quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Ricardo Carvalho: o Patriotismo e o Respeitinho

Estava à espera de alguém com uma opinião tão lúcida como esta dissesse alguma coisa para falar do assunto, mas pelo vistos estava difícil. Vamos por partes. Há duas razões para toda a histeria em torno do caso, e duas causas para que todos, ou quase todos, apontem agora o dedo ao jogador português: a falta de respeito enquanto membro de uma equipa, e essa coisa esquisita a que chamam patriotismo. Sobre a falta de respeito, falarei no final, até porque é sobre isso que há mais a dizer, e é sobre isso que todas as análises não-hipócritas ao caso devem incidir. Mas, para já, quero falar em patriotismo. Eu percebo por que razão é que um bolo, para saber bem, precisa de levar açúcar. Também percebo que, para cantar, é preciso ter boa voz. O que eu não percebo, e dificilmente virei a perceber, é por que razão é que a qualidade de uma pessoa depende, entre outras coisas, evidentemente, dessa virtude a que chamam patriotismo. Não sou, nem nunca fui, que me lembre, patriota. E acho, como Oscar Wilde achava, que o patriotismo é a virtude dos infames. Por que razão absurda é que uma pessoa tem de nutrir sentimentos pela nação em que, por mera contingência, nasceu? Não percebo, nem nunca percebi, o que é o amor à pátria. Honestamente. Nutro sentimentos por um ou outro sítio onde morei, por uma cidade, vá, pelas pessoas com quem me cruzei, etc. Mas pela pátria? Eu nem sei o que a pátria é! Sei que tem uma bandeira, que tem um "território", que tem oito ou nove séculos de História. Tirando isso, pouco ou nada sei. Ser, por outro lado, uma entidade abstracta, também não ajuda. Como é que se tem amor por coisas abstractas? Até consigo perceber que alguém possa ter amor por um escaravelho, por uma mesa de cabeceira, sei lá. Acho difícil é ter amor pela filosofia de Platão, ou pelo conceito de Infinito. A meu ver, o patriotismo não é senão uma parvoíce religiosa que, como todas as parvoíces religiosas, serve meramente para domesticar os impulsos anti-gregários das pessoas. Como já devem ter percebido, não acho que faça qualquer sentido o argumento de que o que Ricardo Carvalho fez foi errado porque faltou ao respeito à pátria, precisamente porque a pátria não é nada. Como é que se falta ao respeito a uma coisa que não existe? Aliás, ganharia o meu respeito o jogador que, em início de carreira, renunciasse à selecção por achar hipócrita representar algo pelo qual não nutrisse qualquer tipo de sentimentos. Isto tudo para dizer que as pessoas que acham que o Ricardo Carvalho desrespeitou os portugueses porque desrespeitou a selecção se enganam ao achar que há algum tipo de relação entre a selecção e o país. Pois não há. No fundo, isto não passa de um argumento puritano, um argumento que consiste em achar que existe sacralidade no mundo, um argumento de gente católica que, não sabendo muito bem porquê, acha condenável o comportamento do jogador.

Católico é também o "respeitinho" com que dizem que todos se devem comportar. É outra das ideias que nunca me entrou na cabeça, mas admito que faça ligeiramente mais sentido que o argumento do patriotismo. Para muitos, Ricardo Carvalho é um subordinado e, como todo o subordinado, deve respeitar os superiores. Pois é esta relação hierárquica que não faz sentido nenhum, a meu ver. O respeito não é do tipo de sentimentos que se tem sem qualquer espécie de reciprocidade. Não acredito mesmo que haja uma única pessoa que respeite quem não a respeita. Por isso, não é o tipo de coisa que se possa exigir numa relação hierárquica. Numa relação desse tipo, pode exigir-se obediência, nunca respeito. E é isso que está errado nesta história toda. Para mim, não se tratou de um problema de falta de respeito, nem do jogador para com a equipa técnica, nem da equipa técnica para com o jogador. Tratou-se, sim, de um conflito acerca de um ideal de liderança. Ao chegar a Inglaterra, disse Mourinho que os jogadores ingleses, por oposição aos latinos, que precisam de acreditar na competência do líder, são obedientes por natureza e aceitam a liderança com base numa relação hierárquica estipulada a priori. Significa isto que há, pelo menos, dois tipos de liderança bem distintos: uma liderança de tipo militar, com superiores hierárquicos e subordinados de quem se exige obediência absoluta e cumprimento de ordens, e uma liderança menos conservadora, cooperante, assente na ideia de que os liderados têm um papel a desempenhar na liderança. Conta ainda Mourinho que, desde cedo, percebeu que o fosso que se criava entre treinador e jogadores não era benéfico, que ao contrário de Van Gaal, que não se relacionava com os jogadores senão enquanto general das tropas, ele ia na parte de trás do autocarro com os jogadores, confraternizava com eles, partilhava problemas, etc.

É fácil de perceber que estou a distinguir o tipo de liderança de Paulo Bento do de Mourinho, e que considero que Paulo Bento lidera muito mais à Van Gaal. Para Mourinho, nada excede ou está acima do grupo, e nada importa mais que o grupo. Paulo Bento, pelo contrário, lidera pela força, pela exigência incondicional, pela imposição de regras. Mesmo que as regras, como o próprio já o disse, não sejam impostas ditatorialmente, mas confiando e responsabilizando. Garantiu Paulo Bento que não entra nos quartos dos jogadores, para ver se estão deitados às horas certas, que não controla o que comem, etc. Mas isso não faz dele um líder menos autoritário. Não são as regras que dita, mas a posição de superioridade em que se coloca que fazem dele o tipo de líder que é. Quero com isto dizer que o tipo de liderança de Paulo Bento sempre me pareceu deste género: tem pulso forte, exige acima de tudo respeito e profissionalismo, é contra vedetismos, etc. Não que isto seja mau por si, mas há jogadores que têm feitios que não são compatíveis com isto. E, muito sinceramente, acho que este tipo de liderança deixou de ser a mais adequada. O jogador de futebol não é hoje o que era há duas ou três décadas, tem uma exposição mediática, um orgulho e uma vaidade que não tinha antes. E, sobretudo, tem opiniões próprias, está muito mais informado, percebe muito melhor intenções e competências técnicas. Perante este cenário, o único tipo de liderança que, a meu ver, faz sentido, nos dias que correm, é uma liderança que se exerça pela competência. Os jogadores precisam de sentir que aquele que conduz o leme tem competência para o fazer, que não faz as coisas porque lhe apetece, porque tem autoridade para as fazer, porque tem "feelings", mas que dá satisfações, justifica decisões, pede conselhos, que exige dos jogadores que compreendam as suas opções, os seus exercícios, as suas estratégias; os jogadores precisam, actualmente, de um treinador que mantenha com eles uma relação horizontal, que se coloque ao nível deles e assuma que os próprios jogadores, porque são eles que têm de interpretar no campo o que lhes vai ser pedido, podem ter opiniões melhores, podem sentir coisas que o façam mudar de estratégia, etc.

Paulo Bento não é nada disto. Acha, porque era assim que as coisas funcionavam há uns anos, porque foi assim que foi educado enquanto jogador, que um treinador não tem que dar satisfações, que um treinador está numa posição hierárquica superior, que a relação entre jogadores e treinador é uma relação vertical. Creio que esse tipo de liderança pode ter efeitos positivos sobretudo em jogadores humildes, em jogadores a quem lhes interesse ver um líder forte, um líder inabalável, um líder em quem possam sentir fé. Não creio, porém, que tenha o mesmo efeito em jogadores mais inteligentes, em jogadores menos conservadores, em jogadores com opiniões mais bem formadas e personalidades mais fortes, em jogadores que creiam mais na competência do que na fé. Neste tipo de jogadores, mais irreverentes por natureza, não creio que o tipo de liderança que Paulo Bento preconiza funcione bem. Não foi por acaso que se incompatibilizou com quem se incompatibilizou no passado, precisamente os jogadores do Sporting menos capazes de aceitar a sua liderança incondicional: Beto, não por irreverência, mas por ser o capitão e estar acostumado a certas regalias, mas essencialmente Carlos Martins e Vukcevic, jogadores mais irreverentes, com feitios especiais, que precisam de estímulos de outro tipo. Paulo Bento "premiou" frequentemente excelentes exibições de Vukcevic sentando-o no banco no jogo seguinte. Não querendo discutir opções técnicas (e terá sido por uma questão de opção técnica), isso só pode funcionar com alguém que aceita servilmente as ordens de um superior. Com jogadores de personalidades tão vincadas, é natural que não desse bom resultado. E é aqui que é importante chegar: nem sempre a opção técnica deve ser o primeiro critério de um treinador. Quando a opção técnica põe em causa a integridade do grupo e a confiança no líder, então talvez não seja a melhor opção técnica. Nesta situação concreta, Paulo Bento teria de "mostrar" ao jogador que tinha gostado do que ele tinha feito pondo-o a jogar. Compare-se com o exemplo de Benzema, no Real Madrid. Mourinho teve de recorrer ao francês na segunda metade da época passada, por força da lesão de Higuaín. O francês demorou a justificar a aposta, mas acabou por ser importante para a equipa, sobretudo na fase final da temporada. Este ano, voltou a começar bem a época. Mourinho não pode, simplesmente, tirá-lo sem mais nem menos da equipa, apesar de Higuaín, no passado, lhe ter dado garantias de um rendimento superior. Estaria a minar a confiança que o jogador deposita em si, e até a confiança do grupo.

Quando Paulo Bento fala em responsabilidade, esquece-se que a responsabilidade não é unilateral, que têm tantas resposabilidades os jogadores como os treinadores. O seu tipo de liderança é mais autoritário do que imagina precisamente porque "exige" responsabilidade incondicional, ou exige-a a troco de uma alegada "confiança" no atleta. O problema é este, é não perceber que os atletas se estão borrifando para a gratuidade da "confiança". Aquilo por que deveria trocar a responsabilidade deles não era pela liberdade que lhes concede, mas sim pela sua própria responsabilidade. Para exigir que os jogadores lhe devam responsabilidade, precisaria de lhes demonstrar que ele próprio é responsável. E isso faz-se com pequenas coisas, todas elas intimamente relacionadas com competências de treinador: reconhecendo de que modo pode estimular cada atleta, percebendo particularidades de feitios, tratando cada jogador de forma diferente, consoante a sua personalidade, conversando, justificando as suas decisões, pedindo opiniões, dando satisfações, aproximando-se dos jogadores, entrando na sua intimidade, falando acerca dos seus problemas, etc. Com Ricardo Carvalho, por exemplo, talvez tivesse bastado conversar, talvez tivesse bastado informá-lo previamente acerca das intenções da equipa técnica, talvez tivesse bastado explicar-lhe quais as razões técnicas pelas quais se achava melhor jogarem Pepe e Bruno Alves. Negligenciou-se a personalidade individual de um atleta e deu no que deu. E não foi por acaso que aconteceu com Ricardo Carvalho: tratava-se de um jogador inteligentíssimo, com uma personalidade muito forte, e certamente com opiniões muito claras acerca do jogo; tratava-se de um jogador habituadíssimo (cresceu assim) à liderança de Mourinho, que é o completo oposto da de Paulo Bento. Eu não advinharia isto, mas agora que aconteceu, parece-me absolutamente natural que tenha acontecido. Há um conflito evidente de gerações, e um conflito acerca de ideias de liderança. A falta de respeito de que Ricardo Carvalho se disse vítima não foi originada por não ser opção para o Chipre; foi por essa decisão ter sido tomada arbitrariamente, sem que se lhe dessem satisfações, e principalmente por perceber que o treinador acha, por princípio, que os jogadores têm de respeitar as suas decisões e não merecem saber as razões dessas decisões. Mais do que uma questão de falta de respeito (quer do treinador para com o jogador, quer do jogador para com o treinador) creio que este episódio foi resultado de uma incompatibilidade acerca de um ideal de liderança.

Muito resumidamente, usar o patriotismo e o respeitinho para argumentar que Ricardo Carvalho se comportou indevidamente é um equívoco. E a mim irrita-me que a opinião pública seja tão favorável, neste caso, mas também na grande maioria destes casos, ao treinador e não ao jogador. Sempre que há episódios de insubordinação, o réu é invariavelmente o jogador. Eu, que nunca fui treinador, mas que tenho uma experiência, enquanto jogador, suficientemente consolidada, fico normalmente do lado dos jogadores, neste tipo de casos. E isso não por me conseguir colocar no papel de uns e não de outros, mas porque percebo a frustração que existe em de ter de reconhecer liderança a alguém só porque sim. De um treinador um jogador inteligente espera competência, ideias, e muita responsabilidade. Se, em vez disso, percebe autoritarismo, caprichos e obsolescência, é natural e absolutamente legítimo que lhe perca o respeito. Este caso explica-se muito mais por estas coisas do que propriamente por um acto irreflectido e por uma atitude injustificável.

P.S. Para a opinião pública que, apressadamente, se colocou do lado de Paulo Bento, tenho uma pergunta que talvez incomode: e se, em vez de Ricardo Carvalho, a coisa tivesse sucedido com Cristiano Ronaldo? Eu sei que a probabilidade de o Ronaldo ir para o banco é menor, mas imaginem a possibilidade. Imagine-se que passava pela cabeça de Paulo Bento deixar Ronaldo no banco porque achava que era melhor opção ele não jogar, e imagine-se que Ronaldo, não gostando da ideia, até porque o treinador não a justificara, decidia abandonar o estágio. Muito sinceramente, gostava de ver se, nessa altura, vinham com patriotismos e respeitinhos. Aliás, actos de insubordinação de Ronaldo foram coisas que não faltaram na era de Queiroz. E não me lembro de alguém se colocar do lado de Queiroz nessa altura.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Abidal, Fabregas, a Vaidade e o 343 Losango de Guardiola

Queria começar por dizer que este texto é uma fusão de dois outros, um sobre a vaidade de um jogador de futebol, outro sobre o sistema táctico testado por Guardiola no primeiro jogo do campeonato. Tendo em comum o serem sobre o Barcelona, aproveito para falar das duas coisas ao mesmo tempo. Começando pela questão da vaidade, creio que haveria bastante a dizer nesse sentido. Vou tentar ser o mais resumido possível. Para muitos, sobretudo para aqueles que têm predilecção por ideais católicos, a ideia de um jogador vaidoso é pouco agradável. A vaidade é, para a grande maioria destas pessoas, sinónimo de egocentrismo, de falta de humildade e de incapacidade de sacrifício. Não concordo com isto, embora ache que há certos tipos de vaidade que signifiquem exactamente isso. Para mim, a vaidade é das coisas mais importantes num futebolista, para não dizer em qualquer pessoa que tenha ambições de qualquer tipo. Não obstante, há jogadores que usam a vaidade como um fim em si mesmo, e nestes, de facto, o atributo não é minimamente saudável: um caso flagrante será o de Mario Balotelli.

Não é destes, porém, que pretendo falar. Podia falar do caso de Diogo Rosado, jovem jogador emprestado pelo Sporting ao Feirense, que ainda há pouco mais de uma semana deu um recital na Luz, mas creio que, também nisto, é em Barcelona que os exemplos melhor frutificam. Compare-se o futebol de Eric Abidal há dois anos com o seu futebol actual. Tirando as parecenças morfológicas, eu diria imediatamente que se trata de outro jogador. A "lavagem cerebral" a que foi sujeito modificou-o radicalmente. E estamos a falar de um jogador na fase final da sua carreira profissional, um jogador que acumulou hábitos e vícios ao longo de todo o seu percurso. Abidal era um lateral certinho, forte do ponto de vista atlético e muito concentrado. Subia pela certa, arriscava pouco, e garantia à equipa solidez. Nos primeiros dois anos de Guardiola, não se modificou significativamente, e cheguei a sugerir que Maxwell era melhor opção que o francês, sobretudo pelo jogo interior que possibilitava. No final da segunda época e, sobretudo, no início da terceira, Maxwell "ganhou" o lugar de lateral esquerdo, e Abidal passou a ser mais utilizado como central do que como lateral. Penso que essas duas coisas terão influenciado decisivamente a mente de Abidal. Primeiro, terá percebido por que razão um jogador francamente mais débil do ponto de vista físico e menos sólido defensivamente lhe tinha roubado o lugar; depois, forçado a jogar numa posição que não era a sua, obrigado a pensar de uma maneira diferente, uma vez que o Barcelona força a saída pelos seus centrais e exige que estes entreguem sempre jogável, Abidal terá começado a modificar os seus hábitos e as suas crenças. Sensivelmente a meio da época passada, e ainda a central, Abidal revolucionou-se. E, de lá para cá, tem sido sempre a melhorar. Agora, joga com uma classe que não tinha, tanto a central como a lateral, deixou de esticar o jogo no extremo ou de devolver ao central; agora, fica com ela, vem para dentro, joga no meio, provoca o adversário que o vem pressionar, arrisca dentro da área, faz "cabritos" no meio de uma multidão. Num ano, motivado pelas circunstâncias que referi acima, Abidal compreendeu que lhe faltava, para poder servir esta equipa ao máximo, adquirir uma vaidade que nunca tivera. E hoje é, de longe, o melhor lateral esquerdo do plantel (para não ir mais longe), porque percebeu que este modelo de jogo exige de cada uma das suas unidades um certo envaidecimento.

Outro bom exemplo é o de Cesc Fabregas. Quem via Fabregas a jogar o ano passado, e sobretudo se se tivesse deliciado com o seu futebol no passado, percebia nele uma tristeza qualquer. A sua enorme qualidade continuava lá, mas havia qualquer coisa em Fabregas que se atrofiara. A meu ver, o espanhol foi melhorando progressivamente o seu futebol precisamente até à época transacta. É verdade que foi fustigado por algumas lesões, e que a época não lhe correu da melhor maneira, mas a sua evolução estagnou, a meu ver, por outras razões. É sabido que Fabregas ambicionava voltar à Catalunha no início da época passada, e que ter permanecido em Londres não o terá deixado satisfeito. Mas o que perdeu, penso, foi uma certa alegria em jogar. E perdeu-a porque percebeu que o seu futebol só poderia evoluir verdadeiramente no ambiente que o Barcelona de Guardiola propiciava. O que desapareceu, na época anterior, foi a sua vaidade de jogar, a vaidade de ser cada vez melhor. E desapareceu, em meu entender, porque percebia que, para se tornar cada vez melhor, para poder potenciar ao máximo as suas qualidades, teria de mudar de ares. Ainda que o Arsenal seja das equipas que mais privilegia o tipo de futebol de que gosta, era na Catalunha que iria encontrar dez almas-gémeas, dez colegas dentro de campo que compreendem tudo o que faz. Sem a vaidade. que só jogando num modelo como o do Barcelona, poderia voltar a ter, Fabregas acomodou-se, e, não fosse a mudança para Espanha esta época, acredito que pararia de evoluir. Na Catalunha, ainda é cedo para perceber até onde pode chegar. Mas é certo que está no local mais propício para continuar a sua afirmação enquanto jogador.

Sobre vaidade, é tudo. Ou quase tudo. Podia acrescentar, fazendo a ponte do tema anterior para o que se segue, que só com onze jogadores a quem foi incutido um certo tipo de vaidade era possível uma equipa jogar, com sucesso, num esquema táctico tão arrojado como o 343 losango. À demonstração de força do Real Madrid no sábado, com uma vitória categórica por 6-0 no terreno do Saragoça (e foram 6, mas podiam ter sido 10), uma demonstração de força que, apesar de tudo, carece de consolidação, uma vez que o adversário facilitou em demasia o trabalho dos merengues, respondeu o Barcelona com uma das maiores lições tácticas dos últimos 20 anos. Pela frente, não tinha um adversário desorganizado, que defendia apenas com cinco jogadores, que não formava uma linha defensiva, que não tinha preocupações com coberturas, que não juntava os sectores, como o teve o Real Madrid no dia anterior. Tinha, sim, o quarto classificado do ano passado, uma equipa muito bem organizada, com excelentes princípios de jogo, com os sectores bem juntos, colectivamente forte. E o que fez Guardiola? Aproveitou as ausências forçadas de alguns titulares do sector defensivo para testar o seu 343, com que jogará certamente muitas vezes esta época. Os resultados do teste, adiante-se, não poderiam ter sido melhores.

O sistema não é um 343 vulgar, ou seja, um 343 em linha, nem o 343 utilizado por Marcelo Bielsa na selecção chilena, que, embora em losango, utilizava alas. É um 343 losango à Cruyff, no Barcelona, e à Van Gaal, no Ajax, um sistema que caiu em desuso nos últimos 15 anos, principalmente, a meu ver, pelos excessivos riscos de uma linha de 3 defesas, e pela natural evolução táctica do jogo. Hoje em dia, com a evolução que o jogo teve, só uma equipa muito competente a pressionar pode dar-se ao luxo de jogar neste esquema sem correr sistematicamente o risco de ver os avançados adversários enfrentar os seus 3 defesas. Por essa razão, desapareceram praticamente os sistemas tácticos com 3 defesas. Mas, se há equipa em que isso parece poder ser uma realidade, essa equipa é o Barcelona. Mas quais são as vantagens deste sistema táctico, em relação ao habitual 433, ou 442 losango? A meu ver, são vários. Não falando da saída de bola, aquando do pontapé de baliza, que passa a ter pontos de referência diferentes, creio que é a nível de pressing e a nível de formação de apoios em zonas mais ofensivas que se encontram as principais vantagens. Neste esquema, a pressão é mais alta, feita com mais homens na zona da bola, e é mais eficaz a constranger toda e qualquer circulação baixa. Contra equipas que preferem sair a jogar, que gostam de trabalhar o jogo, como o Villareal, penso que os resultados só podem ser positivos, como foram. Falta testar contra equipas que joguem mais directo, contra adversários que não tenham a preocupação de construir desde trás. Mas mesmo aí, penso, a profundidade não fica mais desguarnecida por se jogar com uma linha defensiva de três jogadores e não com uma linha de quatro, desde que a equipa recupere toda em bloco. Além disso, e porque as coisas estão ligadas, ao jogar assim o Barcelona "arrasta" sistematicamente mais adversários para zonas recuadas, tornando menos eficaz a resposta destes quando recuperam a bola. No que diz respeito aos apoios, em situação ofensiva (e aqui parece-me, de facto, a grande virtude do sistema), o Barcelona passa a jogar não só com um jogador a entrar nos espaços entre linhas, como até aqui, mas com dois. Formando um losango no meio-campo, ganha uma estrutura de apoios de maior densidade, e torna ainda mais fácil o futebol de toque curto da equipa, em organização ofensiva, e a tendência para fazer da bola um engodo. Contra o Villareal, foi assustador o modo como a equipa encostou literalmente o adversário à sua área, mesmo tendo este o desígnio de não fazer descer a linha defensiva abaixo de um determinado ponto. O Barcelona só jogou 60 minutos (a partir daí descansou com bola), acumulou uns impressionantes 71% de posse de bola contra a melhor equipa espanhola, a seguir aos catalães, a trabalhar a bola, venceu por 5-0, mas, mais do que isso, empurrou ostensivamente uma das equipas mais bem preparadas em termos tácticos para onde bem lhe apeteceu. O domínio foi, por isso mesmo, avassalador. Mais até do que esta equipa já nos tinha habituado. É uma demonstração inequívoca de força, sim, mas, mais do que isso, é mais uma lição táctica, mais uns quantos preconceitos quebrados, mais uma manifestação de como há ainda caminhos por desbravar, em termos conceptuais, no que diz respeito ao jogo.