Voltei, há umas semanas, a ouvir o meu amigo imaginário e achei importante referir a conversa que então se desenrolou. Enquanto dava o Liverpool, Gláucon comentou:
Gláucon: Ó Sócrates, este Kuyt é mesmo bom jogador.
Sócrates: É interessante. A escola holandesa é fértil em grandes avançados.
Gláucon: É verdade! Assim como a italiana. Por que será que assim é?
Sócrates: Esse problema tem explicação nas características de ambos os campeonatos. Embora por razões diferentes, está no carácter do futebol destes dois países a explicação para tamanha fecundidade em avançados.
Gláucon: Não sei se te entendo. Pretendes que é por causa do estilo de futebol que se pratica num determinado país que os jogadores que crescem nesse país são diferentes, de uma forma geral, dos jogadores que crescem noutro país?
Sócrates: Sim, é isso mesmo.
Gláucon: Não sei se concordo. Não terá antes a ver com questões culturais, históricas, económicas, político-sociais?
Sócrates: Evidentemente.
Gláucon: Então como concilias as duas coisas?
Sócrates: As duas coisas não se excluem. Os jogadores serão o resultado de um processo cultural, mas também o resultado de uma necessidade inerente ao próprio futebol em que estão incluídos.
Gláucon: No Brasil isso é assim?
Sócrates: No Brasil todos jogam à bola na rua. Os jogadores têm a sua aprendizagem nas ruas, por imitação dos mais velhos, e têm liberdades que outra aprendizagem não permitiria. Na rua, cada um quer ser o melhor; cada um pega na bola e tenta fazer coisas inigualáveis. Não interessa que a equipa seja a melhor. Quando chegam aos escalões mais velhos, estes jogadores têm por bagagem uma capacidade individual notável, mas pouca ou nenhuma cultura táctica. Além disso, psicologicamente, têm tendência a privilegiar as acções individuais às do colectivo. É por isso que o Brasil, apesar das grandes quantidades de jogadores, produz poucos guarda-redes ou defesas. Na rua, esses são apenas os "outros", aqueles que os virtuosos tendem a ultrapassar. Num futebol sem espírito colectivo, sem noção de colectivo, como é o futebol de rua, há tendência a formar jogadores de grande qualidade técnica, que conduzem bastante bem a bola, que fintam. Uma boa observação do futebol brasileiro permite perceber certas tendências...
Gláucon: E que tendências são essas?
Sócrates: Além de poucos defesas, de poucos guarda-redes de qualidade, o Brasil também não é fecundo em médios-defensivos. Os jogadores que se destacam pelos aspectos defensivos raramente se tornam jogadores de topo. Já em médios ofensivos, avançados (sobretudo avançados ágeis), abundam as opções.
Gláucon: Mas então como explicas que o Brasil, com tantos talentos individuais, não produza extremos de craveira mundial, ó Sócrates?
Sócrates: Bem observado. A aprendizagem do jogador brasileiro, como referi, faz-se através do individualismo. Isso implica, além de querer fazer coisas extraordinárias com a bola, uma tentativa de participar constantemente no jogo. O jogador brasileiro, porque individualista, não percebe, durante toda a aprendizagem, que a construção ofensiva é feita em várias fases e que a cada jogador está destinada uma parcela dessa construção. Como tal, procura ser ele a fazer tudo, deslocando-se no terreno em função da posição da bola. Porque procuram sempre ter a bola, as suas movimentações são de aproximação a ela e não de afastamento. Assim, o jogador brasileiro gosta muito mais de ocupar espaços centrais, por onde a bola passa mais vezes, do que de se desmarcar pela linha, à espera de um passe longo de um colega. A actividade de extremo, meramente passiva em grande parte da construção ofensiva, não se coaduna com as raízes individualistas e egocêntricas do jogador brasileiro. Daí haver poucos jogadores de linha e muitos para o meio do terreno.
Gláucon: Mas o Brasil produz os melhores laterais do planeta. Como explicas isto, ó Sócrates?
Sócrates: Assim é. A abundância de jogadores habilidosos faz com que nem todos sejam médios de ataque. Os mais velozes e potentes terão de ocupar outras posições, preferencialmente nas alas porque mantêm características técnicas que lhes permitem subir com facilidade e integrar-se no ataque. O lateral brasileiro, porque a sua aprendizagem o cunhou com a vontade de participar no jogo atacante, é muito ofensivo e, por conseguinte, descuidado a nível defensivo.
Gláucon: E como explicas que raramente se encontre um jogador brasileiro cerebral, que paute o jogo da equipa, que não entre em dribles excessivos, que ocupe bem os espaços e que faça fluir o futebol ofensivo?
Sócrates: Pelas mesmas razões que não há extremos. O jogador brasileiro cresceu a fintar os outros; foi ensinado a tentar resolver as coisas sozinho. Um jogador com as características que referes é um jogador que privilegia o colectivo, que põe as suas características ao serviço da equipa e que faculta a outros mais dotados a possibilidade de desequilibrarem.
Gláucon: Não sei se estou convencido. De qualquer maneira, o futebol brasileiro de que falas é então um futebol que se explica por questões culturais. Em que medida é que um certo tipo de futebol, que se molda por necessidades inerentes ao seu estilo próprio, modela os jogadores consoante essas necessidades?
Sócrates: No Brasil, isso não parece acontecer, de facto. Aliás, na Argentina passa-se algo semelhante. Nos países em que a formação a nível dos clubes é negligenciada, os jogadores formam-se sozinhos. Sobressai, portanto, nestes países, a individualidade. Acontece, então, que ao nível sénior o futebol não assenta em bases estritamente colectivas. O futebol nestes países nunca deixa de ser um futebol de rua. É um jogo entre duas equipas apenas na medida em que onze jogadores têm missões opostas a outros onze. Mas raramente se joga em equipa. As equipas brasileiras são equipas apenas na medida em que cada um dos seus jogadores tem por objectivo colaborar para o sucesso do conjunto. Mas o futebol brasileiro é desconexo: cada um tem a liberdade de fazer o que bem lhe apetecer. Há espírito de entreajuda na medida em que querem todos o mesmo, mas sobressai uma vontade individual que não se pode conciliar com os objectivos da equipa. Nos países que formam jogadores deste tipo, os campeonatos são muito pouco racionais e ganha, geralmente, a equipa que tiver as melhores unidades. Neste tipo de campeonato, que assenta num futebol individualista (e por individualista entendo não o ser egoísta, mas sim não possuir um espírito colectivo relevante) o nível táctico tem pouca importância. Um futebol tacticamente pobre nunca pode moldar jogadores no sentido que refiro.
Gláucon: Aceitas então que o jogador brasileiro é consequência apenas de um processo cultural?
Sócrates: Sim e não. Digo que sim porque é esse mesmo processo cultural que impede que o futebol brasileiro se desenvolva ao ponto de necessitar de jogadores com características específicas. Mas também digo que não porque, como é pobre a nível táctico, impera a individualidade e os jogadores mais adequados são aqueles que tenham maior desenvoltura individual. Porque o futebol brasileiro aprecia sempre os que se desembaraçam melhor sozinhos, produz jogadores individualmente muito fortes. O futebol brasileiro, pela cultura em que se insere, necessita e molda jogadores que melhor se adequem à realidade brasileira, ou seja, jogadores individualistas, capazes de resolver jogos sozinhos, que conduzem bem a bola, mas tacticamente desinstruídos e sem um verdadeiro espírito colectivo. É assim o estilo de futebol do Brasil (fundado pelas condições culturais do país, como é óbvio) que faz com que os jogadores brasileiros tenham certas características.
Gláucon: Isso não me parece muito fácil de perceber. Mas ainda não explicaste, ó Sócrates, por que é que a Holanda produz tantos avançados.
Sócrates: Tens razão. Mas não preciso de muito tempo para o fazer.
Gláucon: Tenho para mim que o futebol holandês produz muitos avançados de qualidade porque, tacticamente, é um futebol de orientação ofensiva. Num futebol assim, destacam-se sempre os avançados. É assim, ó Sócrates?
Sócrates: Não inteiramente. Nesse caso, o futebol inglês, que também é um futebol ofensivo, também produziria atacantes de grande nível com a mesma frequência. E assim não é, pelo menos nos últimos tempos.
Gláucon: Creio que tens razão. Então como explicas isso? E, já agora, como explicas que, tanto o futebol holandês, virado para o ataque, como o futebol italiano, virado para a defesa, produzam grandes atacantes? Não é contraditório?
Sócrates: Não. Não é o facto de ser um futebol ofensivo ou defensivo que vai talhar os jogadores, mas aquilo que cada estilo de futebol exige deles. O futebol holandês, desde há várias décadas, privilegia não só um futebol iminentemente ofensivo, como a materialização dessa filosofia de ataque através de um jogo colectivo. Ao contrário de outros países em que se joga igualmente ao ataque, como nos países sul-americanos, por exemplo, ou em Inglaterra, na Holanda o ataque assenta não nos jogadores, não nas individualidades, mas no conjunto.
Gláucon: E que significa isso?
Sócrates: Significa isso que, na Holanda, os avançados tendem a trabalhar as situações ofensivas com uma ideia de colectivo sempre presente. Dessa forma, evoluem segundo rotinas de futebol apoiado, privilegiando situações como as tabelas, as triangulações, o passe curto. Porque o futebol holandês coloca bastantes homens no processo ofensivo, os avançados holandeses têm tendência a trabalhar aspectos como a rapidez de raciocínio. Porque num futebol ofensivo implica haver menos espaços para jogar nas zonas ofensivas, os avançados holandeses tendem a aprender, desde cedo, outras formas de contornar os colectivos adversários. Não havendo muito espaço, porque as transições não são rápidas, os avançados holandeses evoluem sem privilegiar as acções individuais, quase sempre infrutíferas. São, assim, verdadeiramente, jogadores de colectivo, que trabalham desde pequenos para encontrar soluções ofensivas enquanto inseridos num colectivo.
Gláucon: E é esse trabalho específico que os modela?
Sócrates: Com efeito. É por causa de trabalharem, desde muito novos, esses aspectos, que adquirem essas características.
Gláucon: E no futebol italiano? Como explicas então, ó Sócrates, que o futebol italiano também produza grandes avançados? Não é contraditório, uma vez que a orientação do seu futebol é muito mais defensiva do que na Holanda?
Sócrates: Como disse, caro Gláucon, não é por um futebol ter uma orientação ofensiva ou defensiva que terá mais ou menos avançados de qualidade. O futebol inglês tem uma orientação ofensiva e ainda assim não produz avançados de grande nomeada. Isso deve-se ao facto de o futebol inglês, embora assente num estilo directo, ser muito pouco equilibrado. Nas transições defesa-ataque, a equipa que ataca encontra sempre muitos espaços entre as linhas adversárias, que está invariavelmente descompensada. Por causa dessa deficiência táctica, os jogadores têm mais espaço para jogar, não necessitando de aperfeiçoar certos aspectos técnicos como o drible curto ou o raciocínio rápido. Porque o futebol em Inglaterra é jogado a muita velocidade e há sempre muito espaço para jogar, o avançado inglês não encontra, ao longo do seu processo de formação, necessidade de se modificar. O estilo inglês implica apenas que trabalhe a velocidade, o poder de choque e a agressividade, o que é evidentemente insuficiente perante estilos de futebol mais fechados. Como os processos ofensivos em Inglaterra são muito simples, os seus avançados não trabalham senão o mais simples possível, ficando aquém de avançados de outros países por isso mesmo.
Gláucon: Percebo. Mas ainda não explicaste por que razão, então, em Itália também se produzem grandes avançados. E, de acordo com o que pretendes do futebol inglês, não é também contraditório que em Itália, onde o estilo também é muito directo, como em Inglaterra, haja avançados de grande qualidade?
Sócrates: Compreendo a tua relutância, Gláucon. Mas creio que continuas sem me perceber. Não é nem o pendor ofensivo/defensivo de um futebol nem o modo como se definem as transições defesa-ataque que definem o estilo de um futebol e o tipo de jogador que se forma nesse futebol. Em Itália, de facto, as transições são relativamente semelhantes às de Inglaterra, muito directas, simples, procurando chegar à frente de forma rápida. As diferenças, contudo, são relevantes.
Gláucon: E que diferenças são essas?
Sócrates: Em Itália, embora a primeira transição seja, normalmente, a procura dos jogadores mais adiantados, não se coloca tanta gente no processo ofensivo. Daqui resulta que as equipas se desequilibram menos e que os ataques estejam, quase sempre, em inferioridade numérica perante as defesas.
Gláucon: É por causa disso que o futebol italiano é tão fechado?
Sócrates: Com certeza. Há a preocupação, em Itália, de as equipas nunca se exporem desnecessariamente. Isto implica que o futebol transalpino se divida em dois momentos claros: o defensivo e ofensivo. As equipas defendem para depois lançarem os seus avançados; há jogadores para defender (mais) e jogadores para atacar (menos). Isto faz com que, passando para o momento ofensivo, os atacantes necessitem de se desembaraçar sem uma rede de apoios. Por causa desta necessidade de resolverem as coisas sozinhos, sem o apoio colectivo, os avançados italianos desenvolvem características individuais relevantes, como seja a capacidade de segurar e proteger a bola, nalguns, ou o drible curto, noutros, ou a capacidade de desmarcação, noutros ainda. O avançado italiano, porque em inferioridade numérica perante defesas que nunca se desmontam, evolui por necessitar de arranjar soluções individuais com que resolver os seus problemas.
Gláucon: De facto, Sócrates, a tua explicação faz sentido. Segundo o teu argumento, tanto na Holanda como em Itália, produzem-se grandes avançados, mas por razões diferentes.
Sócrates: Exactamente. Por razões diferentes, mas inerentes a cada um dos estilos de futebol.
Gláucon: E em que pé ficam as razões sócio-culturais?
Sócrates: As razões sócio-culturais podem interferir na evolução de um jogador e presidir ao estilo de futebol de um país. Desse modo, podem relacionar-se indirectamente com o tipo de jogadores que se formam nesse país. Mas as características desses jogadores serão sempre resultado de uma necessidade de adaptação ao estilo de futebol que se pratica nesse país. Nesse sentido, é unicamente o estilo de futebol praticado, influenciado, é certo, por razões sócio-culturais, que vai exigir a evolução dos jogadores.
Gláucon: De certa forma, então, tens para ti que os jogadores evoluem apenas por necessidade de adaptação?
Sócrates: Sim, sem dúvida.
Gláucon: É esse um ponto de vista darwiniano?
Sócrates: Creio que sim, embora de forma um pouco vaga. É o ambiente (estilo de futebol) que rodeia as espécies (jogadores) que vai determinar quais das espécies são mais aptas à sobrevivência. Aqueles que melhor se adaptarem às exigências do ambiente são os que sobrevivem. Esses vão evoluir no sentido de se adaptarem cada vez melhor às exigências, enquanto que os outros vão cair no esquecimento. Esta adaptação às exigências é o que os torna melhores, no fundo. Uma vez determinada esta qualidade, as gerações seguintes vão evoluir no mesmo sentido. Evidentemente, características como a qualidade futebolística não passam geneticamente de geração para geração, pelo que não se pode falar de selecção natural como Darwin. Mas o facto de a sobrevivência ser limitada apenas àqueles que souberem adaptar-se às exigências é, por si só, uma forma de selecção. Não sendo uma selecção natural, porque não é definida por características inatas, é ainda assim uma selecção com base na sobrevivência dos mais aptos. Nesse sentido, creio, os jogadores evoluem de um ponto de vista darwiniano, sendo que os ambientes mais agressivos, mais competitivos, são os que produzem melhores espécimes.
Gláucon: Para resumir o teu argumento, ó Sócrates, Itália e Holanda são então, por razões diferentes , é certo, os habitats mais exigentes para os avançados?
Sócrates: Sim, exactamente. E é essa exigência que vai fazer com que esses avançados sejam, por norma, os de melhor qualidade.
Gláucon: Gosto dessa explicação, ilustre Sócrates. Estou uma vez mais rendido...