1. O Fim de uma Era
Quando a época passada terminou, e o Barça de Luis Enrique conquistou os três principais títulos, tive o ensejo de escrever um texto que, por vários motivos, acabei por nunca escrever. O que queria ter dito na altura e não disse é o que, muito abreviadamente, direi agora. O Barça ganhou tudo e, para muitos, voltou ao domínio do futebol europeu. A minha opinião é ligeiramente diferente: o Barça ganhou tudo, e perdeu finalmente a hegemonia que teve na última década. Pode parecer um contrassenso, mas creio que as conquistas do ano passado são o ponto final de uma era que começou com a chegada de Guardiola ao clube. O futebol da equipa de Luis Enrique já não tinha muito a ver com aquele que Guardiola preconizava (e que Tito Villanova e Tata Martino, mal ou bem, mantiveram), e o sucesso desse futebol significa a ruptura decisiva com o passado. Correndo o risco de parecer incoerente, uma vez que defendo que esse futebol já não tinha muito a ver com a da grande equipa de há uns anos, acho que muito desse sucesso se deve ao que os jogadores aprenderam com Guardiola: muito do que seria o trabalho do treinador é dispensado pelo que os jogadores, em termos colectivos, ainda retêm dessa altura. O mérito de Luis Enrique nas conquistas da equipa é, aliás, muito reduzido. Além de um conjunto de jogadores que cresceram a fazer uma série de coisas que agora fazem de olhos fechados, contou com jogadores que, do ponto de vista individual, fizeram toda a diferença. Para dizer de outro modo, o Barcelona ganhou tudo como poderia ter perdido tudo e como várias equipas ganham tudo. Jupp Heynckes ganhou tudo pelo Bayern há uns anos, e não me parece que lhe deva ser dado um mérito especial. Há sempre alguém que tem de ganhar, e o ano passado calhou ao Barcelona. Ao ganhar desse modo, como ganharia qualquer outra equipa, o Barça voltou a ser uma equipa normal. E a hegemonia que teve, e que continuava a assustar toda a gente, acabou. Por outras palavras, foi a melhor equipa dos últimos dez anos, mas arrisco-me a dizer que não será a melhor dos próximos. Se o impacto de Guardiola se viu até ao ano que passou, culminando com o triplete de Luis Enrique, o impacto de Luis Enrique ver-se-á daqui a 5 anos, quando o Barça for uma equipa banal.
2. A Lesão de Messi
Há um pormenor que costuma ser negligenciado quando se fala nas conquistas europeias: as lesões. Os dois anos em que Guardiola não ganhou a Champions quando ao serviço do Barcelona foram pautados por lesões relativamente longas ou recorrentes de jogadores importantes: Ibrahimovic, Iniesta, Villa, etc.. A equipa de Luis Enrique teve um ano praticamente imaculado, a esse nível, e isso também foi decisivo. Foi-o, de modo evidente, na forma como pôde superar o Bayern de Guardiola, fustigado por lesões, mas foi-o também ao longo de toda a época. Não houve lesões de grande duração em nenhum jogador importante, e isso permitiu à equipa manter os seus índices de produtividade. Que o tenha sido não me parece, de modo nenhum, irrelevante. Repetir a sorte de uma época sem lesões é praticamente impossível, e creio que isso ditará um ano bem mais modesto em termos de conquistas. A primeira lesão importante aconteceu este fim-de-semana, e ainda não se sabem bem as consequências dela. Apesar de ser preferível perder Messi nesta altura, dois meses (mais um mês ou dois até recuperar o melhor ritmo) é tempo suficiente para que o Barça perca terreno, por exemplo, no campeonato. Messi, aliás, foi decisivo nos jogos decisivos da época passada, e o principal responsável pelo sucesso de Luis Enrique nas provas a eliminar (em vários jogos da Champions, concretamente contra o Bayern, e na final da Taça do Rei, por exemplo). Sem Messi, o Barça de Guardiola era só a mesma equipa menos o seu melhor jogador. Sem Messi, o Barça de Luis Enrique vale menos de metade.
3. Xavi e Iniesta
Apesar de ter perdido a titularidade a época passada, Xavi foi quase sempre utilizado por Luis Enrique. Quando jogava de início, o Barça era quase sempre melhor, apesar de praticamente ninguém conseguir ver isso. Quando entrava, a equipa passava automaticamente a jogar melhor. Ainda que em final de carreira, aquele que foi, muito possivelmente, o melhor jogador de sempre, no que diz respeito à tomada de decisão, mantinha uma influência incrível, e só aqueles que acham que o futebol requer os melhores atletas não eram capazes de percebê-lo. Como o futebol é dominado por essa gente, tornou-se praticamente consensual que a era de Xavi no Barça chegara ao fim. Tenho para mim que não foi só a era de Xavi que terminou. Com Xavi, foi-se também a melhor equipa de sempre. Aliás, restam dessa equipa poucos jogadores: Dani Alves, Piqué, Busquets, Iniesta e Messi. Com a saída de Xavi (e a de Pedro), a somar-se às saídas em anos anteriores de Thiago Alcântara e Fabregas, por exemplo, o futebol de toque curto, mais pensado do que corrido, chegou ao fim. O próprio Iniesta, se virmos bem, é um autêntico órfão em campo. Messi tem capacidades atléticas (e idade) que lhe permitem adaptar-se a um estilo de jogo diferente, e o entendimento com jogadores mais vertiginosos torna-se fácil. Iniesta não as tem, e o seu futebol eclipsa-se a cada dia que passa. Não quero ser mal entendido: esse futebol não se eclipa por Iniesta já não ter capacidades físicas para mantê-lo vivo, mas porque já não está rodeado de colegas a quem interessa jogar o mesmo jogo. Cada jogador é aquilo que o rodeia. E Iniesta deixou de estar rodeado dos mais inteligentes. O Barça de Luis Enrique já não é o Barça de Xavi e Iniesta. Em tempos, num lance que não consigo situar (imaginava, erradamente, ter sido o lance em Old Trafford que permitira a Paul Scholes fazer o golo que eliminou o Barça nas meias finais da Champions de 2007/2008), Xavi falhou um passe decisivo à entrada da área por tê-lo feito sem perceber antecipadamente se o colega a quem passava a bola estaria à espera de recebê-la. Ninguém me compreendeu, porque para quase toda a gente não se deve passar a bola antes de olhar a ver se lá está o colega. Xavi, ao falhar esse passe, antecipava o Barcelona de Guardiola. Antecipava-o na medida em que antecipava aquilo que o Barcelona de Guardiola permitia a todos os jogadores, e em especial ao próprio Xavi: jogar de olhos fechados e passar sem precisar de perceber se o colega vai estar onde deve estar. Xavi passou a bola, nesse dia, para onde devia estar o colega. Só que o colega não estava lá porque não tinha sido ensinado a perceber antecipadamente onde Xavi queria que ele estivesse. O Barcelona de Guardiola fez-se sobretudo disto: todos pareciam saber com antecedência suficiente as intenções dos colegas. Numa equipa assim, ninguém superava Xavi. Tinha sempre mais passes que toda a gente, percorria sempre mais metros do que os outros. Sem bola, dava mais opções ao portador do que qualquer outro colega. Com ela, era sempre o mais eficaz, optasse pelo passe curto ou pelo passe longo. Agora que a equipa de Xavi e Iniesta já não existe, a única boa notícia é que estão os dois (especialmente Xavi) mais próximos de se tornarem treinadores de futebol.
4. As Inconsistências e os Estúpidos
Quando, na segunda época de Guardiola, Ibrahimovic marcou 16 golos na Liga Espanhola em 2034 minutos (num total de 21 golos em 3285 minutos jogados em todas as competições), quase toda a gente concluiu que tinha sido uma má época do sueco. Apressaram-se então a dizer que falhara na Catalunha, ainda que o seu contributo para a manobra ofensiva do Barça tivesse sido inestimável, e que Guardiola se equivocara ao contratá-lo. Guardiola e Ibrahimovic não parecem ter-se entendido às mil maravilhas, é verdade, mas duvido que o rendimento do sueco tenha sido o problema. Guardiola começava a perceber que precisava de colocar Messi numa posição central, e Ibrahimovic não parecia disposto a jogar noutra posição. A saída de Ibrahimovic do clube pareceu dar razão àqueles que defenderam o mau investimento, e o principal argumento foi sempre aquele que os estúpidos mais depressa invocam: os números. Ora, os números de Ibrahimovic nessa primeira época são praticamente os mesmos que os de... isso, acertaram: Luis Suarez! Suarez fez, a época transacta, os mesmos 16 golos em 2180 minutos na Liga Espanhola (num total de 25 golos em 3535 minutos em todas as competições). Em média, Suarez marcou menos golos por minuto jogado na Liga Espanhola do que Ibrahimovic. Com quatro agravantes. A primeira é a de que o Barça de Luis Enrique, enquanto equipa, fez mais 12 golos do que o de Guardiola nessa época, o que significa que Ibrahimovic fez 16,3% dos golos da equipa e Suarez apenas 14,5%. A segunda é a de que, apesar de ter começado a jogar mais tarde, Suarez nunca se lesionou, o que fez com que nunca tivesse quebras de rendimento, coisa que não aconteceu com Ibrahimovic, que esteve constantemente a recuperar de lesões. A terceira é a de que, além dos golos, Suarez não ofereceu mais nada à equipa, o que também não foi o caso com Ibrahimovic, cujo envolvimento com o colectivo foi muito importante. A quarta é a de que Luis Suarez foi bem mais caro do que Ibrahimovic. Tudo somado, até para aqueles que gostam de apoiar os seus argumentos nos números, é impossível defender que Ibrahimovic tenha feita uma má primeira época e que Suarez tenha feito uma boa época. Mas - surpresa das surpresas - é exactamente isso que é defendido de modo generalizado! Suarez é hoje tido como um dos elementos mais importantes da equipa catalã, está eleito entre os três melhores jogadores da temporada passada, e há sobre ele uma opinião generalizada muito favorável. Não é impressionante que assim seja. A maior parte das pessoas baseia as suas opiniões no que ouvem dizer e o que ouvem dizer é geralmente o que não interessa ouvir. Neste caso, Suarez é tido como uma grande contratação porque o Barça ganhou a Champions e porque Suarez é aquele tipo de avançado do qual se condescende porque é aguerrido. Não tem metade da qualidade de Ibrahimovic, não fez metade do que Ibrahimovic fez em Barcelona e, como se demonstra, nem sequer marcou mais golos do que Ibrahimovic. O futebol continua a ser dos estúpidos, e os estúpidos continuam a fazer-se ouvir a outros estúpidos. Um dos avançados mais sobrevalorizados da actualidade já pode dizer que foi eleito para melhor jogador do mundo; o melhor avançado da história do jogo nunca chegou a sê-lo, e provavelmente já não virá a sê-lo.