segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

O Tottenham de Villas-Boas

André Villas-Boas foi um dos treinadores que mais nos impressionou nos últimos anos. Em poucas semanas, quando chegou à Académica, revolucionou o estilo de jogo da equipa. Os seus jogadores, com poucos treinos, mostravam organização, qualidade de jogo e personalidade de equipa grande. Depois, ao longo da época, a qualidade foi aumentando; tirando os desafios contra os grandes, era sempre a sua Académica quem dominava os jogos pela posse. Ainda assim, faltava imaginação no meio-campo. Assumimos que faltasse por não haver qualidade individual suficiente. No Porto, a história foi obviamente outra. Um ano extraordinário, em que ganhou tudo, bateu records, e ainda fez de Hulk um jogador ligeiramente menos auto-centrado. Mas mesmo o seu Porto não convenceu totalmente. Era uma equipa muito bem organizada, com alguns mecanismos ofensivos muito bem trabalhados, mas excessivamente vertical. Assumimos, uma vez mais, que tal fosse consequência da presença de Hulk, em quem Villas-Boas sempre apostou incondicionalmente, e assumimos também que o ocaso de Belluchi, na segunda metade da época, fosse motivada pela lesão que sofreu em meados da mesma. No Chelsea, modificou as suas ideias assim que as coisas começaram a correr mal e, em abono da verdade, é difícil fazer uma análise justa ao seu desempenho não sabendo quanto do mesmo foi minado pela pressão do grupo de jogadores. No Tottenham, portanto, tinha Villas-Boas o seu derradeiro exame. Numa equipa de segunda linha, com um plantel interessantíssimo e um orçamento bastante apetecível, sem a pressão de ter de vencer nada, tinha Villas-Boas todas as condições para apresentar as suas ideias.

A decepção não pode ser, por isso, maior. Interessa-me pouco que o Tottenham esteja à frente de equipas como o Arsenal e o Liverpool, por exemplo: o futebol praticado pela equipa é deprimente. Interessa-me pouco, também, que a equipa demonstre carácter e ambição, que discuta até ao fim o resultado com o campeão em título, que não baixe os braços, que denote uma enorme vontade. Só a qualidade do futebol me interessa. E essa é francamente má. Sim, há organização, há competência táctica, há trabalho de casa feito. O que não há é um pingo de imaginação. A equipa de Villas-Boas é cinzenta, joga mecanicamente. Não tem ideias, e não procurou cortar com nada do que se continua a fazer em Inglaterra. Villas-Boas tem provavelmente o plantel atleticamente mais refinado, das 6 equipas de topo do futebol inglês. Tem laterais que parecem cavalos, tem médios fortes do ponto de vista físico, e muito dinâmicos, tem talvez a dupla de extremos mais veloz da competição. Mas não tem um único jogador de futebol. No início da época, à inevitabilidade de perder Modric, o seu médio mais interessante, juntou Villas-Boas a dispensa de Van der Vaart e Kranjcar. Para o meio-campo, foi buscar Dembélé e Dempsey, dois bons jogadores, física, táctica e tecnicamente, mas a quem falta criatividade. Juntou a toda esta modificação a ostracização ainda de Scott Parker, o único médio com ideias diferentes. O único central de jeito que tem veio-lhe parar às mãos quase por acaso, uma vez que estava contratado antes de Villas-Boas ter assinado, e não é uma aposta clara, jogando até a defesa-esquerdo quando Assou-Ekotto não pode. Falo de Jan Verthongen, obviamente. De resto, André Villas-Boas nunca pareceu muito preocupado com o facto de ter uma dupla de centrais de estacas, joguem Dawson, Caulker, Kaboul ou Gallas. Na direita, Kyle Walker é o tipo de lateral vistoso, que corre muito, que é agressivo, que disputa todos os lances como se fossem o último da sua vida, mas que comete, pelo menos, cinco erros graves por jogo, e faz disparates atrás de disparates, quando tem a bola. Villas-Boas nunca pareceu muito preocupado com isso, e Kyle Walker continua o dono indiscutível da posição. Não sei se Villas-Boas teve ou não responsabilidades na dispensa de Corluka, mas o croata é vinte vezes melhor que Walker.

Na frente, Jermaine Defoe tem sido o dono do lugar de ponta-de-lança. É um jogador vertical, que serve apenas para solicitações nas costas da defesa e jogo de área. Não tem qualidade nos apoios, e é um avançado a quem falta qualidade para jogar numa equipa que procure um futebol interior, de posse, paciente. Aaron Lennon é um extremo velocíssimo, mas que não sabe o que é uma equipa. Nunca achei que pudesse vir algum dia a aprender a jogar com os colegas, e o seu jogo esta época parece-me ainda mais deficiente. Quando sai do drible na linha, já tem a jogada toda na cabeça; não há uma única ideia ali. Ou vai forçar o um para um para fora até cruzar, ou vai driblar para dentro até ter espaço para rematar. Ontem, frente ao Manchester United, há um lance que o define. Finta para dentro, arranja espaço na zona frontal, e a sua acção faz com que os defesas de Alex Ferguson ajustem o seu posicionamento, vedando a zona central, o que cria um buraco que deixa Dempsey completamente isolado. Ao chegar à zona de tiro, com dois adversários pela frente, bastava encostar no colega, que ficava com De Gea só pela frente. Lennon, porém, já tinha executado tudo na sua cabeça, e rematou, sem consequências. Para que serve toda aquela velocidade, toda aquela qualidade técnica, toda aquela explosão, aquela capacidade de drible, se não consegue adequar isso às necessidades da equipa? Lennon pode fintar o seu opositor directo vinte vezes por jogo, pode pôr as bancadas ao rubro, pode, sozinho, criar situações de perigo, que a equipa nada ganha com isso. O único jogador que me agrada no Tottenham é Gareth Bale, mas também ele parece embriagado pelo individualismo táctico em que se joga. Na verdade, em ataque organizado, este Tottenham parece uma equipa de miúdos a jogar na rua: o primeiro que apanha a bola tenta fuçar até conseguir alguma coisa. Fazem isto Lennon, Bale, Dembelé e Defoe, à vez. Se recebem de costas, tentam virar-se. Ninguém dobra o passe, ninguém joga nos apoios recuados, ninguém pára quieto um segundo, para perceber qual é a melhor solução, por que zonas deve a bola correr. Não admira que o Tottenham tenha especiais dificuldades contra equipas que se fecham lá atrás; a bola não circula, a equipa progride quase sempre através do transporte, quase não há jogo entre linhas.

Este Tottenham tem uma atitude competitiva interessante, tem jogadores abnegados, lutadores, tacticamente responsáveis. Falta-lhe, porém, aquilo a que quase ninguém dá valor: criatividade. Em tempos, julguei que Villas-Boas desse valor a isso. O seu discurso, e algumas das ideias que algumas das suas equipas apresentaram, levavam a crer que fosse diferente. Não é. É mais um treinador, de uma vaga de treinadores modernos, que tem métodos de trabalho interessantes, que é competente a organizar as suas equipas, mas que não é especialmente distinto de ninguém. O seu Tottenham é a prova clara disso. Villas-Boas preza a organização, a agressividade defensiva, a responsabilidade táctica, e a intensidade de jogo acima de coisas como a imaginação, a criatividade e as ideias. Pode ter agradecido a Guardiola quando ganhou a Liga Europa, mas não me parece que tenha aprendido nada com ele. Se houve coisa que Guardiola ensinou foi que a intensidade e a agressividade estavam sobrevalorizadas. Villas-Boas estava no sítio certo para mostrar que Guardiola tinha razão: o futebol inglês. Em Inglaterra, qualquer equipa que saiba pausar o jogo, que saiba trocar a bola calmamente, que saiba gerir o ritmo da partida, que saiba chamar o adversário e fazer a bola entrar no seu bloco, é rainha. Villas-Boas transformou a sua equipa para ser o oposto disto, para ser uma equipa que mordesse os calcanhares a todos os adversários. Com isso, pode bem causar problemas até aos candidatos ao título, mas jamais fará do Tottenham uma equipa grande. O quarto lugar que ocupa é o melhor que poderá almejar, e é já muito. Tal posição depende dos índices de concentração e da mentalidade competitiva da equipa, que tem sido alta. Mas está à mercê dos resultados. Uma equipa que suporta o seu futebol na mentalidade agressiva com que joga depende sempre dos resultados para ser capaz de manter a mentalidade. No dia em que as coisas começarem a correr mal, o futebol do Tottenham deixa de produzir resultados, e Villas-Boas falhará. É esse o triste fim daqueles que vendem a alma ao diabo ao trocar a qualidade pela competitividade.