Nos últimos 15 anos, o futebol foi-se tornando, gradualmente, um jogo de médios como estes dois. Com Andrea Pirlo, o futebol mundial aprendeu que os médios-defensivos não precisavam de ser, como até então se julgava, jogadores de competências essencialmente defensivas. O futebol mundial aprendeu, e o futuro precipitou-se. Nenhuma equipa de topo, hoje em dia, tem como médio-defensivo um cão de guarda., e nenhuma equipa de topo que queira ganhar alguma coisa poderá voltar a pensar em ganhar tendo médios que saibam apenas andar atrás dos adversários. Devemos isso a Andrea Pirlo. Um grande jogador vê-se sobretudo no modo como antecipa o futuro da modalidade. Ainda que não pareça haver qualquer relação entre as duas coisas, a revolução de Guardiola não teria sido possível sem Pirlo. Não é por acaso, de resto, que Guardiola quis juntar (e esteve pertíssimo de consegui-lo) Pirlo a Xavi e Iniesta, como conta o italiano na sua biografia. Pirlo é o precursor dessa fabulosa equipa de médios, e o verdadeiro precursor do futebol moderno. É também, em boa verdade, o precursor de Xavi Hernandez, cujo futebol se tornou perfeito apenas quando Guardiola pegou na equipa e lhe entregou a batuta.
Xavi é o médio mais perfeccionista de sempre. Quando o futebol se tornou, acima de qualquer outra coisa, um jogo de decisões, foi ele quem melhor mostrou como se jogava esse novo jogo. Nenhuma revolução se faz de um dia para o outro, e Xavi herda anos de evolução na Catalunha e herda também aquilo que, por exemplo, Pirlo andava a mostrar há alguns anos. Quando finalmente pôde pôr em prática tudo isso, mudou o jogo para sempre. Fez parte da melhor equipa de todos os tempos, ganhou tudo e mais alguma coisa, mas o seu principal legado são as decisões acertadas. Ninguém, como ele, conseguiu acertar tanto, estar tanto em jogo, receber tanto e passar tanto como ele. Quando Guardiola saiu de Barcelona, pensava-se que aquele futebol tinha acabado, e que o futuro era de equipas que jogavam de modo diferente do seu Barcelona. Não é assim que as coisas se processam. O futebol, como muitas outras coisas, evolui. Tal como nunca mais será possível haver grandes equipas com médios que não saibam jogar à bola, também não voltará a ser possível ganhar continuadamente sem uma equipa que se caracterize pelas boas decisões. A evolução pode não ser linear, pode haver precalços e pequenos retrocessos, mas é irreversível.
Andrea Pirlo é o rosto do futebol do século XXI e Xavi Hernandez a sua alma. Quis a História que terminassem as suas carreiras (ao mais alto nível, pelo menos) no mesmo estádio, na mesma final, disputando o melhor dos troféus, defrontando-se um ao outro e, o que é espantoso, ainda jogando a um nível altíssimo. A admiração mútua é talvez o maior destaque desta final, e é por ela que nenhum dos dois saiu realmente derrotado de Berlim. Pirlo e Xavi mudaram o futebol, e ambos reconheceram a importância do outro nessa mudança. Não é todos os dias que dois campeões deste calibre, com esta personalidade e admirando-se mutuamente, fazem o último jogo oficial na Europa jogando um contra o outro numa final da Liga dos Campões. É por isso que interessa menos qual dos dois ficou com a taça do que o abraço que as câmaras e os fotógrafos registaram no final do jogo. Há pequenos momentos que a posteridade lembra com mais nitidez do que aquilo que se passou no jogo a que correspondem, e este será sem dúvida um deles. O legado de Pirlo e Xavi é maior do que qualquer vitrine premiada, e na retina dos vindouros ficará esta imagem, não o que se passou em campo. Hoje é um dia triste, porque deixaremos de ver dois dos maiores jogadores de sempre. Amanhã haverá, por isso, menos classe nos relvados europeus. Mas o futebol será um jogo muito diferente do que era antes de eles pisarem os grandes palcos. O papel decisivo que ambos tiveram na evolução do jogo ninguém lhes tira, e quem gosta realmente deste jogo só pode estar, por isso, muitíssimo agradecido por tudo o que eles fizeram. Pirlo e Xavi podem ter terminado as suas carreiras, mas o futebol que jogavam não terminou. Voltaremos a vê-los, ainda que nos pés e nas ideias dos melhores médios que se lhes seguirem.
3 comentários:
Excelente texto e concordo com quase tudo. O quase é de achar que essa mudança começou com a selecção francesa e o sucesso que teve na fase em que conquistou o mundial e o europeu. Nessa fase o meio campo que a frança apresentou, não era ao nível de jogadores como Pirlo ou Xavi, obviamente, mas não era composto por carregadores de piano mas sim de jogadores que sabiam tratar bem a bola quando ela lhes chegava aos pés. Acho que foi aí que se começou a perceber o salto qualitativo que seria em ter um meio campo que sabia jogar á bola.
Pedro, meio campo com jogadores que sabiam jogar à bola sempre houve. Acho que aquilo de que aqui se fala é mais do fim da figura do médio-defensivo «carraça» como modelo de referência. Ora a França de que falas ainda jogava com o Dechamps, o Karembeu ou o Desailly, que, do meu ponto de vista, não se enquadram no mundo dos Pirlos e Xavis.
É verdade que Pirlo (inequivocamente, por aceitação canónica da superioridade do seu futebol) marca o início de uma era, mas há outros jogadores que, anteriormente, na mesma posição, foram faróis numa altura em que o que grassava eram os então eufemisticamente chamados «carregadores de piano» e que já indicavam o rumo do futebol moderno, como o Redondo e o Paulo Sousa.
Obviamente que não são Xavis e Pirlos. Digo isso no comentário. Mas eram médios defensivos que procuravam sair a jogar, ter a bola controlada, e não apenas cães de fila, atrás dos adversários e a passar a bola para os centrais quando a recuperavam. Uma ligeira diferença para o modelo "habitual" naquela altura.
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