domingo, 24 de julho de 2016

Orgulho e Preconceito

O Euro 2016, um dos piores dos últimos 20 anos (pior só mesmo o de 2004), terminou com a consagração da selecção nacional. O momento é, sem dúvida alguma, histórico, mas não consigo deixar de ficar surpreendido por haver tanta gente a afastar esse sucesso do modo como ele foi obtido. Portugal passou em terceiro (uma novidade, no desenho da prova, que favoreceu claramente a mediocridade) num grupo composto pela Islândia, pela Hungria e pela Áustria. Passou em terceiro, e não em segundo (o que colocaria a equipa no lado forte do sorteio) porque um islandês marcou um golo à Áustria mesmo a acabar, no último jogo da fase de grupos. Portugal passou os oitavos de final num lance de contra-ataque, a pouco minutos do fim do prolongamento, que se sucede de imediato a um lance de muito perigo na sua própria baliza, e num jogo em que a Croácia justificava claramente outro resultado. Depois, eliminou a Polónia apenas nas grandes penalidades. Nas meias-finais, eliminou um País de Gales sem Ramsey (a cumprir castigo), a principal arma ofensiva dos galeses, principalmente pela forma como combinava com Gareth Bale e Joe Allen. E, na final, foi dominado do princípio ao fim por uma selecção gaulesa sem outro argumento que não a força bruta, acabando por marcar num lance de inspiração de Éder, o mais vilipendiado dos jogadores nacionais, e quando ninguém o esperava. Não associar a conquista deste europeu à sorte, para mim, é deturpar desde logo a conversa. As pessoas acham que a sorte se conquista e que, no limite, não é possível vencer uma competição destas sem competência. Como é sabido, não penso assim. O futebol é um desporto especial, e é possível que a sorte desempenhe um papel decisivo. É improvável, mas é possível. Com as devidas diferenças, Portugal venceu um europeu como aquele que a Grécia vencera em 2004: teve a sorte do sorteio, viu os principais favoritos a ficar pelo caminho sem ter de jogar contra eles e superou os adversários que teve de enfrentar invariavelmente por ser mais afortunado nos detalhes. É uma vitória, e será tão saborosa, para os vencedores, como outra vitória qualquer. Mas não deixa de ser uma vitória, em larga medida, fortuita. Os menos conformados com a ideia de que a sorte, em futebol, desempenha um papel importante acham que Portugal venceu esta competição, e não algumas competições anteriores em que até apresentou bom futebol, porque foi pragmático, porque acreditou até ao fim e porque o grupo estava unido. O que eu gostava de saber é o que é que esse pragmatismo, essa crença e essa união têm a ver com o golo islandês aos 90 minutos, com a ocasião de golo croata que precede o contra-ataque que dá o golo de Quaresma, com a passagem na lotaria dos penáltis contra a Polónia, com o acaso de Ramsey ter visto um amarelo contra a Bélgica ou com a bola ao poste de Gignac, a segundos de terminar o tempo regulamentar na final. Não, o sucesso de Portugal não esteve no pragmatismo, na crença e na união do grupo. A posteriori, aliás, é sempre fácil justificar o sucesso com esse tipo de coisas. O sucesso de Portugal dependeu (muito mais do que é vulgar depender) dos factores imponderáveis a que este jogo está sujeito, e não deve ser explicado de modo mais lisonjeiro do que isso. 

É também por isso que não aceito a ideia de que todos os portugueses devam sentir orgulho por tal vitória. Sentir orgulho pela pátria parece-me, desde logo, uma coisa um bocado provinciana. Mas sentir orgulho porque um conjunto de 23 jogadores (e respectiva equipa técnica) que, alegadamente, representa a nossa pátria, venceu outros conjuntos que alegadamente representam outras pátrias parece-me ainda mais bizarro. De facto, ninguém sentiu orgulho e exultou por Portugal ter sido recentemente campeão internacional de columbofilia, nem ninguém vai pedir autógrafos aos pombos vitoriosos. O orgulho que advém da vitória da selecção portuguesa no Euro 2016 tem, por isso, menos a ver com a pátria, e com o que quer que nos leve a sentir apego a ela, do que com o futebol. Tem, no entanto, menos a ver com o futebol enquanto jogo do que com o futebol enquanto fenómeno agregador. Como o futebol é um fenómeno de massas, e ninguém à nossa volta estava indiferente ao que se passava em França, não lhe conseguimos ficar indiferentes. Na verdade, sentimos um contentamento (o qual nos apressamos a julgar que é orgulho), mas não por Portugal, enquanto pátria à qual pertencemos e à qual nos julgamos ligados, ter vencido o campeonato europeu. Sentimos o que sentimos por o nosso vizinho, os vizinhos dele e os vizinhos desses vizinhos, por contaminação, fazerem muito barulho, e nos imaginarmos parte da razão que os leva a sair à rua para gritar. Aquilo a que chamamos orgulho, e que fez com que todos os portugueses, nos dias seguintes, andassem de cabeça erguida e peito feito, não é bem orgulho; é febre. Enfebrecidos pela atmosfera febril que nos rodeia, deitamos a gritar como todos à nossa volta apenas e só porque todos à nossa volta fazem o mesmo. Este tipo de comportamento febril, aliás, não se manifesta apenas a respeito de uma vitória desportiva: todos os fenómenos de massa (desde as modas às intenções de voto) tendem a enfebrecer cada um dos indivíduos de que essa massa informe se compõe. Quase tudo o que fazemos, as opiniões que temos e aquilo que sentimos é resultado do meio em que vivemos, pois foi nesse meio que aprendemos a fazer o que fazemos, que aprendemos a pensar e que aprendemos a sentir. Cada um dos portugueses que ficou contente com a vitória de Portugal não ficou contente por ela de algum modo lhe activar um orgulho pátrio qualquer; cada um deles ficou contente porque, vendo que todos à sua volta também se encontravam contentes, não tinha razões para duvidar de que fosse assim que devia sentir-se. Para mim, as pessoas podem ficar contentes com o que quiserem. Quando o clube do coração ganha, as pessoas comportam-se da mesma maneira. Só acho absurdo é que justifiquem o contentamento com o amor que devem à pátria ou com o amor que devem ao clube. Não é disso que se trata. Em ambos os casos, o contentamento é público: resulta do contentamento alheio que reconhecemos naqueles que julgamos que têm o mesmo género de afeições que nós, sejam as afeições pátrias ou as afeições clubísticas.

O orgulho é um sentimento especial, pois depende sempre de uma proeza qualquer, própria ou alheia. Ninguém sente orgulho por ter dois braços, por exemplo. E o orgulho associado às minorias (o orgulho gay, o orgulho de ser negro, o orgulho de ser mulher) só existe pelo menosprezo a que as minorias, historicamente, foram votadas. Nesses casos específicos, é uma forma de combate: ao orgulharem-se de ser como são, as pessoas orgulham-se da proeza que há em assumirem sem receios, e contra um determinado status quo, quem são. O orgulho depende sempre, portanto, do reconhecimento de uma qualquer superação. É por isso que me faz alguma confusão que as pessoas se confessem orgulhosas com uma determinada vitória desportiva e que reconheçam em simultâneo que essa vitória foi fortuita ou injusta. Como é que se pode ter orgulho por acertar nos números do Euromilhões? Pode-se ficar contente, claro. Mas orgulhoso? De quê? Orgulhoso de ser português? É como ter orgulho por ser homem, e não urso polar. Numa guerra, podemos ficar orgulhosos pela bravura com que os nosso soldados defendem a pátria. Mas será que podemos ficar orgulhosos por vencer a guerra? É certo que ficaremos felizes, pois ninguém gosta de perder nada, sobretudo uma guerra. Mas será que ficamos orgulhosos? Orgulhosos de quê? De superarmos as forças do inimigo? Em que medida é que a derrota alheia pode ser uma proeza própria? Apenas e só na forma como essa derrota acontece. É possível que nos orgulhemos da estratégia de D. Nuno Álvares Pereira em Aljubarrota. Mesmo que ela não tivesse contribuído para a vitória em Aljubarrota, poderíamos reconhecer-lhe mérito e orgulharmo-nos disso. Da vitória sobre os castelhanos, propriamente dita, não vejo como é possível haver orgulho. Numa guerra, só nos podemos orgulhar do modo como essa guerra é conduzida, porque só no modo como ela é conduzida pode haver superação. Orgulharmo-nos do desfecho dela é absurdo. Com a vitória em si, podemos ficar felizes ou aliviados, mas não orgulhosos. O orgulho não é um sentimento que decorra de um determinado desfecho, como a felicidade ou o alívio; é um sentimento que se associa à forma como esse desfecho é obtido. Em futebol acontece mais ou menos o mesmo que numa guerra. Como nem sempre os vencedores cometem grandes proezas, nem sempre se justifica o orgulho daqueles que torcem por eles. Quando a equipa por que torcem ou a selecção nacional do país ao qual julgam dever o patriotismo ganha alguma coisa, as pessoas não ficam contentes por se sentirem orgulhosas, ainda que possam pensar que sim. Ficam contentes porque são macaquinhos de imitação. Só poderiam orgulhar-se, de facto, se reconhecessem no futebol praticado por essa equipa ou por essa selecção qualquer identidade própria na qual de algum modo se revissem. A maioria das pessoas, no entanto, não se revê no futebol do clube do coração ou da selecção do seu país; revê-se, isso sim, no emblema e na bandeira. Quando a equipa que apoia vence, a maioria das pessoas não se regozija pela superação futebolística, mas por ter ganho uma aposta. O investimento emotivo em que consiste o desejo de que o clube do nosso coração ou a selecção do nosso país acabem vitoriosos funciona exactamente como uma aposta. É, aliás, uma aposta tão irracional como aquelas que geralmente se fazem em casinos ou casa de apostas. E é um bocado ridículo orgulharmo-nos das nossas apostas. Quando um apostador vê o cavalo em que apostou cruzar a linha de meta em primeiro lugar, não sente orgulho do cavalo cuja vitória o anima. A vitória de Portugal no europeu de França não encheu 10 milhões de pessoas de orgulho. Essa vitória deixou os portugueses extasiados, claro, mas porque a aposta inadvertida que fizeram no país em que, por um acaso geográfico, aconteceu terem nascido se confirmou finalmente. Toda a gente tem direito a ficar contente por ter ganho um aposta. O que não faz sentido é justificarem a euforia de a ganharem com o orgulho nacional.

Achar que gostamos que a selecção nacional de futebol vença porque isso nos enche de orgulho não passa, portanto, de um preconceito. Não há, de resto, melhor exemplo desse preconceito do que o golo marcado por Éder na final. De que modo é que os milhões de pessoas que acreditavam, dias antes, que o Éder era tão tosco como um elefante marinho de meia-idade se podem orgulhar do que o Éder fez? Como é que se pode ter orgulho de alguém que se considera inepto? Aliás, as considerações acerca da qualidade do Éder mostram bem aquilo que sugeri acima, acerca de fenómenos de massa. A opinião pública acerca do avançado português é como é essencialmente porque umas pessoas ouviram dizer que ele era só um avançado tosco, porque outros, ouvindo aqueles que antes tinham ouvido dizer que era tosco e achando que todos tinham razão, desataram a fazer piadas acerca do seu valor, e porque, em suma, a generalidade das pessoas não tem opiniões próprias. Na verdade, o Éder não é tão fraco como se diz. Pode não ser extraordinário do ponto de vista técnico, e não ser propriamente o mais inteligente dos pontas-de-lança, mas tem algumas qualidades e, a meu ver, justifica plenamente a presença numa selecção nacional portuguesa, neste momento. Fisicamente é muito forte, e é muito competente a proteger a bola e a aguentar a chegada dos companheiros, podendo ser usado como referência ofensiva em determinados contextos. Não é um ponta-de-lança para entrar em tabelas, para usar como apoio vertical em ataque organizado ou para jogadas elaboradas. Mas, como referência ofensiva, pode ser útil para segurar a bola enquanto a equipa sobe, para fixar a defesa adversária e atrair marcações. Nesse capítulo, de resto, sempre me pareceu um jogador interessante. Desde os tempos da Académica que o aprecio e lhe reconheço alguma qualidade. A opinião pública acerca de Éder não é, aliás, muito diferente da opinião pública acerca de Hélder Postiga. Ainda que sejam jogadores diferentes, e que a opinião pública acerca deles seja muito mais injusta no segundo caso, foram vítimas do mesmo género de preconceito. Ora, a mesma causa subjaz quer a este género de preconceito, quer àquele que, assinalado acima, decorre de confundir contentamento com orgulho: o que acontece, em ambos os casos, é que se sente e se forma opiniões por contaminação dos sentimentos e das opiniões vizinhas, tomando-se por privado, próprio e único o que afinal é público e de muita gente. Achar que nos orgulhamos da vitória da selecção não é por isso menos estúpido do que achar que o Éder nem para pino serve.   

12 Apontamentos sobre o Euro 2016:

1. A selecção francesa chegou à final sem mostrar grande coisa para além de algumas individualidades muito inspiradas: Lloris, Payet, Griezmann e Giroud, principalmente, estiveram a um bom nível, e isso chegou, muitas vezes, para que os problemas colectivos não fossem relevantes.

2. A evolução do futebol suíço, nos últimos anos, tem sido notável, e a selecção suíça é hoje muito mais respeitada do que era há uma década. Além do trabalho federativo, que permitiu aos suíços uma quantidade de jogadores de algum talento, há a salientar na selecção A a mudança de paradigma: ao contrário da selecção de Hitzfeld, que apostava tudo na organização defensiva, a selecção de Petkovic é uma equipa que procura ter a iniciativa do jogo. Falta-lhe criatividade no miolo do terreno, é verdade, mas assume esse jogo e procura fazer mais do que aproveitar os erros dos adversários.

3. Ao contrário da generalidade das opiniões que fui lendo, gostei do que a selecção do País de Gales fez. Não é tacticamente extraordinária, e procurou acima de tudo povoar a sua defesa com muita gente. Soube, no entanto, tirar o melhor partido dos seus três melhores jogadores (Ramsey, Bale e Allen, que mostrou que nunca lhe deram o devido valor em Liverpool), os quais procuraram sempre combinar uns com os outros. A liberdade que estes três jogadores tiveram para se procurarem constantemente, e que lhes foi possibilitada pela estratégia colectiva, foi a grande arma desta selecção. E só quando um deles, exactamente aquele que melhor se ligava aos outros dois, não pôde jogar é que foram vencidos.

4. Enquanto em terras de Sua Majestade se continuar a pensar como há 50 anos, o futebol inglês andará longe das vitórias. Não sou contra a ideia de Rooney jogar no meio-campo, e até gostei de ver, talvez pela primeira vez na história do futebol inglês, um médio-defensivo com critério com bola. Mas a aposta nas qualidades atléticas é inequívoca. Em Inglaterra, continuam a achar que o cérebro, em futebol, não serve para nada. Enquanto pensarem assim, vai ser difícil.

5. Sobre a Eslováquia, apraz-me dizer que se confirma aquilo que há muito penso: que o melhor jogador desta geração não é Marek Hamsik, como se faz crer, mas Vladimir Weiss. Hamsik é um médio expedito, muito rápido a ler o jogo e tecnicamente evoluído. Mas não é um médio criativo. É competente a ligar o meio-campo ao ataque, e garante fluidez ao futebol ofensivo da sua equipa, mas raramente é capaz de encontrar uma solução inesperada. Não é inventivo nem imaginativo como Weiss, que a partir da ala procura constantemente o apoio interior. Hamsik pode ser um jogador muito competitivo, mas sem aquilo que distingue Weiss, a criatividade, não passa de um médio relativamente banal.

6. A Rússia teve o que mereceu. Quando se fala tanto em pragmatismo, e quando se pensa que a abordagem pragmática é aquela que, nos dias que correm, tem tido mais sucesso, olhe-se, por exemplo, para a Rússia. O pragmatismo tanto pode dar para ter sucesso como para ser sovado. Os russos não podiam ter sido mais pragmáticos, e foram para casa mais cedo precisamente por causa desse pragmatismo.

7. A selecção croata foi das que mais gostei, neste europeu. Tive pena de não ver Coric, ou de ter visto tão pouco de Pjaca. Mas a qualidade individual dos croatas já não é uma novidade. O que me parece que está a melhorar, no futebol croata, são as ideias colectivas. É possível que, num futuro próximo, consigam bater o pé às melhores selecções. Têm qualidade individual para isso, tê-la-ão nesse futuro próximo, e parecem-me interessados em trabalhar colectivamente para que essas individualidades possam finalmente sobressair.

8. A Alemanha foi a melhor selecção do torneio. Não se pode ganhar sempre, e um pequeno detalhe (penalty de Schweinsteiger), num jogo que estava a dominar, deitou tudo a perder. Mas o futebol jogado foi, no cômputo geral, muito bom. Contra a Eslováquia, por exemplo, roçou a perfeição. Pode não ter dado seguimento ao título mundial conquistado há 2 anos, mas fez tudo bem feito, e é isso que lhes garante que vão continuar a ser favoritos, nos próximos torneios.

9. A Espanha começou bem o campeonato. Sem os erros do mundial de 2014 (titularidade de Koke e Diego Costa), Vicente del Bosque soube escolher um bom onze, mérito que já lho reconhecera anteriormente. Mas não soube estar à altura dos acontecimentos, quando era preciso que estivesse. Primeiro, não soube evitar que a sobranceria se apoderasse dos seus jogadores, depois das duas primeiras vitórias, e não soube convencê-los da importância de vencer o último jogo do grupo. E depois, perante uma selecção italiana a pressionar alto e a esconder a bola dos espanhóis, não soube reagir à adversidade. Já devia ter saído há muito tempo.

10. Zlatan Ibrahimovic terminou o seu percurso na selecção. Deixou de haver razões para ver a Suécia a jogar.

11. A qualidade individual da Bélgica está hoje ao nível das melhores da Europa. Para ser sincero, só vejo melhor conjunto de jogadores na Alemanha, na Espanha e, talvez, na França. Ainda assim, a selecção belga continua sem conseguir impor-se a nível europeu. Colectivamente, o futebol belga continua a ser pobre, e é isso que falta agora mudar.

12. A selecção italiana que se apresentou no Euro 2016 foi uma das mais fracas, em termos individuais, de que me lembro. E sem Marchisio e Verratti, os dois melhores médios italianos (se excluirmos Andrea Pirlo), mais fraca ainda ficou. O futebol italiano precisa urgentemente de uma revolução, e esta geração de jogadores é o sinal claro disso. Ainda assim, Antonio Conte conseguiu construir uma selecção muito competitiva. A forma como eliminou a Espanha foi notável.

Melhor Onze:

Guarda-Redes: Hugo Lloris
Defesa Direito: Joshua Kimmich
Defesa Esquerdo: Raphael Guerreiro
Defesas Centrais: Leonardo Bonucci e Matts Hummels
Médio Defensivo: Eric Dier
Médios Ofensivos: Aaron Ramsey e Andrés Iniesta
Extremos: Gareth Bale e Dimitri Payet
Avançados: Antoine Griezmann

Treinador: Joachim Löw

Suplentes:

Guarda-Redes: Gianluigi Buffon
Defesa Direito: Alessandro Florenzi
Defesa Esquerdo: Jan Vertonghen
Defesas Centrais: Giorgio Chiellini e Ricardo Carvalho
Médio Defensivo: Joe Allen
Médios Interiores: Luka Modric e Toni Kroos
Extremos: Julian Draxler e Nani
Avançado: Cristiano Ronaldo

Treinador: Antonio Conte

domingo, 10 de julho de 2016

Renatices

De dois em dois anos, a turba anima-se com o pontapé na bola e, dando em correr melhor do que seria previsto, a participação portuguesa nos torneios de nações é motivo de batimentos cardíacos acelerados um pouco por todo o país. Junta-se a esse fenómeno, este verão, duas circunstâncias especialmente interessantes: 1) o facto de o desenho do torneio beneficiar a mediocridade (passarem 2 terços das selecções não só permite que equipas que nada façam na fase de grupos sigam em frente como aumenta a possibilidade de tais equipas avançarem na competição sem apanharem adversários dignos de respeito); e 2) o facto de aparecer em Portugal um miúdo de 18 anos que, não obstante a total banalidade e inconsequência do seu futebol, reúne todos os atributos que o povo gosta de ver num jogador (força, agressividade, rapidez, coragem, desinibição, etc.). A euforia em torno de Renato Sanches chegou ao ponto de termos um jornalista, no rescaldo do jogo com a Polónia, a descrever os acontecimentos do jogo do seguinte modo: "Primeiro a Polónia marcou; depois o Renato empatou!" Renato Sanches é hoje, portanto, sinónimo de Portugal.

Há quem já o considere, no presente, um dos melhores médios do mundo. E há outros, mais prudentes mas igualmente fanáticos, que consideram que, apesar de ainda ter muito que trabalhar, tem potencial para chegar ao patamar dos melhores. A minha opinião sobre Renato Sanches não se alterou minimamente: não tem o que é preciso para vingar ao mais alto nível, e nunca vai tê-lo. Nesta selecção, não dá nem metade do que dão João Mário, Adrien Silva, André Gomes e João Moutinho. E, ao contrário do que tem sido dito, não consigo ver que melhorias trouxe ao futebol nacional sempre que entrou. Não consigo mesmo. Contra a Polónia, por exemplo, estava a fazer um jogo miserável, até que Fernando Santos decidiu encostá-lo a uma faixa. Miserável! Posicionalmente, andava às aranhas. Não sabia onde nem como pressionar, nem sabia onde nem como pedir a bola aos colegas. Fernando Santos trouxe-o para a linha, para lhe tirar alguma responsabilidade táctica, e ele continuou sem saber muito bem o que fazer. Defensivamente e ofensivamente, o Renato andava completamente perdido. Mas depois marcou um golo, após um passe sem nexo nenhum (meteu em Nani numa zona em que o avançado português não iria conseguir fazer nada, mas teve a sorte de Nani inventar um passe de calcanhar, que o surpreendeu tanto a ele como aos polacos), e as pessoas, que não querem saber de mais nada, trataram de endeusá-lo. O Renato lá continuou perdido em campo, a errar posicionamentos e a errar decisões com bola, mas cheio de confiança. E a única coisa que as pessoas vêem é a bola nas redes e a confiança com que os jogadores andam em campo. Não vêem as distracções constantes do Renato, os maus passes sistemáticos, as decisões absurdas, a imaturidade táctica. Não vêem nada disso. Vêem um miúdo com força e desinibido, e acham que é a reencarnação do Eusébio. Ou a reencarnação de D. Afonso Henriques, à espadeirada aos mouros.

Posso acrescentar, condescendendo um pouco, que talvez pudesse dar um avançado com alguma qualidade, ou um extremo interessante. Tem velocidade, segura e protege bem a bola, e podia servir de avançado em circunstâncias de contra-ataque, sobretudo, ou de extremo a quem se peça principalmente alguma competência na transição. Ou podia dar um defesa direito aguerrido, capaz de se projectar ofensivamente. Como médio-centro - perdoem-me os seus admiradores - não lhe auguro nada de bom. Não tem qualidade de passe, não é excepcional do ponto de vista técnico e, acima de qualquer outra coisa, não toma decisões condizentes com aquilo que deve ser um médio de ataque. Como disse há uns meses, as suas principais qualidades (a capacidade de condução em velocidade, a força, a entrega e a qualidade com que protege a bola) não são as competências que se exigem a um médio moderno. Isto não significa que não possa fazer carreira como médio, e que não possa ser titular indiscutível dos clubes por onde passar e da selecção nacional (o Maniche ou o Raúl Meireles também o foram). Significa, isso sim, que não o vejo a ser um médio capaz de dar a uma equipa aquilo de que precisa, sobretudo em organização ofensiva. Algumas das pessoas que, contagiadas pela euforia geral, sentem a necessidade de justificar a admiração que têm pelo Renato precisam, por isso, de demonstrar que o tipo de futebol que pratica é de algum modo benéfico. E, reconhecendo-lhe alguns defeitos (tomada de decisão, precipitação, irresponsabilidade táctica, imaturidade, etc.), tendem a acreditar que a força que tem, a intensidade com que joga e a irreverência que apresenta em campo, contrastando com a calma pachorrenta e a lentidão de processos por que se define, alegadamente, o futebol dos outros médios da selecção, são factores de desequilíbrio evidentes. Por exemplo, acha-se que o Renato, por conduzir endiabradamente, atrai adversários a toda a hora, desposicionando-os, e que, soltando a bola para um colega depois de fixar esse adversário, produz rupturas sistemáticas nas defesas contrárias. Na verdade, subjazem a esta ideia vários preconceitos: o de achar que é sempre útil conduzir para fixar, seja em que zona do terreno for, a que velocidade for e em que circunstâncias for; o de achar que quem privilegia a condução é mais competente a conduzir do que quem privilegia outras coisas; e o de achar que esse tipo de comportamento tem como consequência necessária esse tipo de desequilíbrios no adversário. O que se segue é uma análise às acções com bola (e a algumas acções sem bola) do Renato, no jogo contra o País de Gales. Como se verá, não só as iniciativas de condução do Renato não produzem os efeitos que se defende que produzem como o seu futebol não é tão incisivo como se acha que é. 


1 mins: Mau passe. (Em vez de procurar dar uma linha de passe, dentro ou fora do bloco adversário, vai ter com José Fonte, tira-lhe a bola, conduz junto à linha e entrega na direcção do lateral galês.)

4 mins: Troca de bola fora do bloco adversário. (Joga na linha em Cedric, aproxima-se, recebe dele, dá em Nani, volta a receber e devolve a Nani.)

5 mins: Troca de bola fora do bloco adversário. (Aproxima-se do meio, recebe de Adrien, vira-se para a direita, roda sobre si mesmo e endereça o passe a Raphael Guerreiro, na esquerda).

7 mins: Troca de bola fora do bloco adversário. (Toca a bola para Cedric, recebe dele e toca para trás.)

9 mins: Troca de bola fora do bloco adversário. (Dá para Cedric, que se projecta na linha, e este cruza.)

12 mins: Má opção. (Recebe de Adrien numa zona central, conduz na direcção da linha, com Cedric à sua frente e Adrien a dar o apoio recuado, mas insiste em definir o lance e cruza contra o opositor directo.)

13 mins: Cabeceamento. (Ganha de cabeça para trás, mas o central galês limpa.)

13 mins: Troca de bola fora do bloco adversário. (Recebe no meio de Danilo e dá para trás para Adrien.)

15 mins: Troca de bola fora do bloco adversário. (Recebe de João Mário e dá para dentro, em João Mário de novo.)

17 mins: Mau passe. (Capta junta à linha, conduz enquanto Adrien se escapa ao seu lado, mas solta antes de fixar e na direcção de Joe Allen, que intercepta o passe.)

21 mins: Troca de bola fora do bloco adversário. (Recebe longo de Rui Patrício, protege a bola na recepção, vem para o meio, tabela com Adrien, tabela com Ronaldo, dá na linha em Cedric, dá o apoio recuado e recebe de Nani, a quem Cedric dera a bola, conduz lateralmente e abre na esquerda, em Raphael Guerreiro.)

22 mins: Troca de bola fora do bloco adversário. (Recebe de Adrien e devolve.)

25 mins: Má opção. (Apanha uma bola sacudida por Bruno Alves e, com um adversário à perna, e mais dois à sua frente, conduz para a linha sem dar importância ao apoio de Adrien, que chegava naquele momento, mete a cabeça no chão e tenta forçar a passagem, perdendo a bola. As bancadas exultam.)

27 mins: Troca de bola fora do bloco adversário. (Vem ao meio, recebe de João Mário e toca curto em Adrien. Na mesma jogada, recebe de João Mário, conduz para a esquerda e deixa em Raphael Guerreiro.)

28 mins: Esforço. (Evita que a bola saia pela linha, após um mau passe de Bruno Alves.)

28 mins: Mau passe. (Apanha uma sobra, encara o médio e tenta jogar vertical, para dentro do bloco adversário, em Raphael Guerreiro, mas a bola sai para as costas do colega e a jogada perde-se.)

31 mins: Troca de bola fora do bloco adversário. (Recebe de Danilo no meio e joga em Cedric na linha. Ronaldo aproxima-se e fica com a bola.)

31 mins: Troca de bola fora do bloco adversário. (Recebe de Ronaldo, e lateraliza para Adrien.)

33 mins: Má decisão sem bola. (José Fonte conduz e Renato, como no lance do primeiro minuto, dirige-se ao portador da bola em vez de procurar dar uma linha de passe, o que leva José Fonte a desesperar, gesticulando para que o médio português saísse dali.)

34 mins: Troca de bola fora do bloco adversário. (Perde em força para Bale, ao tentar disputar a bola com o galês, mas apanha o ressalto depois de Bale cruzar contra José Fonte, protege a bola e dá na linha em Nani.)

36 mins: Troca de bola rápida. (Aproveita uma sobra, depois de Cedric desarmar Bale, e dá rápido em Nani)

37 mins: Cruzamento. (Recebe junto à linha e cruza rasteiro, sem consequências)

37 mins: Troca de bola fora do bloco adversário. (Recebe de Cedric e joga para trás, para Danilo)

37 mins: Troca de bola fora do bloco adversário. (Recebe de Adrien, no meio, e dá na linha, em Cedric)

38 mins: Má opção. (Recebe de Cedric e, com várias opções verticais, dentro do bloco adversário, mete na área sem nexo.)

40 mins: Mau passe. (Recebe de José Fonte, conduz lentamente e, sem procurar fixar o defesa, tenta jogar em João Mário, mas o passe sai transviado.)

41 mins: Passe vertical. (Recebe de Cedric, conduz para o meio, e joga vertical em Nani, que dá o apoio entre linhas. Renato não dá, no entanto, opção de passe para que Nani pudesse devolver a bola.)

42 mins: Má decisão sem bola. (É ludibriado por uma simulação do defesa esquerdo galês, Taylor, quando fazia a cobertura desse flanco. Como Cedric perseguira individualmente o médio galês que ali aparecera, e que recuara, o lateral esquerdo fica com a linha escancarada.)

47 mins: Má opção. (Apanha uma sobra, depois de um corte de José Fonte, tenta fintar e perde.)

47 mins: Mau passe. (Apanha uma sobra e faz um passe rápido, sem direcção, que acaba nas pernas do árbitro. Se não batesse no árbitro, ia direito a um adversário.)

47 mins: Falta desnecessária não-assinalada. (Faz falta junto à área sobre Gareth Bale, mas o árbitro não assinala.)

47 mins: Mau passe. (Recebe de Nani, tenta entregar de primeira, mas a bola vai para Joe Allen.)

53 mins: Faz falta. (Depois de 6 minutos sem intervir, durante os quais Portugal marcou 2 golos, faz falta junto à linha.)

55 mins: Troca de bola fora do bloco adversário. (Recebe de José Fonte e joga na linha, em Cedric.)

56 mins: Sofre falta. (Recebe de Cedric e, perante a chegada do adversário, desvia a bola e sofre falta. Estando Cedric a passar nas costas, se a finta sai mal, os galeses poderiam contra-atacar.)

59 mins: Má opção. (Apanha uma sobra, conduz, tenta passar por Gareth Bale e é desarmado.)

60 mins: Mau passe. (Recebe de Cedric e tenta meter no espaço, onde Adrien aparece, mas mede mal o passe e a bola perde-se.)

64 mins: Má opção. (Recebe no meio, de João Mário e, podendo progredir, dá de imediato na direita, em Nani, que acaba por ir para o remate.)

67 mins: Sofre falta. (Recebe junto à linha esquerda, protege a bola, roda sobre si, na direcção da linha, e sofre falta.)

69 mins: Conduz e entrega. (Apanha uma sobra, depois da recuperação de Adrien, conduz pelo meio, tira Joe Allen da frente e lateraliza para João Mário.)

72 mins: Má opção. (Capta junto à linha, conduz pela esquerda e, não respeitando a movimentação de Ronaldo, que lhe permitia solicitar Nani, que aproveitara o espaço deixado livre pelo arrastamento do central galês, opta por ir para o remate, que faz já em desequilíbrio.)

Fica o video com os apontamentos individuais do Renato (excluem-se os lances sem bola a que dei destaque), ao longo do jogo, com o agradecimento ao PicaretaLeonina, que o deixou na caixa de comentários do texto anterior:

 

Conclusões:

1) Das 41 acções contempladas, 4 são acções sem bola (as faltas feitas aos minutos 47 e 53, e as acções dos minutos 33 e 42), 2 são acções espontâneas (o cabeceamento aos 13 minutos e o esforço para evitar que a bola saísse aos 28) e 2 terminam com faltas sofridas (aos minutos 56 e 67). Renato participou, portanto, em 32 acções com bola, em condições suficientes para a tomada de decisão. Dessas 33 acções, 7 terminaram com maus passes; 21% de passes errados.

2) Das 26 acções que não terminaram com maus passes, Renato tomou ainda 7 más opções, das quais 4 resultaram em perdas de bola directas. Assim, teve 14 acções negativas (42% de acções negativas) e foi o responsável por 11 perdas de bola (33% dos lances em que participou acabaram nos pés do adversário).

3) Das 19 acções positivas que teve, 15 foram trocas de bola fora do bloco adversário (lateralizações ou trocas curtas com um grau de risco baixo e sem quaisquer consequências em termos de ganhos territoriais ou em termos de desequilíbrios do bloco adversário). Das restantes 4, 1 consistiu em entregar rápido, para aproveitar o desequilíbrio momentâneo do adversário e 1 consistiu em conduzir a bola, num momento de transição. Das 17 acções positivas em momentos de organização, 15 foram acções simples de circulação (88% de acções de risco mínimo), 1 foi um cruzamento rasteiro, que acabou por não ter sucesso, e apenas 1 foi um passe vertical para um colega dentro do bloco adversário. Em organização ofensiva, Renato Sanches não conduziu com sucesso uma única vez.

4) Na verdade, Renato conduziu 10 vezes. Ao minuto 1, conduziu e entregou mal. Ao minuto 12, conduziu para a linha e optou por cruzar contra o adversário, quando tinha um apoio recuado. Ao minuto 17, capta a bola junta à linha esquerda, conduz e solta demasiado cedo, e na direcção do adversário. Ao minuto 25, conduz pela linha, com vários adversários à ilharga, não espera pelo apoio e perde a bola. Ao minuto 40, conduz lentamente e, não esperando que o adversário avançasse em direcção a ele, tenta soltar para João Mário, com um mau passe. Ao minuto 47, tenta fintar um adversário e perde a bola. Ao minuto 56, finta um adversário e sofre falta. Ao minuto 59, tenta passar por Bale, é desarmado e perde a bola. Ao minuto 69, finalmente, consegue ter espaço para conduzir, em transição, tira um adversário do caminho e lateraliza para João Mário. Ao minuto 72, goza novamente de espaço, conduz pela esquerda e opta por ir para a finalização, não respeitando o bom trabalho sem bola de Ronaldo, que deixa espaço nas suas costas para Nani. E, ao minuto 64, não conduz quando tinha espaço para isso e quando se exigia que o fizesse, preferindo lateralizar para Nani. Das 10 vezes que conduziu, 6 acabaram com a perda da bola (60% de perdas de bola em acções de condução), 1 acabou com um cruzamento contra 1 adversário, 1 acabou com uma má decisão e um remate por cima (80% de acções de condução absolutamente inconsequentes), 1 acabou em falta e 1 acabou num passe lateralizado para um colega.

5) Renato recuperou 0 bolas e fez 0 cortes.

Comentários a cada uma das conclusões:

1) Já se sabia que falta maturidade a Renato Sanches, e que perde demasiadas bolas para a posição que ocupa. Para aqueles que, apesar de lhe reconhecerem talento, não ignoram os defeitos que tem, não é decerto surpreendente que falhe mais de 1 passe a cada 5 que efectua. Num jogo de exigência tão baixa, em que a maior parte das acções em que participou foram fora do bloco adversário, é muito. E é incompatível, a meu ver, com as obrigações de um médio moderno. As pessoas que gostam das renatices ou não prestam atenção a isto, ou desconsideram esta realidade por acharem que o Renato compensa com outras coisas. Como explicarei a seguir, não há nada no seu futebol que possa indicar tal compensação.

2) Se juntarmos as decisões erradas aos maus passes, a taxa de insucesso do seu futebol duplica: em cada 5 acções, 2 são erradas. E em cada 3 bolas que passam pelos seus pés, 1 acaba nos dos adversários. É muito. Nem sequer é preciso comparar estes números com os dos médios excepcionais: eles são incompatíveis com qualquer médio de qualquer equipa mediana. Aliás, sempre que o grau de dificuldade dos lances aumenta, as más decisões de Renato Sanches aumentam também. A falta de criatividade, a pouca qualidade de passe e o desconforto técnico em situações de decisão rápida não lhe permitem solucionar problemas muito complicados, e o seu futebol só não é prejudicial à equipa quando, jogando fora do bloco adversário, se dedica à simples gestão e circulação da bola. Sempre que se impõe uma acção de penetração, ou sempre que Renato decide que é tempo de procurar acções de penetração, a taxa de insucesso do seu futebol sobe desgovernadamente.

3) Se os números acima não são surpreendentes, pelo menos para aqueles que não acham que o Renato seja o Messi da Musgueira (o que é para aí um décimo da população portuguesa), as conclusões que se seguem talvez sejam. A maioria das coisas bem feitas são acções de risco reduzido, ao alcance de qualquer médio, em qualquer parte do mundo. Se contarmos apenas as situações de ataque organizado, 9 em cada 10 dessas acções positivas são passes para o lado, fora do bloco adversário, sem consequências práticas relevantes que não a mera circulação da bola. A verticalidade que, de acordo com a maioria das pessoas, supostamente oferece ao jogo não se verifica de todo: em 72 minutos, Renato Sanches fez apenas um passe vertical, a explorar o espaço interior, e não conduziu com sucesso uma única vez. Seja através do passe, seja através da condução, as acções com bola de Renato Sanches em nada contribuem para que a equipa consiga penetrar ou para criar desequilíbrios momentâneos na organização defensiva adversária.

4) A ideia, mais ou menos consensual, de que Renato Sanches agita naturalmente o jogo e tem a coragem de conduzir mesmo em situações de dificuldade elevada também não se confirma. Aos 64 minutos, num lance em que tem espaço para progredir em condução e em que se exigia que o fizesse, até para permitir aos colegas o tempo suficiente para efectuarem as suas desmarcações, Renato opta por entregar de imediato na direita, em Nani. O privilégio da condução, percebe-se assim, não advém da coragem ou da confiança que tem ao fazê-lo; advém da absoluta irracionalidade com que joga. Tanto conduz quando deve como quando não deve; tanto arrisca em condução quando se justifica que arrisque como quando não se justifica; e tanto decide não conduzir quando não há condições para o fazer como quando as há. Não são as circunstâncias que determinam as acções de condução de Renato Sanches; são os seus caprichos. E, como qualquer jogador que toma decisões em função de caprichos, é natural que o sucesso das suas acções seja limitado. Note-se, de resto, o pouco que a equipa ganhou (e o muito que perdeu) com as acções de condução em que se envolveu. Das 10 acções de condução, 6 produziram malefícios, 2 não produziram qualquer benefício e 2 produziram pequenos benefícios (a cobrança de um livre e a manutenção da posse de bola). Não, Renato Sanches não é extraordinário em acções de condução. É só alguém que o faz com frequência e à bruta. Como aquilo de que as pessoas que vêem futebol gostam mesmo é de touradas, gostam de ver o touro a investir contra os cavaleiros, de preferência muitas vezes e com toda a força. Enquanto não perceberem que o futebol não é tourada, não perceberão que aquilo que tanto admiram no futebol de Renato Sanches é tão entusiasmante quanto improdutivo. A exultação colectiva com a jogada de Renato Sanches aos 25 minutos representa fidedignamente a taurofilia dos adeptos portugueses: Renato leva para a linha, tenta passar por onde era praticamente impossível que o fizesse, perde a bola e, mesmo assim, as pessoas gritam de emoção e arrancam cabelos.

5) Não creio que precise de dizer grande coisa em relação à quinta conclusão. É verdade que, jogando numa ala e não no meio, a taxa de recuperação de bolas tende a diminuir, e é verdade que, por si só, este tipo de números não espelha o comportamento defensivo de um jogador. De qualquer forma, não ter recuperado qualquer bola nem ter feito qualquer corte, em 72 minutos, permite pelo menos mostrar que a agressividade e a intensidade com que Renato Sanches joga não se traduz, em termos defensivos, em nenhum daqueles factores em que as pessoas julgam que o médio português se destaca. Ao contrário do que se pensa, Renato Sanches não compensa os posicionamentos desastrosos, portanto, nem com recuperações de bola, nem com cortes, nem com desarmes.

Notas finais:

1) É aceitável argumentar, contra a pretensão deste texto, que este jogo não reproduz a real valia de Renato Sanches, e que um jogo mau não deve servir de balança da qualidade geral de um atleta. Aceito o argumento, e não tenho modo de refutá-lo que não através da convicção de que, pelo contrário, as incidências deste jogo retratam fielmente aquilo que Renato é, enquanto jogador de futebol. Estou absolutamente convencido, por exemplo, de que as percentagens de passes errados e de decisões erradas é mais ou menos idêntica a estas. Assim como estou absolutamente convencido de que a esmagadora maioria das coisas que faz bem feitas, como neste jogo, são coisas de baixo grau de dificuldade e, por conseguinte, coisas que qualquer jogador consegue fazer. Mais importante do que isso, estou ainda absolutamente convencido de que a taxa de sucesso em acções de condução (aquilo que tanto parece fascinar os portugueses) não é significativamente diferente daquela que se registou neste jogo, ou seja, praticamente nula. Na verdade, consigo perceber o fascínio Renato Sanches: é desinibido, respeita a exortação predilecta dos estultos, o famoso "Vamos para cima deles!" que amiúde se ouve nas bancadas, tem capacidades atléticas excepcionais e, além disso, é jovem, o que, para muita gente, significa que tem muita margem de progressão. O que não percebo, ou o que não aceito, é que esse fascínio impeça as pessoas de ver que aquilo que faz em campo não produz efeitos dignos de registo. Este não foi um mau jogo de Renato Sanches. Foi um jogo normal. Se tivesse marcado um golo, como contra a Polónia, provavelmente teria sido eleito o homem do jogo, e provavelmente haveria pouca gente a achar que tinha sido um jogo modesto. E esse é que é o problema. Se formos a olhar friamente para cada lance, e para os benefícios e os prejuízos que cada uma das suas acções acarreta, chegaríamos a conclusões como aquelas que este texto defende. Mas olhar friamente para alguma coisa é algo que um adepto de futebol não gosta de fazer. É precisamente por isso que o futebol de Renato Sanches é tão apreciado.

2) Além da jogada do minuto 25, que serve para demonstrar que aquilo que as pessoas mais admiram no futebol de Renato Sanches não acarreta benefícios colectivos, devo ainda destacar a primeira e a última jogada em que o médio português se viu envolvido. A primeira porque é perfeita para mostrar o quão inconsequente é a sua irreverência e a sua hiperactividade: ir buscar a bola aos pés de um central e conduzi-la a toda a velocidade apenas para a deixar nos pés do lateral adversário é a melhor ilustração daquilo que vale. A última porque é perfeita para mostrar o quão irracionais são as suas cavalgadas com bola e o quão mal define, ao contrário do que se julga, em lances de condução: se não consegue respeitar o trabalho sem bola dos colegas, de nada serve que consiga acelerar o jogo.

3) Desde que o europeu começou que me parece o mais fraco de que tenho memória. É pelo menos tão fraco quanto o de 2004. Salvava-se a Alemanha, que acabou por não ter sorte nas meias-finais, a Espanha, que insiste em vir para estas provas sem treinador, a Itália, à qual falta a qualidade individual de outros tempos, e em certa medida a criatividade isolada de certos grupos jogadores croatas (Modric e Rakitic) e galeses (Allen e Ramsey). Na final, estará a equipa anfitriã, que teve muitas dificuldades para superar as poderosíssimas selecções da Roménia e da Albânia, nos dois primeiros jogos (o que conseguiu apenas porque tem individualidades notáveis), e estará também uma equipa que passou o seu grupo em terceiro, com três empates contra equipas dificílimas como a Islândia, a Áustria e a Hungria, e que se foi apurando, eliminatória após eliminatória, quase que por milagre (ou porque teve uma sorte inacreditável no sorteio, ou porque tem o melhor cabeceador de todos os tempos, ou através das grandes penalidades, ou num lance de contra-ataque depois de levar uma bola no poste). Num europeu medíocre, cujo desenho favorece os medíocres, ganhará, portanto, uma equipa medíocre. Para bem do futebol, era bom, ainda assim, que ganhasse a menos medíocre das duas.