha venha a ter quem lhe discuta a hegemonia, há que iniciar um trabalho a nível de formação, que não está iniciado em lugar algum, tanto quanto sei, muitíssimo parecido com aquele que foi iniciado há duas ou três décadas no país vizinho, e que agora está finalmente a dar os seus frutos. Daí dizer que a hegemonia espanhola terá ainda, pelo menos, 20 anos de vida.

Vem isto a propósito não do recente campeonato europeu ganho pelos espanhóis, mas pelo recente campeonato europeu de sub-19 ganho - imagine-se - pelos espanhóis. Que eu saiba, não há memória de haver uma selecção que dominasse tanto o panorama futebolístico como esta Espanha na última década, ganhando tudo o que havia para ganhar nos últimos 4 anos, a nível sénior, e ganhando quase tudo (quando não ganha, fica perto, e é sempre favorita) nos escalões mais jovens. Permitam-me a comparação com o hóquei em patins. Desde que me lembro de ver hóquei, havia apenas 4 selecções capazes de discutir títulos: Argentina, Itália, Portugal e Espanha. Explica-se isto de forma relativamente simples, pois eram países com tradição na modalidade, que iam formando, geração após geração, jogadores de qualidade em quantidades suficientes para poderem manter equipas competitivas. No caso do hóquei, que é um jogo muito mais simples que o futebol, a excelência colectiva terá sido atingida muito mais rapidamente do que no futebol, e depressa se formaram 4 selecções hegemónicas. Nenhuma outra selecção, a menos que inicie um trabalho de formação de fundo, consegue competir, de forma consistente, ao longo de muitos anos, com estas selecções. Em futebol, pelo contrário, até praticamente ao fim do século passado, faltava muito para que a excelência colectiva fosse atingida, e nações com bases de recrutamento muito grandes podiam ser consideradas favoritas, mesmo apresentando um futebol fraco, em termos colectivos. Hoje em dia já não é assim. E não voltará a ser assim. Arrisco mesmo a dizer que o Brasil, a menos que revolucione o seu futebol, não voltará a ser verdadeiramente favorito à vitória numa grande competição. Claro que poderá ganhar um campeonato ou outro, mas dificilmente voltará a ser a potência que foi se não modificar as suas prioridades. O que se fez em Espanha, nas últimas décadas, foi compreender o jogo, compreender aquilo que o jogo exigia, e formatar os seus praticantes para fazerem face a essas exigências. Hoje olha-se para uma competição de sub-19, por exemplo, e no lugar de miúdos imberbes, alguns com potencial, outros nem tanto, e uns mais afoitos que outros, vêem-se jogadores de futebol. Compara-se a selecção espanhola com as outras e, em vez de se conseguir isolar um ou outro miúdo com capacidades acima da média, capta-se um colectivo completamente distinto, em que todos os elementos possuem uma maturidade táctica acima do normal. Isso só é possível porque o futebol espanhol, em vez de tentar lapidar cada um dos diamantes que, por sorte, iam aparecendo, como se acredita, ainda hoje, que deve ser o trabalho de formação, passou a criar, através de uma concepção do jogo mais elevada, os seus próprios diamantes. Aquilo que distingue este futebol espanhol, cuja hegemonia actual não encontra paralelo em toda a História do jogo, é precisamente a compreensão de que, num jogo colectivo, como o é o futebol, a formação serve para criar talentos, no sentido literal da palavra "criar", e não apenas para permitir que certos talentos brutos, que existem antes de passarem pela fase de formação, adquiram competências que lhes permitam jogar ao mais alto nível. Em Espanha, não se acredita em geração espontânea, e isso faz toda a diferença.

A respeito, mais concretamente, deste europeu de sub-19, tenho várias coisas a dizer. Em primeiro lugar, que são treinadores como Edgar Borges que explicam por que razão Portugal nunca poderá chegar aos calcanhares do que se faz em Espanha. É verdade que ao seleccionador nacional só se lhe deu para as mãos um conjunto de jogadores, com a qualidade duvidosa que têm (ainda estou para perceber por que é que João Carlos, jogador do Liverpool, não foi chamado), a maior parte deles, mas optar, como o fez contra a Espanha, por uma marcação individual aos homens do meio-campo espanhol diz tudo sobre Edgar Borges. Na minha opinião, quem escolhe jogar assim, seja contra quem for, não merece uma segunda oportunidade. Poderia dizer muito mais, mas esta decisão táctica diz praticamente tudo. Quanto a valores individuais, aproveitar-se-ão, entre os portugueses, dois ou três. O melhor deles, o avançado Betinho, praticamente nem se viu, tal foi a pobreza, em termos de construção de jogo, da equipa. Ricardo Esgaio talvez tenha futuro, mas só como lateral-direito, como joga no Sporting. Como extremo, é banalíssimo. Tiago Ilori, se bem trabalhado, e se se modificarem certos preconceitos a respeito de defesas centrais, também dará jogador. Daniel Martins, o lateral-esquerdo do Benfica, também tem algumas características interessantes. Sobre Rafael Veloso, o guarda-redes, é preciso saber como evoluirá, em termos de mentalidade. Quanto aos restantes, sinceramente, não lhes auguro futuros espantosos. A excepção poderá ser o capitão João Mário, de quem não sou particularmente adepto, mas a quem reconheço alguns atributos importantes. João Mário não tem classe; tem tiques de quem tem classe. Se um dia esses tiques derem lugar a um jogador que compreenda quando os deve ter e quando os não deve, talvez venha a poder ser jogador. Para já, é apenas irritante. André Gomes, médio do Benfica, sabe jogar, mas tem contra si o tamanho exagerado, a pouca agilidade, e algumas deficiências técnicas, sobretudo resultantes desses atributos físicos indesejados. Quanto a Bruma, não dará em nada, ainda que, nos últimos anos, tenham chegado a Alvalade propostas milionárias para o levar. Ivan Cavaleiro é idêntico, mas com menos propostas milionárias. Sobre Agostinho Cá, não vou falar porque ainda estou a tentar compreender por que razão é que o Barcelona contratou, para jogar na sua equipa B, alguém que não é, nunca foi, nem nunca será jogador de futebol.

Sobre a Espanha, que é realmente a selecção sobre a qual se deve falar, tal foi o abismo que a separou das restantes, devo dizer que continuam a ser feitas observações precipitadas. Embora os espanhóis tenham mostrado ao mundo que o futebol é um jogo colectivo, e embora todos se apressem a enaltecer as virtudes colectivas desta equipa, quando chega a hora de falar em individualidades, fala-se sempre daquelas que menos atributos colectivos manifestaram. Para a grande maioria das pessoas, as duas principais figuras do torneio foram o goleador máximo da prova, Jesé Rodriguez, e aquele que é considerado o maior talento desta geração, Gerard Delofeu. Não porque é costume ser do contra, mas porque dou mais importância a aspectos colectivos, não foram estes os jogadores que mais me impressionaram. Aliás, não acredito mesmo que Jesé Rodriguez, por exemplo, venha a ter um futuro invejável. É um jogador habilidoso, mas fraco em termos de decisões. Delofeu, por sua vez, é parecido, embora mais rápido, mais forte no um para um, e, sobretudo, joga no Barcelona. Estando no Barcelona, pode aprender o que ainda não sabe. Se o conseguir, saberá como temperar as suas iniciativas um pouco melhor. É que, para já, é apenas um jogador muito forte em termos individuais. O seu principal problema, a meu ver, é não saber decidir quando deve ou não deve apostar em acções individuais. Sempre que Guardiola o colocou em campo, este ano, evidenciou precisamente isso. Na altura, pensei que fosse nervosismo. Depois deste Campeonato da Europa, percebi que era feitio. Gerard Delofeu esteve endiabrado, sim, mas porque apanhou defesas que lhe permitiram as diabruras. Daqui a uns anos deixará de o conseguir fazer com a facilidade com que o fez, e nessa altura terá de apresentar argumentos que não apresentou neste campeonato. Como disse, outros foram os jogadores que me impressionaram. Desde logo, o defesa-esquerdo do Barcelona, Grimaldo. Não é um jogador com grandes valências atléticas, mas sabe sempre o que fazer com bola, jogando invariavelmente no apoio, e, sem grandes correrias, nem um pulmão invejável, dá a profundidade certa à equipa no momento certo. De resto, podia falar em qualquer um dos do meio-campo (o capitão Campaña, médio-defensivo elegante; Suso, médio do Liverpool com um pé esquerdo notável; ou mesmo Ñiguez, igualmente esquerdino, e muitíssimo inteligente em todas as suas acções com bola), todos eles fortíssimos no que toca a decisões, e todos eles bons de bola, mas vou isolar dois, porventura os dois mais pequenos: Oliver Torres, do Atlético de Madrid, e Denis Suárez, do Manchester City. Esqueçam tudo o que acham que sabem sobre futebol, e ponham os olhos nestes dois pequenos jogadores. A forma como tratam a bola, a agilidade, a competência técnica, a facilidade no drible: é isto que distingue o actual futebol espanhol. Pouco jogaram juntos, é verdade (Denis Suárez foi quase sempre suplente), mas os adeptos mereciam que tal tivesse acontecido. Sem bola, procuram dar sempre um apoio vertical ao médio-defensivo, ou uma linha de passe ao lateral. Movimentam-se entre linhas como ninguém, tabelam, tiram adversários da frente com facilidade. Duas pequenas maravilhas! Continuo sem perceber como é que, dando a Espanha tamanho exemplo de competência em todos os escalões, se insiste em não povoar o meio-campo com jogadores com estas características. Oliver Torres e Denis Suárez são o paradigma do médio-ofensivo do futuro, um paradigma que demorou a chegar, mas que Xavi e Iniesta trataram de deixar claro que tinha mesmo de chegar. Se há uns anos se desconfiava que mais do que um jogador com estas características era prejudicial a uma equipa, os dois catalães ensinaram ao mundo de que era com dois assim, se não mesmo com mais, que tinha de se jogar futebol. Estes dois são herdeiros de Xavi e Iniesta, e seria natural que, ainda que não sejam actualmente aqueles de quem mais se fala, daqui a uns anos estivessem na ribalta do futebol europeu. 

terça-feira, 10 de julho de 2012

Egoísmo e estética na evolução do jogo.

Na verdade, a essência deste texto louva o estilo. Frivolidade, que para alguns se desmascara no seu significado; porém, não aqui, não no que se procura defender neste texto. Ignoremos o fenómeno Guardiola; tiranizados que estamos sob o jugo desse alto olhar sobre o jogo, não se apresentará fácil o exercício, mas só assim poderemos compreender a extensão do que nestas linhas é proposto. O mais curioso é que, até ao advento “Guardiola”, nenhum dos bastiões deste jogar, que tamanha admiração nos inspira, se podia comparar a qualquer um dos anteriores estetas que, em si mesmos, de forma marginal, inscreviam os valores que agora ressoam na elegância do jogo catalão. Xavi, Busquets e Iniesta, jogadores que encerram em si uma qualidade excepcional, não encontrariam o reconhecimento que os consagra agora, não lhes fosse oferecida a oportunidade de fazerem parte de um ideal que, sendo também o deles, não encontrava neles a sua maior expressão. E é na plasticidade da palavra “expressão” que sustento esta ideia; existe um certo “altruísmo” a que o seu jogo se entrega, empalidecendo-os. A minha atenção vira-se, como facilmente se deduz, para aqueles que, demasiados centrados sobre si, procuram em cada momento não o que é melhor para a equipa, não tomar a mais oportunista das decisões, mas antes ataviar-se de um brilho e romance que, aos seus próprios olhos, os distingam dos demais. Encontrei esta ideia pouco depois de ler um texto do Jorge D., no Centro de Jogo, sobre um jogador que também eu admirei, e admiro, tendo também feito questão de escrever, há uns anos, um texto sobre ele neste blogue: Pedro Barbosa. Na altura, senti que não se explicava todo o seu encanto apenas com aquele estilo blasé com que desfilava no campo, ou com a inteligência com que abordava as situações com que o lado caótico do jogo o brindava. Barbosa era mais como Zidane ou Pirlo. Não reconheço que estes jogadores se tenham destacado “apenas” pelas características acima enumeradas, apesar destas serem inequívocas; acredito, porém, que outra afinidade os transcendia: a necessidade a que se atavam de, independentemente do que o jogo lhes oferecia, se projectarem num patamar superior. Aqui descobrem-se, por certo, algumas resistências: encontramos um rebanho de jogadores que, acima do que podem oferecer à equipa, pensam no que podem oferecer a eles próprios perante o jogo, tão obcecados que estão em alcançar o reconhecimento dos demais. Vou dar um exemplo, que me é tão querido, de imediato saltando à vista: Liedson. Mais do que aquilo que podia oferecer à equipa, este jogador procurava a mais pequena ocasião para se emancipar. Aqui retorno, todavia, às qualidades indissociáveis dos três primeiros (Barbosa, Zidane e Pirlo ) para concluir que os valores sobre os quais se dobra a necessidade de privilegiar a equipa resultam de diferenças abismais - para com jogadores como Liedson, por exemplo - nas suas preocupações durante o jogo. Ao brasileiro pouco lhe diziam os meios com que alcançava a notoriedade no jogo; conquanto no final de contas ele fosse o jogador que mais golos fizesse ou mais quilómetros arasse, pouco lhe importava o carácter das soluções encontradas; não encontrávamos nos outros três a mesma disposição, a mesma ligeireza nos seus processos. A atracção recaía sobretudo na elegância das soluções, cunhando-as de uma graça circunscrita ao seu próprio cânone, imunes a perversões de circunstância ou ambiente. Assisti a todos os jogos da Itália neste europeu, e, mais do que observar em Pirlo a necessidade de ajudar a equipa, encontrei nele o imperativo de jogar bonito, embora não aquele bonito envolto em acrobacias de circo, espalhafatoso no seu grito por atenção; a elegância do seu jogo, fatalidade de um vício do belo, manifestava-se na tranquilidade com que desenhava cada lance; e, no entanto, a grande maioria das suas soluções não se esgotavam no sentido estético do seu jogar, catapultando a Itália para uma qualidade de jogo nunca vista. E aqui, por fim, chega o essencial do meu argumento: não se escondam jogadores como Pirlo em sociedades tacanhas, ainda que democráticas, todos participando com a sua visão na regulação das suas leis e costumes; atribuam-lhe, sim, o título de déspota, e o brilho do seu jogo, libertando-os das suas próprias limitações, a um nível apenas ficcionado os sublimará. Em jogadores como Pirlo, cuja principal preocupação é fornecer elegância ao jogo, a única maneira de o fazer é numa abordagem superior ao mesmo, desprezando os pergaminhos da equipa onde se inserem. Concedam-lhe as rédeas da equipa e talvez encontremos naquele conjunto um vislumbre do que o conjunto blaugrana nos ofereceu constantemente. Acredito que este Europeu a Pirlo deve muito do seu encanto, e talvez este encanto torne merecedor um agradecimento a Prandelli; contudo, é na incapacidade de Pirlo de se furtar aos sacrifícios do Belo que se funda todo o futebol da Itália, e o seu reconhecimento pelo seleccionador italiano no Europeu de 2012. Na final, não escondi a minha predilecção pela Itália. Minto. Não pela Itália, mas por Pirlo, desejoso que o ego de um só jogador se superiorizasse a toda uma ideia de jogo que, afinal de contas, também era a dele, apenas mais simples e humilde. Venceu um conjunto de jogadores, habituados que estavam partilhar entre si um ideal que os elevava, perante um homem só, cujo sentido estético o entrelaça nas raízes de tão avançado conceito.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Euro 2012 - A Sobrevivência do Mais Forte

Terminado o torneio, não ficam muitas dúvidas: a prova foi eliminando os menos capazes, quer individualmente, quer colectivamente, e foi preservando os mais aptos. Espanha, Itália, e Alemanha foram as equipas mais fortes do torneio, e Portugal a mais competente das restantes. Mas tanto a Itália como a Espanha, por serem superiores, mereciam esta final, e a Espanha, tanto pela superioridade que já demonstrara no primeiro jogo, apesar do empate, como por ser, de facto, melhor equipa, não podia deixar de se sagrar vencedora. Findos 6 anos de conquistas, é talvez tempo para reflectir. Mais do que dizer disparates, do que torcer contra eles, porque nos eliminaram, do que desejar-lhes a queda, por incompreensão do fenómeno, há que reconhecer-lhes a superioridade, tentar perceber as causas dessa superioridade, elogiá-las, e tentar reproduzi-las. A Espanha é o que é por várias razões. A primeira chama-se obviamente Guardiola. Sem o modelo catalão, sem o perfil de decisão que os jogadores catalães trouxeram para a selecção, esta Espanha seria muito diferente. Não seria de todo injusto se aos 14 títulos no currículo de Guardiola se juntassem os títulos espanhóis. Mas outra causa, menos recente, e mais ampla, explica este sucesso. A Espanha começou há mais de 20 anos a investir no futebol (e no desporto, em geral), em formação, numa identidade, num perfil de jogador muito próprio, alicerçado no talento e na inteligência, e prova agora que os grandes jogadores do futebol moderno, ao contrário do que muitos defendem, têm origem nas academias e não na rua. Não fosse assim, e as ruas da Catalunha teriam de ter qualquer coisa de especial, para que aparecessem tantos craques catalães. Aquele argumento de que um país com poucas pessoas dificilmente é capaz de competir com um país com muitas pessoas, pois a base de recrutamento é incomparavelmente menor, é um disparate. É evidente que em países como o Brasil ou a Argentina, em que o futebol de rua ainda tem força, é menos importante ter projectos de formação competentes para que apareçam muitos bons jogadores. Mas se há coisa que esta selecção espanhola veio mostrar é que um projecto de formação competente, pensado a longo prazo, não só permite anular a diferença entre bases de recrutamento maiores e menores, como deixa claro que, actualmente, os jogadores de topo são jogadores que adquirem habilidades que não podem, de modo nenhum, adquirir na rua.

Há palermas que acham, pelo menos desde o mundial de 2010, que esta Espanha é uma selecção defensiva. São palermas que, por exemplo, consideram o estilo de jogo espanhol aborrecido, sonolento, que acham que a equipa usa a bola para adormecer adversários, e para defender. Claro que a Espanha usa a bola para defender, mas esse uso não é exclusivo. Acima de tudo, esta Espanha sabe uma coisa que estes palermas não sabem: quem ataca é quem tem a bola. A Espanha é uma equipa ofensiva, nem que seja pelo simples facto de ter mais tempo em seu poder, por norma, o instrumento que permitiria que o adversário, se o tivesse, pudesse atacar. Mas a Espanha não é só isso. É uma equipa que assenta o seu modelo na posse de bola, e faz uso dela para tudo: para defender, claro, mas para irritar o adversário, para descansar, para desposicionar as linhas adversárias, para se recrear, e claro, para atacar. Esta Espanha, pelo simples facto de ser, em toda a História, a selecção que melhor ataca, que mais conscientemente percebe por onde deve entrar, quando deve forçar e quando deve manter a bola, é a equipa mais ofensiva da História. Os palermas, por serem palermas, acham que ser ofensivo é jogar com muitos avançados, ter um modelo vertical, jogar sempre para a frente, etc.. Essas equipas são ofensivas, sim, mas também são irresponsáveis, e incompetentes. Para os palermas, ser ofensivo é simplesmente o contrário de ser defensivo. O corolário da tese dos palermas é o de que as equipas ofensivas não podem ser defensivas. É um corolário estúpido, mas é o corolário de um raciocínio deste tipo. Eu, por acaso, acho o contrário: acho que a melhor equipa, em termos ofensivos, será necessariamente a melhor equipa, em termos defensivos. Quando, por isso, os palermas dizem que a Espanha é defensiva, estão no fundo a dizer que é ofensiva, sem o saberem. De facto, em futebol não é difícil de saber o que é atacar e o que é defender: quem tem bola, ataca; quem não tem, defende. Depois, há quem ataque bem, há quem ataque mal, há quem ataque de forma mais rápida, há quem ataque de forma mais lenta, há quem ataque de forma mais racional, e quem ataque de forma mais irracional. Mas, no fundo, ataca quem tem bola, e defende quem não a tem. Ao contrário do que pensam os palermas, que pensam que esta Espanha ensinou o mundo a defender com bola, o que esta Espanha fez foi ensinar que é possível atacar defendendo e defender atacando. Há uma diferença monstruosa entre atacar porque sim e atacar racionalmente, e essa diferença consiste em saber os usos certos a dar à bola. Os palermas que acham que o futebol da Espanha é aborrecido não percebem isso. Como não percebem a racionalidade do futebol espanhol, e no fundo defendem a irracionalidade, são estúpidos. São estúpidos, e um futebol inteligente como o da Espanha, dá-lhes sono. Os palermas, tal como preferem fogo-de-artifício a um livro, preferem uma equipa inglesa (e o futebol electrizante praticado em terras de Sua Majestade) ao futebol mais bem praticado de sempre. A conclusão de tudo isto é que os palermas não gostam de futebol. Gostam das sensações que se habituaram a ter ao ver futebol. E isso é diferente. Aborrecida, esta Espanha? Aborrecida uma equipa em que todos os jogadores estão a pensar ao mesmo tempo? Aborrecido um futebol em que, de minuto a minuto, os jogadores nos mostram habilidades dificílimas e fazem coisas que só estão ao alcance de muito poucos? Aborrecido é ver um jogo com quarenta oportunidades de golo, mas que resultam de choques no ar, de erros infantis dos defesas, de remates violentos, de jogadas com 2 passes, do aproveitamento do muito espaço que existe, etc.. Aborrecido é ver um jogo que só se joga ao pé das balizas, em que ninguém faz nada de extraordinário, para além de pôr a plateia ao rubro, com a eminência do golo. Os palermas não sabem o que é a excelência. Gostam de futebol porque lhes dá comichão, não porque reconheçam o que é excelente.

O contrário de um jogo aborrecido, para quem não é palerma, foi a primeira parte desta final. Os comentadores de serviço, como não podia deixar de ser, reproduzem ideias consoante a marcha do marcador. Como o resultado final foi uma vitória esmagadora dos espanhóis, acham que o jogo só teve um sentido, e que a Espanha foi muitíssimo superior. A verdade é que não foi. Aliás, a Itália, na primeira parte, voltou a mostrar de que modo se deve jogar contra esta Espanha, ou seja, com bola. Ao intervalo, já os comentadores diziam que a Espanha estava a ser superior. Diziam-no porque olhavam para o resultado, não porque estivesse, de facto, a ser. A Itália, na primeira parte, criou tantas ou mais oportunidades que os espanhóis, teve mais posse de bola (o que é um feito enormíssimo), mas acabou por ter o azar de encontrar uma equipa inspiradíssima, a quem as coisas foram correndo cada vez melhor. A primeira parte do jogo foi um exemplo daquilo que, na minha opinião, vai ser o futebol daqui a uns anos, um futebol jogado sobretudo no meio-campo, com uma percentagem de passes acertados muito boa, apesar da competência da pressão adversária, um futebol bastante rendilhado, com muitas combinações colectivas, passe e devolução constante, de um lado e do outro, com muitas tabelas, com as equipas a progredirem no terreno de forma apoiada, sustentando os seus ataques através de movimentações interiores, de aproveitamento de espaços entre as linhas defensivas adversárias. Não fossem as vicissitudes da segunda parte, e teria sido o melhor jogo do europeu (o primeiro jogo entre estas duas equipas já estava entre os três melhores), com duas equipas interessadas em ganhar, e sem medo nenhum uma da outra. Aliás, o comportamento da Itália, com bola, foi qualquer coisa de espantoso. Nunca caíram na tentação de jogar longo, procuraram sair sempre a jogar, apesar da excelente pressão espanhola, e a verdade é que foram compensados por essa estratégia conseguindo sair das zonas de pressão várias vezes, e conseguindo chegar à área espanhola em boas condições, e de maneira a criar boas situações de golo. No final, a Itália foi goleada, mas foi a equipa que mais problemas conseguiu criar à defesa espanhola (tanto num jogo como noutro, criaram várias oportunidades de golo). A primeira parte foi equilibradíssima, e a segunda equilibrada começou, com ambas as equipas a criarem oportunidades. Prandelli errou, quando tirou aquele que estava a ser o melhor em campo, Riccardo Montolivo (já havia errado, ao tirar Cassano ao intervalo), e acabou por ter azar, porque Thiago Motta, cinco minutos depois, se lesionou, o que fez com que a contenda terminasse. Mas, ainda assim, está de parabéns. Fatalmente, a Espanha é melhor. Num jogo em que falhou muito menos passes do que em jogos como o das meias-finais, e num jogo em que até teve muito menos espaço no centro do terreno, os seus jogadores acabaram por se mostrar muito inspirados. Quando se elogia tanto Portugal, por ter conseguido anular as ofensivas espanholas, devia-se reflectir um bocado. Portugal teve o mérito de não deixar a Espanha construir na primeira fase, onde eles não são fortes, como o é, por exemplo, o Barcelona, mas nem sequer impôs os mesmos constrangimentos no centro do terreno que os italianos. Simplesmente, as combinações entre os médios espanhóis, a movimentação entre linhas, o jogo sem bola das diferentes unidades espanholas, e as decisões de quem tinha a bola foram muito melhores. Ajudou a isso, entre outras coisas, o estado do relvado, muito melhor que o da meia-final, e o menor cansaço dos espanhóis. Por fim, a questão do avançado. Para os palermas, o golo de Fernando Torres fecha o debate sobre os avançados. Mas é preciso ser palerma para dizer tal coisa. Primeiro, porque foi o único golo espanhol, nesta final, que resultou de uma recuperação alta da equipa. Ou seja, o avançado concluiu um lance que não é típico desta selecção. Segundo, uma das principais razões para que a Espanha estivesse mais inspirada foi a inclusão de Fabregas no onze, em detrimento de Negredo. Aliás, a Espanha fez apenas dois jogos fracos, neste europeu, e em nenhum deles Fabregas foi a opção de ataque. Sempre que a Espanha jogou sem avançado, foi superior, criou mais oportunidades, e não deu quaisquer hipóteses ao adversário. Se provas ainda fossem precisas, o que esta final demonstrou (já que o empate do primeiro jogo tinha levantado essa dúvida) é que o estilo de jogo espanhol exige um avançado que não o seja. Para que este estilo seja eficaz, é preciso quem saiba aproximar, dar apoio vertical, jogar entre linhas, tabelar. Um médio habilidoso, por norma, sabe-o muito melhor do que um avançado de área. É por isso que esta Espanha funciona melhor sem avançados.

 Melhor Equipa, em 433:

Guarda-Redes: Buffon
Defesa Direito: Debuchy
Defesa Esquerdo: Philip Lahm
Defesas Centrais: Piqué e Hummels
Médio Defensivo: Andrea Pirlo
Médios Ofensivos: Luka Modric e Xavi
Extremos: Andrés Iniesta e Cristiano Ronaldo
Avançado: Cesc Fàbregas

Treinador: Cesare Prandelli

Suplentes:

Guarda-Redes: Iker Casillas
Defesa Direito: Arbeloa
Defesa Esquerdo: Jordi Alba
Defesas Centrais: Chiellini e Lescott
Médio Defensivo: Sergio Busquets
Médios Ofensivos: Marchisio e Montolivo
Extremos: David Silva e Mesut Özil
Avançado: Ibrahimovic

Treinador: Michal Bilek
  
Melhores Jogadores: 1º: Andrea Pirlo; 2º Andrés Iniesta; 3º Luka Modric