quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Carrosséis Imaginários e a Desmarcação como Engodo

Não há equipa, actualmente, que promova discussões teóricas tão interessantes como o Barcelona. Toda a revolução conceptual que a equipa de Guardiola encetou, sobre a qual parece agora haver consenso, embora há três anos, quando o sugerimos aqui, ninguém acreditasse nisso, deu ocasião a várias ideias acerca das suas virtudes. Uma delas, muito comum, tem a ver com a ideia de carrossel. Para muita gente, onde este Barcelona se distingue é na dinâmica circular que os seus jogadores apresentam, no exercício de um carrossel, ao estilo do futsal, que faz com que os jogadores não tenham posições fixas no terreno, baralhando as marcações. Escusado será dizer que discordo disto, como aliás o título do texto o sugere. Na minha opinião, não existe qualquer carrossel. E, apesar de concordar que a dinâmica da equipa é fortíssima, faz-me sempre confusão que se defenda a dinâmica como uma virtude porque me parece sempre que as pessoas que falam de dinâmica usam a palavra para designar qualquer coisa que não percebem bem. Aqueles que dizem que a dinâmica deste Barcelona é fantástica parecem-me sempre, por isso, pessoas que são capazes de reconhecer que a equipa é extraordinária, mas que, por não perceberem ao pormenor o que a torna extraordinária, usam uma palavra de um modo vago para explicarem a elas próprias o desconforto que sentem. A teoria do carrossel vem na sequência disto.

Não sou especialista em futsal, nem percebo o suficiente do jogo para ter opiniões interessantes acerca dele, pelo que me absterei de falar dele em pormenor. No entanto, não posso deixar de referir que o futsal, nem que seja pelas dimensões do campo e pelo número de jogadores em cada equipa (o que faz com que a interacção entre jogadores e entre equipas seja diferente de um jogo em que o número de jogadores é diferente), é um jogo muito diferente do futebol. Como se joga com os pés e como muitas das regras são semelhantes às do futebol, as pessoas têm a tendência a achar que são jogos parecidos. Eu acho que as parecenças são superficiais, e que, no que há de essencial, o futebol é tão distinto do futsal como do basquetebol. É também por isso que a ideia de que este Barcelona tenta emular o carrossel que tipicamente as equipas de futsal utilizam me parece francamente absurda. No futsal, a ideia de cobertura (ofensiva ou defensiva) muito provavelmente não faz sentido (ou tem um sentido muito diferente); no futebol é fundamental. Para ser justo, as pessoas não acham que o Barcelona utilize um carrossel em que todos os seus jogadores intervêm. Mas muitas acham que, pelo menos do meio-campo para a frente, é assim que a equipa joga, sendo por isso que causa tantos problemas aos adversários. Se o Barça utilizasse um carrossel, pelo menos do meio-campo para a frente qualquer jogador poderia passar por qualquer posição. E isso não é verdade. Ninguém vê o médio defensivo à frente dos médios ofensivos. Ninguém vê o extremo a fazer cobertura ao médio defensivo. Saber aproveitar os espaços interiores é muito mais importante do que fazer a equipa circular como um carrossel.

Falar em carrossel para definir o futebol do Barcelona ou é falso ou profundamente vago. E por isso absurdo. Resulta essencialmente de as pessoas perceberem que a equipa de Guardiola se movimenta de forma esquisita, para aquilo que é normal, e de darem demasiada importância a isso. Outro dia, quando via o clássico contra o Real Madrid, disse-me uma das pessoas com quem via o jogo que parecia que o passe nunca era feito para o jogador que se desmarcava. Não vale a pena falar do privilégio que é ver futebol com quem consegue fazer observações deste tipo. Mas é muito mais relevante, e sobretudo muito mais concreto, falar disto do que falar de carrosséis imaginários. Esta, sim, é uma observação sobre a qual vale a pena reflectir, e que pode explicar muito melhor o que é esta equipa. Durante décadas, aceitou-se quase religiosamente a ideia de que o portador da bola devia respeitar a desmarcação do colega, endossando-lha. O Barcelona de Guardiola também veio quebrar com esse preconceito, e usa a desmarcação como ilusão, para sugerir uma hipótese de passe que depois não utiliza. O trabalho sem bola, seja para a receber, seja para atrair atenções, é fundamental nesta equipa. E esse trabalho sem bola é muito mais complexo do que um mero carrossel em que os jogadores se movimentam em círculo, complementando-se uns aos outros. Não é raro que um avançado baixe para que dois médios entrem nas costas; não é raro que um extremo faça uma diagonal para o lateral receber na profundidade; não é raro que um jogador se movimente horizontalmente entre linhas para que um médio, vindo de trás e com um movimento vertical, receba a bola no exacto local de onde o colega partiu.

Quando se fala em sistemas tácticos sem avançados, dá-me, por isso, vontade de rir. Do facto de o Barcelona entrar em campo sem jogadores com características de avançados não se segue que não jogue com avançados. O que define um avançado é a posição relativa aos colegas em que joga, não as suas características. Quando se diz que a revolução operada por Guardiola consistiu principalmente na utilização de um modelo de jogo sem avançado, ou num modelo de jogo sem avançados, erra-se grosseiramente. Guardiola jogou sempre com avançados, ainda que avançados com movimentações e características diferentes das que habitualmente os avançados têm. Aquilo que me parece, de facto, revolucionário na dinâmica desta equipa não tem, portanto, a ver com um sistema táctico sem avançados, nem com um modelo de jogo semelhante a um carrossel, mas sim com uma certa arte de atacar. Tal como me parece que a equipa usa a bola como um engodo, para puxar os adversários para onde deseja e para arranjar os espaços que pretende, parece-me que usa igualmente a desmarcação como engodo, para sugerir linhas de passe que não utiliza e para levar adversários a tentar antecipações que não ocorrerão. Ao fazê-lo, causa necessariamente a ilusão de que os seus jogadores se movimentam sem lei, como se não tivessem posições, e de que a dinâmica da equipa assenta nessa desordem. Ora, a desordem é apenas aparente, e serve para levar as defesas adversárias a desorganizarem-se. O Barcelona é organizadíssimo. E é por sê-lo que aproveitam de forma tão sistemática a desorganização que os movimentos sem bola dos seus jogadores causam nas defesas contrárias. Se jogassem em carrossel, como muitos acham, o Barcelona seria uma equipa muitíssimo mais previsível, mais fácil de parar, e muito mais permeável em termos defensivos.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Certezas (25)

Não é propriamente uma novidade, mas há muito que merecia a honra de ser falado aqui. Não o fiz antes essencialmente porque queria perceber melhor qual seria o seu enquadramento no plantel da sua equipa, este ano, até porque tinha ideias a esse respeito. O seu valor é inquestionável e serão poucos os que acharão alguma novidade nesta referência. Não é, como o seu ídolo, Xavi, um jogador tão inteligente e criterioso no momento do passe. Nem me parece que seja em fases de construção tão prematuras que pode fazer a diferença. Claro que pode jogar aí, e claro que aparecerá sempre em zonas baixas, mas a sua qualidade de drible, sobretudo, merece um aproveitamento diferente. Não o considero tão rápido a ler o jogo como outro colega com quem cresceu e com quem coabitou no meio-campo, Jonathan dos Santos, mas parece ter maiores recursos que o mexicano, e uma personalidade mais forte. É atrevido, tem uma capacidade técnica invulgar, e é assaz inteligente para jogar em qualquer posição do meio-campo, mas é entre linhas, enfiado entre as defesas contrárias que gostaria de vê-lo mais vezes. É fortíssimo no último passe, muito criativo, e individualmente desembaraça-se de situações difíceis sem problemas. Como médio, não tem ainda a maturidade nem a qualidade para poder ombrear com os habituais titulares, e ficaria durante muitos anos na sombra deles. Mas encostado à esquerda, como no último jogo, partindo depois para dentro, ou à frente dos dois médios, percorrendo sem bola os espaços entre os médios e os defesas adversários, oferecendo-se para tabelas curtas e puxando as marcações adversárias para onde interesse à equipa, acho que tem tudo para crescer. Em qualquer uma dessas posições, a sua responsabilidade é menor, e as suas melhores qualidades podem continuar a ser trabalhadas. O seu treinador não parece concordar, utilizando-o quase sempre como médio-ofensivo, mas nunca como aquele jogador que joga à frente dos médios, menos posicional, deambulando pela frente de ataque com menores amarras, mais preocupado em solicitar linhas de passe do que em ter ele a bola. Agora que é claro que Guardiola valoriza como ninguém a utilização de jogadores com características de médios nas posições mais ofensivas do seu modelo, assim como valoriza a criação de espaços ofensivos, os movimentos sem bola dos atacantes, a utilização da bola como um engodo, cabe-lhe talvez a missão de fazer de Thiago Alcântara um jogador mais decisivo na manobra ofensiva da equipa, especialmente naquilo que se passa no último terço do terreno, precisamente onde os espaços são mais curtos, a quantidade de vezes que se toca na bola é menor, e a técnica individual mais preponderante.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

A Sorte e os Problemas Digestivos

Sou o primeiro a reconhecer que a sorte desempenha um papel muitas vezes decisivo numa partida de futebol, e sou também o primeiro a dizer que aquilo que muitas vezes parece competência tem muito mais a ver com sorte do que com outra coisa. Não é raro uma equipa dominar um jogo, fazer tudo bem feito, mas não ser capaz de marcar, e sofrer um golo por um escorregão, ou por um ressalto impróprio. Em futebol, a sorte é muitas vezes negligenciada, e é muitas vezes o factor chave no desfecho de um jogo. Como dou tanta importância à sorte, sempre acreditei num modelo de jogo que procurasse depender o menos possível das incidências da mesma. Esse modelo, está claro, passa necessariamente por ter mais tempo a bola, por jogar o mais curto possível, com os jogadores próximos, por abdicar da vertigem de um jogo de transições constantes, pela paciência, pela calma, pela frieza e pelo raciocínio. Em suma, um modelo que, nos dias que correm, o Barcelona de Guardiola tão bem põe em prática. E é sobretudo por acreditar que um jogo jogado nestas coordenadas se defende o melhor possível desse factor a que se chama "sorte" que discordo inteiramente das observações de José Mourinho no final da partida do passado fim-de-semana, que explicou o resultado do clássico dizendo que fora a sorte a ditá-lo.

Os argumentos de Mourinho dizem sobretudo respeito aos golos falhados por Ronaldo, quando estava 1-0 a favor dos merengues e quando estava 2-1 a favor dos catalães, e ao segundo golo do Barcelona. Não sei muito bem se faz sentido falar em sorte e não em aselhice ou em falta de pontaria, no primeiro caso. De qualquer maneira, justificar a derrota baseando-se em dois golos falhados, quando o Barcelona teve o triplo das oportunidades para marcar, não me parece que faça muito sentido. Sim, Ronaldo poderia ter feito o 2-0. Mas se Ronaldo falhou um golo que, no entender de Mourinho, faria com que a partida, com 2 golos de vantagem para os da casa, se tornasse diferente, minutos antes Casillas tinha livrado o Real do golo do empate, após lance de Messi. Se Mourinho falasse do falhanço de Ronaldo, mas se lembrasse da defesa de Casillas, a partida não ficava assim tão diferente quanto isso. Se Ronaldo falhou o 2-1, numa cabeçada a responder a um cruzamento, que por si só não é um lance de execução tão fácil como isso, quantos lances não tinha já o Barcelona tido para ampliar a vantagem? E se pode Mourinho justificar a derrota recorrendo a falhanços ofensivos, é legítimo ignorar que chegou à vantagem após um erro não-forçado do guarda-redes adversário? É engraçado que se justifique a derrota deste modo quando o único golo que se conseguiu se deveu unicamente a um lance infeliz do adversário, um lance em que não só há um mau passe a propiciar a recuperação da bola numa zona perigosa, como dois ressaltos que favorecem claramente os merengues. Enfim, por aqui me parece plausível sugerir que as observações finais de Mourinho não foram proferidas num total bem-estar digestivo.

Mas falemos do lance do segundo golo do Barcelona, lance que, no entender de Mourinho, determinou o resultado e que foi fruto unicamente da sorte. Disse Mourinho que não houve talento, que não houve competência, que não houve erros defensivos, que a bola entrou apenas porque a sua equipa teve azar. Bom, em primeiro lugar, não é nada certo que Casillas fosse capaz de defender o remate de Xavi, caso a bola não desviasse no defesa do Real, enganando-o. Mas o importante do lance parece-me estar antes do desvio decisivo em Marcelo. Esquece-se Mourinho, e esquecem-se aqueles que concordam com ele, de que o lance nasce após a insistência, tão habitual nos catalães, de entrar no bloco adversário recorrendo a tabelas curtas, colocando os jogadores próximos uns dos outros; esquece-se de que o alívio de Coentrão, que leva a bola até Xavi, é forçado pela excelência do lance em si, e que, sem esse alívio, Fabregas ficaria isolado na cara de Casillas; esquece-se de que a bola sobra para uma zona onde o Barcelona, pela forma como joga, tem constantemente superioridade numérica; esquece-se de que o Barça, nessa jogada, envolve 7 jogadores no processo ofensivo (Abidal, Fabregas, Iniesta, Alexis, Daniel Alves, Messi e Xavi), com 5 jogadores para lá da linha da grande área e outros 2, Messi e Xavi, logo à entrada dela; esquece-se, no fundo, de que tudo o que precede o desvio decisivo é fruto da excelência do modelo catalão, e é, por conseguinte, fruto de talento, competência individual e qualidade colectiva. Sorte? Sim, mas antes de haver sorte há todo um conjunto de condições que propiciam o aparecimento dessa sorte. Não é por acaso que os jogadores catalães parecem ganhar mais ressaltos que os outros, deixando jogadores como Fábio Coentrão com os nervos em franja. Jogam mais juntos, posicionam-se melhor, e, por arrasto, protegem-se melhor da contingência da sorte.

Outra das coisas que explica o sucesso catalão, e que explica também por que razão falar de sorte, neste caso, não é legítimo, é o que fez Valdés ao longo do jogo. O seu erro, na sua primeira intervenção, foi decisivo para o Real ganhar vantagem, mas nem por isso se atemorizou. Continuou a arriscar, a procurar os colegas, mesmo quando o passe envolvia perigos, porque desse risco depende muito do jogo catalão. Guardiola foi claro: prefere que Valdés insista em fazer aquilo, mesmo havendo a possibilidade de isso originar erros decisivos. E prefere que se cometam erros assim porque não o fazer implica comprometer todo o jogo da equipa. O Barcelona, mesmo oferecendo um golo dessa forma, não mudou a sua identidade; manteve-se fiel aos seus princípios e procurou jogar como sempre joga, sabendo que só assim é superior. O golo de Xavi e o domínio catalão dependeram desse tipo de insistência muito mais do que dependeram da sorte. A sorte criou-a o Barça, ao jogar como joga. Na primeira parte, não foi capaz de ser tão dominador como é costume, e errou muitos passes (embora mais por intranquilidade do que por acção do adversário). Mas a segunda parte foi avassaladora. Sorte? Pelo que aconteceu na segunda parte, sorte teve o Real de o resultado não ser mais expressivo e de a humilhação em sua casa não ter sido maior.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Lições de Mestre (9)

A pergunta que lanço é: a quem pertence o golo, neste lance? O lance é o do primeiro golo do Bayern de Munique, este fim-de-semana, frente ao Werder Bremen. Contra-ataque, dois para dois, e Ribery a resolver. Terá sido assim? A meu ver, metade do golo, no mínimo, é da responsabilidade de Thomas Müller. E o extraordinário é que o é sem sequer ter tocado na bola, em todo o lance. Exagero meu? Não creio. Sem a movimentação de Müller, e aquela movimentação em particular, tenho sérias dúvidas de que o francês conseguisse solucionar o lance do mesmo modo. É por estas e por outras que os marcadores dos golos recebem excessivos louvores pela introdução da bola na baliza. A acção dos colegas (e nem sempre acções com bola) é determinante para que a jogada acabe no fundo das redes. Sempre! Para meu espanto, a movimentação de Müller foi uma das coisas que o comentador desportivo de serviço enalteceu, após o lance. Não sei se terá, de facto, percebido a influência da mesma no desfecho do lance, mas ter, pelo menos, reparado nela é já algo digno de nota.


szólj hozzá: Bayern Munich 1-0 Werder Breme

A jogada é rápida, e assim que Ribery recebe a bola no centro, Müller, que era o jogador mais adiantado e estava descaído para a direita, espera pelo colega, vem para o centro, e passa-lhe nas costas. Esta movimentação é quase absurda, para muitos. Mas é a coisa mais correcta a fazer, numa jogada deste género. Normalmente, faz-se quando dois jogadores estão lado a lado, e aquele que está sem bola passa por trás do que a conduz. Mas quando o jogador sem bola está mais avançado (e é o único nessa posição favorável), é raro esperar, recuar, e passar por trás do portador da bola. É também por isso que o que Müller fez é tão extraordinário. Depois, foi o que se viu. Ao passar por trás de Ribery, cria um momento de indefinição no defesa, que ficou sem saber se Ribery ia fazer o passe, ou se ia driblar para dentro. É esse momento de hesitação que quem conduz a bola deve tentar aproveitar, e foi isso que Ribery fez. Muitas vezes, acha-se que o portador da bola deve obrigatoriamente respeitar a movimentação de um colega nas costas, e dar-lhe a bola. Discordo disto. A movimentação nas costas não serve para dar uma solução de passe obrigatória; serve para deixar o defesa momentaneamente indeciso. Pode parecer que Ribery se desembaraçou facilmente do defesa que lhe saiu ao caminho, e que finalizou sem oposição porque não foi importunado devidamente. Mas tal não foi o caso. A movimentação de Müller criou um momento de hesitação, um momento em que o defesa teve de tentar adivinhar as intenções do francês, e isso foi-lhe fatal. Ficou imediatamente fora do lance, e não pôde importunar o portador da bola. Sem a movimentação de Müller, o defesa aguardaria a acção de Ribery, esperaria pela iniciativa do francês, e reagiria em conformidade. Talvez desse golo na mesma, mas é certo que não remataria tão à-vontade, nem gozaria da aparente liberdade para concluir o lance de que gozou. Metade do golo, se não mais, é do alemão, mas isso, por mais que se enalteça, jamais entrará nas contas de quem interpreta o rendimento de um jogador sem ter em conta a forma como interage com os companheiros.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

O Clássico e os Detalhes

Não tenho muito a dizer do clássico do passado fim-de-semana, a não ser que, embora emotivo, embora bem disputado, não foi propriamente bem jogado. Ambas as equipas arriscaram o menos possível, e o que acabámos por ter foi um jogo dividido, com muitas disputas de bola, muita luta, muito choque, e pouco futebol. O número de passes acertados foi certamente baixo, e as duas equipas preferiram sempre jogar no erro adversário. Ainda assim, nenhuma delas se entregou às evidências, procurando condicionar a posse adversária o melhor possível. Num jogo com estas características, diria eu, os detalhes são importantes, claro. E foi num detalhe, num lance de bola parada, que tudo se decidiu. Mas os detalhes não ocorrem apenas porque sim. O Benfica venceu num detalhe, mas foi também a equipa que mais fez para contar com a benesse dos "detalhes".

É evidente que a vitória podia ter sorrido a qualquer uma das equipas, e que, mesmo estando onze para onze, não houve uma superioridade significativa, em termos da quantidade de oportunidades de golo, dos encarnados. O resultado mais justo, mesmo sem contar com o que o Sporting fez após a expulsão de Cardozo, talvez até fosse o empate. Mas o jogo do Benfica, ainda que sem a qualidade desejável, procurou o mínimo de racionalidade. Fosse por a bola ter chegado mais vezes a Aimar do que a Matías Fernandez, fosse porque Witsel, Aimar e Gaitan se entenderam melhor entre eles, fosse porque os hábitos encarnados são diferentes, a verdade é que o futebol do Benfica foi menos precipitado. O Sporting nunca se interessou por construir fosse o que fosse. Apostou numa pressão alta, excessivamente condicionada pelas referências ao homem, a meu ver, e por conduzir os seus ataques após recuperações de bola, o mais rapidamente possível. Tudo o que vimos, do lado dos leões, foram solicitações dos homens mais adiantados, cruzamentos largos para a área, correrias de Capel, movimentos verticais de Elias e Schaars, e pouquíssima imaginação. É verdade que conseguiu criar algumas oportunidades nestas condições, mas também é verdade que não foi capaz, precisamente por causa deste tipo de decisões, de criá-las em condições minimamente favoráveis.

Como disse anteriormente, a diferença entre as equipas não se traduziu em número de oportunidades de golo. As melhores oportunidades que o Benfica criou foram ou de bola parada, ou após recuperações ou perdas do adversário (lances de Cardozo e de Rodrigo, por exemplo). Mas sentiu-se sempre que o Benfica chegava às imediações da área leonina em melhores condições, que trabalhava melhor os lances, que era mais criterioso, que se preocupava mais em fazer as coisas de modo racional. A sofreguidão leonina podia ter conduzido a outro resultado, até porque a racionalidade dos encarnados não foi assim tão concludente, mas a verdade é que essa mesma sofreguidão condicionou a equipa, e tem de ser introduzida na conversa sobre detalhes. O jogo decidiu-se num detalhe, sim, mas a própria estratégia de Domingos implicava a aceitação de um jogo decidido pela "lotaria" dos detalhes e deixava a equipa menos preparada para os mesmos.

Fala-se demasiado em detalhes, como se os detalhes merecessem uma análise à parte do resto do jogo. Mas a verdade é que, para que uma partida se decida num detalhe, algo tem de acontecer para que esses detalhes se possam verificar. A meu ver, o principal mérito do Benfica na partida foi precisamente o modo racional como tirou partido da sofreguidão do Sporting. Nem sempre o fez bem, obviamente, e tenho até dúvidas de que o tenha feito conscientemente. Mas fê-lo, nem que tenha sido apenas pelas características dos seus jogadores. Jogando com isso, puxou convenientemente o jogo para o tipo de decisões que mais lhe eram favoráveis, e fez pender os pratos da balança para o seu lado. O jogo foi, de facto, repartido em termos de oportunidades de golos, em termos de emoção junto às balizas, mas foi melhor controlado pelo Benfica. A decisão do mesmo através de um detalhe não pode por isso ser demasiado restrita. Decidiu-se num detalhe, sim. Mas um detalhe que o resto do jogo e o comportamento das duas equipas em campo potenciou.

P.S. Não se tem falado muito da ausência de Saviola do onze encarnado, e tem-se gabado o Benfica desta temporada mais do que me parece razoável. De facto, o melhor Benfica da época foi o dos primeiros jogos, altura em que o argentino ainda fazia parte das primeiras opções de Jorge Jesus. Como sempre disse aqui, a principal arma encarnada no primeiro ano de Jesus, aquilo que introduzia diversidade na equipa, eram as combinações curtas entre Aimar e Saviola, assim como a liberdade de que os dois gozavam no modelo de jogo. No segundo ano, Jesus procurou potenciar em excesso aquilo que a equipa já fazia bem, e deu menos liberdade à criatividade dos dois argentinos, evitando até, o mais possível, que os dois jogassem em simultâneo. Esta época acentuou apenas essa tendência. O Benfica deste ano ganhou alguma inteligência e capacidade de gestão de ritmos com os reforços (sobretudo Witsel, Bruno César e Nolito), mas perdeu ainda mais criatividade no último terço do terreno. Parece uma equipa menos dependente das correrias de outrora, menos interessada em jogar a uma velocidade altíssima, mais competente a gerir a bola em zonas baixas do terreno, mas é uma equipa menos forte a penetrar em blocos mais densos, menos imaginativa. Privar as pessoas daquilo de que Aimar e Saviola, juntos, são capazes, é hoje o maior crime de Jorge Jesus.