Há muito que me apetecia escrever um texto sobre Tomás Rosicky, e esta semana surgiu o pretexto ideal. Fruto das várias lesões que tem tido, nos últimos anos, e fruto também da idade avançada, Rosicky não é um titular indiscutível no Arsenal. Ainda assim, e havendo na equipa muitos médios de ataque com as características do checo (Arteta, Wilshere, Ramsey, Cazorla, Ozil), Wenger não deixa de contar com ele, há já várias épocas, e aqui e ali aparece na equipa, quase sempre com enorme qualidade. Devo confessar que, de todos os médios acima referidos, e reconhecendo que Rosicky pode não ser capaz, nesta fase da carreira, de exibir a regularidade de outros, é o meu preferido, seja pela classe inigualável, seja, em termos mais concretos, por dar à equipa coisas que nem mesmo o alemão Ozil é capaz de dar. Entre linhas, com pouco espaço e pouco tempo para decidir, é sem dúvida aquele que melhor lê o que a jogada pede, aquele que mais rapidamente percebe qual a melhor decisão a tomar. É ainda aquele que, em posse, mais pensa na verticalidade, e, se pode fazer a bola entrar entre linhas, recorrendo ao apoio frontal, não passa para o lado nem procura uma solução menos arriscada. Exemplos das suas melhores características são dois dos golos marcados pelo Arsenal na goleada desta semana frente ao Sunderland.
O primeiro golo do Arsenal começa precisamente com a invasão do espaço entre linhas por Rosicky, facilitando a decisão de Podolski, que executa o passe vertical sem dificuldades. Ao mesmo tempo, Wilshere entra sem bola pelo centro, e Rosicky, apercebendo-se disso, rapidamente desvia a bola na direcção do inglês. Com dois passes, o Arsenal não só entrou entre os médios e os defesas adversários como deixou fora da jogada o defesa que saíra em contenção a Rosicky. A decisão de Rosicky, de tão rápida, deixou Wilshere com a bola controlada à frente de um dos centrais e em posição de remate. Não há muitos jogadores com capacidade para decidir tão bem e tão rápido, e ainda menos são os que o conseguem fazer dando a impressão de que não é difícil fazê-lo. O melhor lance do jogo, contudo, estaria reservado para o terceiro golo, um lance cuja finalização, não obstante a qualidade da mesma e não obstante ter sido precisamente da autoria do checo, é o pormenor menos relevante.
O Arsenal é das poucas equipas que procura sistematicamente lances deste tipo, envolvendo vários atletas nas jogadas de ataque, com tabelas curtas a disposicionar os defesas, e Wenger tem todo o mérito nisso. Com Rosicky em campo, no entanto, a probabilidade de estas coisas acontecerem, e a qualidade com que acontecem, é espantosamente diferente. O lance começa com Wilshere a invadir o espaço entre linhas, com Rosicky a lateralizar para Cazorla, não interrompendo a marcha e invadindo o espaço deixado vago pelo médio adversário que saiu a Cazorla, e com o espanhol a dar de primeira em Wilshere. Wilshere, respeitando o movimento do checo, dá por sua vez de primeira, deixando Rosicky de frente para o lance, só com a linha defensiva pela frente. Com três passes e uma simples triangulação, o portador da bola ficou assim à frente da linha de meio-campo e de frente para a baliza. Se isto já era óptimo, o que Rosicky fez de seguida foi ainda melhor. Sem muito espaço, e não havendo qualquer desposicionamento da defesa contrária, solicitou de primeira Giroud, apesar de o francês praticamente não ter espaço e estar obrigado a jogar de primeira, e desmarcou-se por entre um central e o lateral-esquerdo. Giroud, percebendo as intenções do colega, devolveu de primeira, entre os dois centrais, e deixou Rosicky cara a cara com o guarda-redes adversário. A finalização do checo é primorosa, mas todo o lance é de absoluto génio. Com cinco toques na bola, e envolvendo quatro jogadores, o Arsenal entrou em progressão pelo centro do bloco adversário, um bloco que, de resto, estava bem organizado no início do lance. Embora o espaço não fosse muito e não houvesse grande liberdade para aproveitar, a equipa londrina arranjou maneira de entrar por onde é letal entrar, e soube criar uma situação de golo clara sem precisar de um erro do adverário para o fazer.
Jogar futebol é essencialmente, fazer coisas destas, e é por estas e por outras que a equipa de Wenger, não tendo o orçamento que alguns dos rivais têm e não tendo uma equipa especialmente atlética, se manteve na alta roda do futebol europeu nos últimos anos. Muitos são aqueles que têm criticado o treinador francês ao longo dos últimos anos, sobretudo por não ganhar títulos há muito tempo, mas poucos têm sido capazes de explicar a regularidade impressionante do Arsenal. Mesmo não ganhando nada há muito tempo, nunca fez pior do que o quarto lugar, discutiu várias vezes o título com outras equipas, e apurou-se sempre para a fase das eliminatórias na Liga dos Campeões, algo que, por exemplo, Alex Ferguson não foi capaz de fazer. Disse o ano passado que, caso o Arsenal não perdesse nenhum jogador, e dadas as mudanças que se anunciavam em Manchester, os comandados de Wenger seriam novamente candidatos ao título. Embora outros tenham achado que era uma patetice, e que o mais certo era o Arsenal ser ultrapassado por clubes em ascensão como o Tottenham, justifiquei a minha opinião com base não só na regularidade da sequipas de Wenger e na maturidade que, este ano, esta equipa atingiria, mas também no tipo de futebol que preferencialmente praticam. Esse tipo de futebol, que esta jogada tão bem exemplifica, é único em Inglaterra. E é esse tipo de futebol o mais eficaz para vencer adversários que fazem do suor e da entrega as armas preferenciais. Num campeonato em que a principal virtude é a capacidade atlética, só há duas maneiras de uma equipa se superiorizar às outras: ou ter uma equipa mais forte que as outras, do ponto de vista atlético, ou ser uma equipa diferente. Não podendo competir, em termos orçamentais, com os principais emblemas britânicos, o Arsenal de Wenger só pôde manter-se ao nível deles recorrendo à segunda hipótese. E, este ano, parece estar finalmente a colher os frutos dessa escolha. Ainda é cedo para perceber o que pode esta equipa fazer, na recta final da prova (se bem que a saída da Champions que se anuncia possa ser benéfica para as aspirações internas da equipa), mas estar na corrida pelo título a três meses do final da competição é já um murro no estômago dos que, com todas as certezas do mundo, achavam que Wenger era um falhado. Quanto a Rosicky, em quantas equipas do topo europeu seria ele opção? Quantas equipas, daquelas que lutam sistematicamente pelo campeonato e que têm algumas ambições europeias, manteriam durante tantos anos um jogador que, apesar de virtuoso, não é especialmente veloz, aguerrido ou combativo, um jogador que fisicamente é algo frágil e que já não vai para novo? Rosicky pode não ser das principais opções de Wenger, mas é com certeza o melhor exemplo do que o francês entende ser este desporto. Para aqueles que gostam de futebol, cada toque na bola de Rosicky é um momento para mais tarde recordar. Como não se sabe quanto mais durará, e se outros serão capazes de fazê-lo no futuro, sugeria que se aproveitasse ao máximo as coisas que ele tem para nos oferecer.
10 comentários:
Bom texto Nuno, o Rosicky merece sem dúvida o tributo que lhe fazes aqui.
Abraço
Já sabia que ias falar dele. Tem estado sensacional este ano, já merecia um texto. Aliás, lembro-me de em textos antigos quando te perguntavam sobre o Arsenal, ou a equipa Checa, dizeres sempre que preferias o Rosicky aos nomes mais badalados. Fantástico este checo.
Foi em 1992, no campo do CAC da Pontinha, num Selecção de Loures - Sparta de Praga, que eu marquei esse menino...
Levámos duas batatas..
Nuno, não seria o Wenger uma opção muito mais aceitável para o lugar que ocupa neste momento Tata Martino?
Merecido.
Pode não ter os bolsos tão fundos como outros, mas se calhar também convém gastar melhor o dinheiro. Nas últimas 3 épocas gastou 168 milhões de euros. Não é tanto como os outros, talvez não, mas se calhar com mais competência a escolher jogadores, dava para títulos. Além disso, tem beneficiado de jogadores muito talentosos da formação como wilshere, o ramsey e agora têm um puto o crowley que pode ser the next big thing.
Nuno, não achas que esse discurso do não gastar tanto como os outros, já chega ?
Quem o forçou a gastar milhões em jogadores como o Gervinho, o Chamberlain, o Park, o Mertsaker, o André Santos, ou em todos os outros que gastou ? Este ano optou por gastar 50 milhões só no Ozil.
Acho que o problema dele foi começarem a aparecer treinadores que com dinheiro são capazes de mostrar que ele se tem méritos a orientar as equipas, nem sempre os tem a escolher jogadores.
Concordo com o argumento que já várias vezes disseste que a direcção lhe tem destruído a equipa ao longo de algumas épocas (não todas), ou os jogadores acabam por forçar a saída, mas será que isso não acontece porque olham para a sua carreira e começam a pensar que se calhar no Arsenal não vão conquistar títulos ?
Quanto às jogadas, são deliciosas.
André Soage, também ainda me lembro dele no Sparta. Já há, ainda muito novo, se destacava largamente dos colegas.
pah, coisas,
Que era melhor opção, sim, parece-me que sim. Embora me pareça que um dos males do Tata Martino seja também um dos males do Wenger, a incapacidade para trabalhar as transições defensivas.
Bcool diz: "Nuno, não achas que esse discurso do não gastar tanto como os outros, já chega ?"
Não, porque ainda há muito gente que não o percebe. Tu, por exemplo, não me parece que estejas a perceber bem. Quando falo de orçamento, não falo necessariamente no dinheiro para contratações. Onde se nota a desiguladade é no tipo de contratos que podem oferecer. Isso faz com que sejam incapazes de competir pelos melhores jogadores, a menos que nenhuma outra equipa tenha conhecimento do negócio, como foi no caso do Ozil, e, sobretudo, que sejam incapazes de reter os melhores jogadores durante muito tempo. Onde se nota a desigualdade de orçamentos é na incapacidade de construir uma equipa ao longo dos anos, não em se reforçar pontualmente. De resto, o mérito dele nem é a orientação da equipa, pois há, nesse capítulo, coisas que não faz bem. Onde me parece muito bom é, precisamente, a escolher jogadores. Não há ninguém, em Inglaterra, que dê tanto espaço a jovens jogadores, ninguém que os recrute sobretudo pelas suas qualidades técnicas, etc.. É verdade que também tem algumas escolhas más, mas em quantidade escolhe bem melhor do que a maioria. Wilshere?? Ramsey?? Quem é que eles seriam se não fosse o Wenger? Ele é que teve sorte por tê-los?? Pelo contrário, eles é que tiveram sorte por o Wenger ser o treinador do Arsenal. O melhor aspecto do Wenger, ao contrário do que sugeres, é precisamente o gostar de um certo tipo de jogadores de que, aliás, o Rosicky faz parte, e construir a sua equipa em torno desse tipo de jogadores.
Hoje, 26 de Outubro de 2014, Tomas Rosicky continua a ser o melhor médio do Arsenal. É incrível como estando apto (pelo menos está sempre na ficha de jogo), tem tão poucos minutos.
Falando do Arsenal, o que vos parece o perfil de decisão do Alexis? Reconhecendo que fisica e tecnicamente é de outro nível, ao nível das decisões parece ainda um corpo muito estranho na equipa londrina...
Pois, o Wenger, ao mesmo tempo que gosta de inteligência e criatividade, gosta de quem corre muito. E o Rosicky, para ele, não lhe dá o segundo aspecto. É pena. Se Wenger fosse mais ousado, só não jogaria quando fosse preciso poupar-lhe as pernas.
Nunca gostei do Alexis. Tecnicamente é forte, mas não tem um perfil de decisão que me agrade. No Barça, por exemplo, só gostei dele quando o Guardiola decidiu pô-lo a avaçado-centro, para aproveitar a profundidade dele.
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