quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Por que é que as coisas são como são? (1)

Há umas semanas, estava a ver o Chelsea quando o Belleti galga 60 metros com a bola e marca golo ao Wigan. Pensei: "Hmmmm... isto foi fácil de mais! Deixa cá ver se este jogo que está a dar não é do campeonato inglês." E era. Foi mais ou menos nessa altura que o meu amigo imaginário, a quem vou chamar convenientemente Gláucon, me dirigiu a palavra:

Gláucon: Granda golo!!! Granda, golo, ó Sócrates! Viste aquilo? O gajo fez 60 metros com a bola; passou pela equipa toda...

Sócrates: Pois...

Gláucon: Não estás satisfeito, ó Sócrates? Não foi um grande golo?

Sócrates: Foi razoável.

Gláucon: Razoável? Mas porquê? Ele passou pela equipa toda.

Sócrates: Não tirou ninguém do caminho com arte. Fez tudo em velocidade e só pôde disfrutar de tanto espaço porque o adversário, tacticamente, era permissivo.

Gláucon: Queres explicar isso?

Sócrates: O futebol inglês, apesar de muito competitivo, não é tão bem jogado como se usa dizer. É um futebol essencialmente irracional, no qual é muito mais importante a agressividade, a intensidade, a constante movimentação, as transições rápidas, etc. O sistema táctico de quase todas as equipas é o 442 clássico. Nesse sistema, com uma filosofia de jogo iminentemente ofensiva e de transições rápidas, não é possível equilibrar defensivamente nenhuma equipa. Ao se balancearem para o ataque sem pensarem, concedem espaços inevitáveis. Num 442 clássico, não é possível atacar sem abrir espaços atrás. Em Inglaterra, quase todas as equipas jogam nesse sistema. Quando sobem no terreno, fazem-no com transições rápidas, o que estica a formação. Ao perderem a bola, só têm dois homens no meio-campo e um espaço enorme para preencher. É, por isso, natural que se abram corredores intermináveis por onde jogadores como o Belleti passam sem dificuldade. O golo de que falas, ó Gláucon, parece um grande golo, mas dificilmente aconteceria noutro campeonato. E não é por este ser o campeonato no qual estão os melhores jogadores; é por este ser o campeonato tacticamente mais ingénuo.

Gláucon: Tens razão, ó Sócrates. Vês as coisas com clareza. Eu é que sou um bocado sofista e não compreendo nada. Mas tens de considerar, apesar de tudo, que o campeonato é competitivo, que há emoção em cada lance, que os jogadores se entregam a 100% e que não dão nenhuma bola por perdida. E tens de considerar que essa atitude competitiva é louvável e que o espectáculo ganha muito com isso.

Sócrates: Assim não o considero, ó Gláucon. No campeonato inglês, há mais contacto físico do que noutros campeonatos, é verdade; os jogadores disputam as bolas com ferocidade, é verdade. Mas isso, ao contrário do que se pensa, não advém de uma mentalidade mais competitiva do que a mentalidade do jogador continental. Até, pelo contrário, advém da ingenuidade do próprio campeonato e dos próprios jogadores.

Gláucon: Que fundamentos tens para dizer tal coisa?

Sócrates: Quero que me escutes com atenção. Todas as vicissitudes do campeonato inglês radicam no sistema táctico e na filosofia de jogo das equipas britânicas e não numa suposta mentalidade diferente, excêntrica: a mentalidade do futebol inglês é consequência do sistema táctico utilizado e não o contrário. Vergado ao peso da tradição, o futebol inglês, em vez de se modificar estruturalmente, optou por se adaptar; em vez de transformar a filosofia de jogo, obsoleta há 20 anos, optou por tentar contornar o problema. Assim, manteve a mesma filosofia de jogo, mas, perante as necessidades modernas, teve de lhe acrescentar outras coisas. Para mascarar as lacunas de tal filosofia, havia que propor a cada jogador uma entrega a 100%. Assim, os problemas colectivos levantados pela utilização do 442 clássico foram supridos através do empenho individual. O problema, contudo, é óbvio: um sistema assim depende da eficácia de onze individualidades e, à mínima falha de um, tudo desaba.

Gláucon: Não sei se concordo contigo, ó Sócrates.

Sócrates: Continua a ouvir sem os preconceitos que formaste ao longo da vida. Um 442 clássico é um sistema rígido, de três linhas inflexíveis. Num sistema assim, há mais espaço entre linhas e entre jogadores. O futebol moderno, mais veloz, tacticamente mais adulto, veio pôr a nu tais espaços. Havia duas maneiras de contornar o problema: modificar o sistema, arranjando forma de, colectivamente, se ocuparem melhor os espaços, ou exigir uma entrega individual inexcedível, em que cada jogador corresse o mais possível. O futebol inglês optou pela segunda alternativa, o que faz dele um futebol essencialmente individual, uma vez que se baseia na conduta de cada um dos elementos do conjunto.

Gláucon: Sim, mas de onde vem tanta competitividade, tanta disponibilidade para disputar os lances? Tens de convir, ó Sócrates, que nisso o futebol inglês é diferente dos outros.

Sócrates: Assim o é, evidentemente. Mas aquilo que afirmo é que essa diferença não reside numa mentalidade diferente. Tudo deriva do sistema táctico e da filosofia de jogo. Ao se exigir a cada jogador que se entregue ao máximo para suprir lacunas colectivas, ele fá-lo defendendo homem a homem. Num esquema rígido, em que há muito espaço entre linhas, as equipas só podem conter o ímpeto ofensivo dos adversários defendendo homem a homem. Num 442 clássico, a defesa à zona é muito menos eficaz (porque muito mais difícil de pôr em prática) que uma defesa homem a homem, uma vez que se criam espaços que não é possível preencher. Assim, o campeonato inglês pauta-se por equipas que defendem ao homem e, nesse sentido, é natural que haja muito mais confrontos, muito mais bolas disputadas, muito mais agressividade, muito mais competitividade.

Gláucon: Insinuas então que a competitividade do futebol inglês resulta do facto das equipas defenderem homem a homem?

Sócrates: Efectivamente. E essa defesa homem a homem resulta do sistema táctico e da necessidade de suprir as lacunas do mesmo. A teimosia histórica do 442 clássico obriga então os jogadores, conscientes da necessidade de defender, a procurar a melhor forma de o fazer. Nesse sistema, a melhor forma (ou a forma mais fácil) é fazê-lo homem a homem, o que gera necessariamente mais bolas divididas, mais ressaltos, mais agressividade, etc. O futebol inglês só é competitivo porque assenta numa perseguição individual a cada adversário; as equipas defendem encaixando as suas pedras nas pedras adversárias. Emparelhados, os jogadores disputam as bolas sempre com o seu opositor directo em cima, o que faz com que o futebol aparente muita entrega. Aliás, todas as equipas que defendam homem a homem criarão, por certo, a mesma ilusão que as equipas inglesas criam e parecerá que os seus jogadores são muito mais competitivos que os demais. Nada mais falso. A competitividade é, não raro, resultado de uma necessidade. Um jogador que corra menos não significa que seja mais preguiçoso ou que seja menos competitivo que outro; normalmente, ou significa que é mais inteligente, ou significa que a sua equipa defende de uma forma em que não necessita que ele corra tanto. O problema da defesa homem a homem, ainda que seja a melhor num esquema como o 442 clássico, é que um jogador que se desembarace com facilidade do seu opositor cria desequilíbrios muito maiores do que um jogador do mesmo tipo contra uma defesa à zona. Ao se desembaraçar do seu adversário directo, obriga a que outro adversário lhe saia ao encalço, desprendendo outra marcação. Num sistema assim, é óbvio que as equipas que tiverem individualidades que provoquem melhor este tipo de situações são as equipas mais bem sucedidas; num sistema assim, quem tiver as melhores individualidades tem as melhores equipas; num sistema assim, o colectivo não tem força rigorosamente nenhuma e a cultura táctica ocupa um papel secundário. Assim se demonstra que a competitividade do futebol inglês é resultado do sistema táctico que se privilegia e que essa mesma competitividade, além de meramente ilusória, é sintoma também da ingenuidade geral do futebol em solo britânico.

Gláucon: Estou rendido, ó Sócrates. Fazes chacota de todos os sofismas...

9 comentários:

Pedro disse...

Brilhante texto. Deu gosto ler.Estou a falar a sério.

Concordo com quase tudo (digo quase senão ficas todo inchado...hehehe). Só acho q a determinada altura do texto confundes competitividade com dinâmica/intensidade de jogo. O q dizes da forma como os jogadores ingleses disputam os lances enquadra-se mais na intensidade do q na definição de competitividade. Encaro o conceito de competitividade de outra forma, das equipas lutarem pela vitória, pelo equilibrio das mesmas, etc.

A forma como as equipas jogam e disputam os lances e fazem as tais marcações ao homem enquadra-se mais no conceito de dinâmica de jogo e na intensidade da disputa dos lances.

Anónimo disse...

ya ya, muito bom texto... :)

Anónimo disse...

Isto é genial... quando eles escrevem um texto de grande qualidade como o deste post não ha comments nenhuns, quando é sobre o Liedson ou Farnerud... UI sempre para cima de 30 comments... vamos lá nos perceber esta gente

Nuno disse...

Agora imagina que isto era um jornal e que precisava de vender. A que tipo de texto achas que o dito jornal daria privilégio? O que é polémico atrai muito mais. A grande vantagem de um blog é que não precisa disso para sobreviver...

Pedro disse...

Vamos lá separar as coisas...Um texto q não gera discórdia terá sempre menos comentários...isso é óbvio. Nem todos têm paciência para chegar aqui e escrever q o texto está muito bom e concordam com o q é dito.

É perfeitamente natural q alguem dizer q o Liedson não presta permita mais discussão do q dizer q o futebol inglês é fraco tacticamente...

duvka disse...

sim senhor, um texto bem articulado, com argumentos crediveis, mas não é bem assim como dizes...
o 442 clássico so tem tantas lacunas se não for entendido por quem o utiliza...ora vejamos...na defesa nada se altera...temos os 2 laterais e os 2 centrais com as funções normalmente entregues a qualqer sistema com uma defesa a 4...
agora passamos para o meio campo e aí pode-se dizer que o futebol inglês é tudo menos ingénuo tacticamente...
exemplos: últimas épocas de liga dos campeoes(dominada pr clubes ingleses), e agora perguntas:como é possivel um futebol com 3 linhas bem definidas e com tantas lacunas conseguir triunfar no futebol continental?e aí entra a tua tal errada teoria q diz que o futebol inglês se moldou tão competitivo por haver mais espaços e marcação homem/homem...
manchester:Médios centro:carrick e anderson(assim como fletcher, scholes e hargreaves embora lesionado nos últimos tempos)... nao s pode chamar a nenhum dos 2 um 10 clássico, mas no entanto ambos tem caracteristicas propicias para a construção de jogo e conseguem manter a agressividade e uma leitura defensiva perfeita...alternando subidas no terreno e compensando-se um ao outro...o jogo passa pr eles e em 2 jogadores com as caracteristicas ideais conseguimos ter um "6", um "8" e um "10" apenas com 2 jogadores libertando unidades e espaço pa ra ocupar melhor as entrelinhas adversarias...
Médios ala:muitos perguntam com aqele coreano tinha lugar no 11 no united tendo extremos como nani como giggs(este embora entendendo bem o modelo de jogo, a idade pesa)?
observação simples, do outro lado jogava um vagabundo e um tacticamente indisciplinado e so o melhor do mundo CR7...ora bem JS Park era o 3º homem q dava coesão ao meio campo não deixando de aparecer maioritariomaente em situações ofensivas, mas com uma capacidade de recuperação completamente superior à de ronaldo...de ronaldo n vale a pena explicar nada, está vista...
Pontas de lança:um homem perfeito para este modelo q entendia qual o momento de baixar no terreno, ora para pegar no jogo ora para compensar qlqer subida, ora de laterias ora de medios centro ou medios ala, wayne rooney, e depois mais 2 homens de carcteristicas diferentes um do otro: tevez/berbatov...
um bastante batalhador e com capacidade de recuperação podendo apoiar o meio campo na transição ataque/defesa e um otro mais fixo mas com qualidade posicional e de passe acima da média como berbatov, q conseguia abrir espaços e assistir as entradas dos medios centrais e medios alas...
feito isto...deixei aqui argumentos para provar que o futebol inglês não é ingenuo, pode, por ser vivido de uma forma diferente de todas as otras culturas ter deslizes devido à tal entrega e competitividade do tipico jogador britanico, mas no meu ponto de vista adaptou-se ao futebol continental, não perdendo as suas bases, mas pelo contrário moldando-as tornando a sua dimensão fisica num ponto a seu favor e a isso juntando tacticas e estrategias cerebrais atraves de executantes talentosos não so na prática como a nivel mental

Nuno disse...

duvka, você, de futebol, não percebe nada. Uma vez que também não sabe o que é um argumento, pois pensa ter dado vários quando, na verdade, não deu nenhum e referiu banalidades, não me apetece contrariá-lo. Fique com o seu jogo que pensa ser futebol. Mas tente não voltar a falar do meu jogo, que é bem diferente do seu...

duvka disse...

esse e o seu mal...a falta de humildade, acha-se ser o dono da verdade, rejeitando qualqer otra teoria, mas o que me parece e que fala de forma muito cientifica e da parte pratica e uma nulidade, pelas suas palavras não faz a minima ideia do que e viver o futebol dentro dele...tenho muita pena...que tnha duas palas nos olhos q so lhe permitam ver num sentido

Bimbosfera disse...

Boas. Já cá não vinha há algum tempo, e a qualidade dos textos, aparentemente, mantém-se. O texto está muito interessante, parabéns por ele. Não estou mandatado para falar por ninguém, mas, no entanto, acho que as respostas nos comentários ao comentador, Duvka, mereciam outra atenção, outro respeito, mas... Lá está, não estou «mandatado» por ninguém.

Abraço

Márcio Guerra, aliás, Bimbosfera

Bimbosfera.blogspot.com