quarta-feira, 24 de abril de 2013

Desnorte

O futebol é um jogo peculiar. Uma das coisas que o torna tão distinto de outros jogos (da grande maioria, aliás), é ser um jogo em que, tipicamente, o número de golos, para cada um dos lados, é reduzido. Esse simples facto faz com que seja mais frequente que uma equipa teoricamente mais fraca consiga derrotar uma equipa teoricamente mais forte. Ou melhor, o facto de o futebol ser peculiar dessa maneira faz com que o resultado de um jogo dependa mais dos detalhes do que outros jogos, o que, por sua vez, faz com que, para que equipas teoricamente menos fortes consigam vencer ocasionalmente alguns jogos, por vezes basta serem felizes num ou noutro detalhe. Outro aspecto desta peculiaridade tem a ver com o modo como as equipas reagem emocionalmente a resultados adversos. Ao contrário de jogos em que há muitos golos ou a pontuação é alta, estar em desvantagem tem um peso emocional muito maior, em futebol. Isto porque, dependendo o futebol tanto dos detalhes, e sabendo a equipa que se encontra em desvantagem que, para recuperar, dispõe de uma quantidade reduzida de oportunidades, sentir o tempo a passar é francamente menos confortável do que noutras modalidades.

É muito frequente, a este respeito, que comentadores desportivos e analistas profissionais cheguem à conclusão, após o término de uma partida, que um resultado desnivelado espelha a supremacia do vencedor sobre o vencido, evidenciada desde o primeiro ao último minuto, negligenciando os diferentes momentos anímicos das equipas, e a forma como a marcha do marcador influenciou esse próprio resultado final. Não é raro, por exemplo, que um golo a uma determinada altura da partida modifique por inteiro o que estava a ser o jogo, e que, portanto, tudo aquilo que acontece depois desse golo mereça a consideração dos efeitos que esse golo produziu. Muitas equipas estão a jogar bem até ao momento em que fazem um golo e depois, relaxando, acabam por permitir ao adversário que melhore o seu futebol. E, ao contrário, acontece o mesmo. Que análise merece um jogo em que uma equipa domina os primeiros 80 minutos, mas que, por ficar reduzida a dez jogadores nessa altura, num lance em que o guarda-redes comete uma falta dentro da área sobre o avançado adversário, acaba por sofrer 3 golos nos últimos 10 minutos, perdendo sem apelo nem agravo? Perde bem? Merece o adversário todos os louros por 10 minutos caprichosos? Evidentemente que não. Em futebol, como disse um dia Jorge Jesus, é possível a uma treinador de uma equipa que acaba de ser goleada afirmar, sem estar a faltar à verdade, que a sua equipa foi superior.

Vem isto a propósito, claro está, da goleada imposta pelo Bayern de Munique ao Barcelona. Muitas coisas podem ser ditas sobre o jogo: sobre a apatia incompreensível de Tito Vilanova, sobre a força bávara, sobre a condição física de Messi, sobre o terreno de jogo, sobre a arbitragem, sobre o fim do projecto catalão, etc.. Pessoalmente, tenho algumas opiniões sobre cada uma dessas coisas, mas não é disso que quero falar. Prefiro falar sobre desnorte emocional e sobre resultados que não espelham o que se passa em campo. Já noutras ocasiões abordei, muito ao de leve, este assunto. Num dos casos, defendi que a única análise séria de uma partida que tinha tido, claramente, duas fases distintas, separadas por um momento crucial que modificou a forma como as equipas passaram a encarar os minutos que faltavam, era aquela que se focasse na primeira dessas fases. A grande maioria das pessoas achou que não podia separar fases, o que me faz, confesso, alguma confusão. O futebol, como disse anteriormente, é um jogo peculiar; o resultado final define-se, muitas vezes, num ou noutro lance; é natural, pois, que cada um dos lances decisivos tenha um impacto emocional enorme nos atletas. Sim, em futebol, nenhuma análise que negligencie isto, e nenhuma análise que não contemple a possibilidade de fases radicalmente distintas do jogo, é uma análise séria.

Para muitos, hoje, na Baviera, o Barcelona foi atropelado pelo Bayern. Para mim, que não modifico as minhas leituras constantemente, esteja o resultado favorável a uma equipa ou a outra, a única coisa que foi atropelada hoje foi o bom senso. Até ao minuto 50, altura em que o Bayern fez o segundo golo, que ocasiões de golo houvera realmente? O que fizera o Bayern até então, para além de defender? De que modo incomodara o Barcelona, em contra-ataque, ou no que quer que fosse? Até ao segundo golo, a melhor equipa em campo foi o Barcelona. Teve dificuldades no último terço do terreno, é certo, não conseguindo tantas combinações como habitualmente, mas estava a fazer o seu jogo e estava a conseguir precaver-se das investidas do adversário. Fortuitamente, até porque a regularidade dos dois primeiros golos (já para não falar da do terceiro, que é escandalosa) é bastante duvidosa, viu-se a perder por dois golos e começou a perder a concentração. Ainda assim, os minutos que se seguiram não foram necessariamente maus. É verdade que a equipa passou a jogar menos pacientemente e que passou a esticar, ocasionalmente, o jogo, e também é verdade que passou a não ser capaz de controlar as investidas germânicas, sucedendo-se alguns lances de relativo perigo, coisa que até então não tinha acontecido. Mas o momento decisivo foi o do terceiro golo, numa altura em que o Barça crescia e acabara de ter duas oportunidades claríssimas de golo, ambas pelo jovem Marc Bartra. Com o terceiro golo dos alemães, o Barça perdeu finalmente o norte e, a partir daí, sim, o Bayern foi claramente superior. Aconteceu isto ao minuto 73. Significa isto que, dos 90 minutos que uma partida tem, as descrições megalómanas que por aí fora se têm repetido apenas contemplam 17 minutos, mais ou menos 20% de toda a partida. A imagem que fica é a última, e as pessoas têm facilidade em descrever 90 minutos de acordo com o que viram nos últimos minutos da partida. São mentirosos, ou simplesmente estúpidos, mas é assim que são, para infelicidade dos que o não são.

Os últimos minutos da partida, sim, foram penosos para o Barça. Foram-no porque a equipa perdeu toda a concentração, porque Tito Vilanova não soube segurar emocionalmente a equipa, porque não mexeu tacticamente com o jogo, nem sequer trocou unidades, à excepção da entrada de David Villa no final, porque os jogadores sentiram que a eliminatória começava a escapar-lhes definitivamente das mãos. Mas, tirando esses minutos de desnorte e, aceite-se, aquilo que se passou depois do 2-0, foi o Barcelona assim tão inferior ao Bayern? Em quê? Não o foi, como não o tinha sido frente ao Milan, quando perdeu por 2-0 em San Siro. Simplesmente, os resultados não espelham o que se passa em campo. Muitas vezes, são fruto de um conjunto de factores. Hoje, o Bayern goleou o Barcelona por várias razões, e nenhuma delas implica que tenha sido, em termos gerais, superior ao seu adversário. Goleou o Barcelona por 4-0 porque marcou nas duas primeiras ocasiões que teve, e em lances, no mínimo, duvidosos; goleou porque, quando o jogo já estava mais equilibrado, teve a felicidade de fazer o terceiro, logo após 2 oportunidades claríssimas do Barcelona, e, uma vez mais, após beneficiar de um erro crasso da equipa de arbitragem. E fez o quarto e deu a imagem de superioridade que deu, nos últimos minutos, porque tudo o que se passou antes condicionou emocionalmente a equipa catalã. Tão simples quanto isto. Hoje, o Barcelona foi superior até ao momento em que se desnorteou, precisamente por essa superioridade não estar a ser traduzida numericamente. Não invalida isto que o Bayern não tenha feito um bom jogo, e que não seja a melhor equipa europeia a seguir aos catalães, e que não pudesse ganhar na mesma uma partida que, afinal, não dominou, mas que soube disputar. Não me falem é em superioridade, porque isso é, além de falso, absurdo.

P.S. Sim, o desnorte e a falta de motivação, no final da partida, era tal que era Xavi quem andava a pressionar lá à frente; sim, David Villa evidenciou algum mau ambiente no balneário catalão, ao entrar contrariado; sim, Messi não deveria ter jogado só porque é Messi; sim, Valdez facilitou muito, para não variar; sim, Alexis é horrível e já há muito que o clube deveria ter tentado encaixar dinheiro com ele; sim, Tito Vilanova não tem ideias nenhumas; tudo isto foi mau, e pede reflexão. Mas, num jogo desta importância, ainda por cima quando não tem sido opção senão em jogos em que é preciso fazer descansar titulares, e perante um resultado final tão adverso, que Marc Bartra tenha feito a exibição personalizada que fez só pode ser bom sinal. É também por isto que o projecto catalão não acaba aqui. Aliás, numa época em que aconteceram tantas coisas imprevistas, em que há uma mudança de treinador, em que o novo treinador atravessa uma doença complicada, em que a cada eliminatória europeia e a cada clássico caseiro se falava do fim da hegemonia, muito conseguiu esta equipa. Nem sempre se pode ganhar, e este ano reuniram-se muitas condições para que tal não fosse possível, inclusivamente a lesão de Messi nesta fase da época. Que sobreviva a isto tudo o aparecimento de mais um talento para o futuro, um talento que, havendo coragem, já há muito que deveria ter assumido um lugar no eixo da defesa, parece-me bom. Oxalá não seja feito bode expiatório, e oxalá se perceba que a pequena revolução que é preciso executar no plantel (e na equipa técnica, já agora) passa por dispensar alguns jogadores que não têm condições para continuar (Adriano, Mascherano, Alexis) e permitir a dois ou três jovens (Bartra, Sergi Robert e Cuenca) uma utilização mais sistemática.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Cumprir Estratégias

Não é uma coisa recente (nem são poucos o que assim pensam) avaliar qual das duas equipas esteve melhor num determinado desafio consoante aquilo a que se vulgarizou chamar a "estratégia" com que entram na partida. Não é raro, por exemplo, que o treinador de uma equipa pequena que entra para defender durante 90 minutos e tentar um ou dois contra-ataques, e que perde por 1-0, no único lance em que o adversário conseguiu criar, afirme que a sua equipa merecia outro resultado. Tal afirmação faz sentido se se considerar que o jogo, à excepção desse lance, correu exactamente de acordo com a estratégia delineada. O que não faz sentido é que o mérito de uma vitória dependa de qualquer estratégia, seja ela qual for. O Barcelona de Guardiola, pela capacidade inigualável de empurrar os adversários para a sua defesa, fomentou, como nenhuma outra equipa, estratégias adversárias desse tipo, e não foram poucas as vezes que se defendeu que os adversários do Barcelona, mesmo concedendo 6 ou 7 situações de golo, e não fazendo senão 1 ou 2 contra-ataques no jogo inteiro, mereciam vencer. O erro, obviamente, está em acreditar que uma equipa merece vencer se conseguir cumprir a estratégia com a qual se comprometera no início da partida, qualquer que seja essa estratégia.

Num jogo em que uma equipa assume as despesas do jogo, procurando construir desde a sua defesa, em futebol apoiado, e a outra joga em reacção, procurando forçar o erro do adversário para depois, com poucos passes, chegar à área adversária, é natural que pareça que a segunda consegue cumprir a sua estratégia e a primeira não. Isto porque a estratégia da segunda é de muito mais fácil cumprimento. Para que ela se cumpra, basta que consiga pressionar bem, roubar duas ou três bolas, fazer dois ou três passes, e atacar sempre com o adversário desposicionado. Se a equipa que assume o jogo encontra alguns problemas em materializar o seu futebol em oportunidades de golo, se consegue manobrar a bola nos dois primeiros terços do terreno, mas encontra algumas dificuldades (naturais, pois o espaço é francamente menor) no último terço do terreno, é fácil para quem está de fora conjecturar que essa equipa, ao contrário da equipa adversária, não está a ser capaz de cumprir a estratégia com que partiu para o jogo. Num jogo com estas características, é quase consensual dizer-se que está a jogar melhor quem está a defender, porque o adversário não está a conseguir penetrar na sua defesa, e porque até já se conseguiram ligar uns quantos contra-ataques. E, no entanto, raramente se fala do que a equipa que ataca está a fazer bem, apesar das dificuldades que está a encontrar no último terço do terreno.

Vem isto a propósito do derby desta noite e dos disparates dos responsáveis do Sporting, embora possa e deva ter uma aplicação mais geral, até porque a partida de hoje não foi desta falácia o melhor exemplo. Em primeiro lugar, o Benfica não fez um jogo extraordinário (o que não é nada de novo) e errou muitos passes, sobretudo antes do primeiro golo. Não está, por isso, em causa, a desinspiração dos encarnados. Mas acreditar que o Sporting, que jogou (como as equipas de Jesualdo, diga-se) em reacção, merecia vencer parece-me absurdo. A estratégia de Jesualdo foi cumprida na perfeição, é verdade, mas para que o Sporting tivesse jogado melhor do que o Benfica era preciso que cumprimentos de estratégias fossem coisas mais eficazes do que as estratégias em si. O Benfica trabalhou mais o seu jogo e, mesmo não tendo jogado bem, procurou construir as suas situações de golo o melhor que sabe. Mesmo estando a falhar naquilo a que se propunha, estava a fazer o que tinha a fazer. E nas duas vezes, em todo o jogo, que a coisa correu bem, ou seja, nas duas jogadas, em todo o desafio, com cabeça, tronco e membros, fez dois golos. Poder-se-á dizer que duas jogadas em 90 minutos é pouco, ainda assim. Com certeza que o é. Mas são duas jogadas a mais do que aquilo que fez o adversário. E o Sporting até teve lances de perigo. O que não conseguiu foi construir uma jogada decente. A estratégia que tão bem cumprida foi, aliás, inviabilizava à partida que a equipa conseguisse construir jogadas decentes. Jogadas decentes, de resto, são coisas que estratégias como a que Jesualdo apresentou, e que tão bem cumpridinha foi, não permitem.

Não está em causa a seriedade com que o Sporting jogou, nem algumas das coisas que alguns dos seus jogadores conseguiram fazer, em termos estritamente individuais. Está em causa, sim, a estratégia colectiva e a relação entre essa estratégia e o resultado final. Colectivamente, o Sporting fez pouquíssimo para que merecesse mais. Defendeu-se razoavelmente bem, soube pressionar em algumas zonas, mas, ofensivamente, a estratégia era simplesmente apanhar o Benfica desposicionado, após a perda da bola. Tudo o que fez fê-lo, por isso, em esforço, envolvendo poucas unidades e sempre de acordo com o espaço que o Benfica concedeu. Não criou uma única ocasião de golo em condições favoráveis, e pouco mais fez do que adiar o golo adversário. Jogar futebol é mais do que definir e cumprir estratégias. E não basta a uma equipa, para merecer a vitória, que defina e cumpra uma estratégia, qualquer que seja essa estratégia. Se, pura e simplesmente, essa estratégia não for grande coisa, que importa que a consiga cumprir? Por outro lado, mesmo sem cumprir estratégias, mesmo que pareça que não esteja a ser capaz de realizar tudo aquilo a que se propõe, mesmo que, aparentemente, o seu futebol pareça inconsequente e o adversário pareça estar a levar a melhor, de acordo com a contra-estratégia que definiu, uma equipa pode estar a jogar bem melhor do que o seu adversário. Ter cumprido ou não ter cumprido estratégias é, pois, um critério falacioso para definir quem jogou melhor, e alegar que a equipa cumpriu exactamente o que tinha em mente é pouco relevante para aferir a qualidade do seu jogo.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Freitaslobices

A primeira pergunta que se impõe é: o que é que é preciso para que Luís Freitas Lobo esteja calado? Tempos houve em que o poeta - desculpem - o comentador desportivo Luís Freitas Lobo dizia coisas interessantes e que valiam a pena ser escutadas; hoje em dia só diz disparates. Se não está a falar da alma da bola, ou a fazer a mesma metáfora pela décima sétima vez, está a dizer banalidades acerca do jogo. O seu discurso, que começou por ser diferente, por ser mais informado do que o da maioria, é hoje em dia insuportável. Não aprendeu nada, não evoluiu rigorosamente nada. Transmite banalidades e embrulha-as num palavreado tão imbecil quanto escusado. Para o plantel do PSG, então, tem uma autêntica antologia de poemas. Pastore é - não me perguntem porquê - uma pantera cor-de-rosa. De Beckham fala mais do penteado, da idade, da qualidade de passe, e do pretenso bom posicionamento do que da qualidade em termos de decisão que oferece à equipa, que é quase tudo o que importa. Sobre Lucas, sempre que este toca na bola, diz que "joga muito". Já o sabíamos, mas o senhor insiste em dizer-nos, e sempre com as mesmas palavras. Matuidi - aprendi ontem - é um alicate em forma de jogador de futebol. E sobre o jogo, senhor Freitas Lobo, tem alguma coisa a dizer?

Não há muito tempo, falou-se na possibilidade de Luís Freitas Lobo, assim como Tomaz Morais, vir a colaborar no Sporting. Num clube que agoniza, que melhor maneira de reerguê-lo do que contratar uma pessoa que percebe de râguebi e outra que se distingue por fazer metáforas enquanto comenta jogos de futebol? Ou a direcção do Sporting pensa que o problema do clube tem a ver com falta de habilidade para a placagem e incapacidade para brincar com palavras, ou então tal possibilidade não faz sentido nenhum. Cultivou-se a ideia de que Freitas Lobo, por conhecer muitos jogadores desconhecidos da grande maioria do público, devia ter competências para colaborar na prospecção de jovens craques, e seria para essas funções que seria eventualmente contratado. Mas conhecer muitos jogadores resulta de ver muito futebol, não de saber alguma coisa de futebol. As pessoas que não sabem como é que funciona o departamento de recrutamento de um clube - a grande maioria das pessoas - acha que Freitas Lobo até pode dar um bom prospector para o Sporting. Isto é estúpido de muitas maneiras, mas vou referir apenas algumas. Em primeiro lugar, se há coisa em que o Sporting ainda continua a ser muito forte é na prospecção e no recrutamento, e é bom que a nova direcção, que deve vir com ideias reformistas, tenha isto em mente, se não quiser destruir a única coisa que pode ainda fazer regressar o clube ao convívio dos grandes do futebol português, ou seja, a sua formação. Em segundo lugar, pressupõe esta ideia uma outra, muito disseminada, de que o senhor Aurélio Pereira e mais dois ou três colaboradores são os responsáveis por todos os talentos descobertos pelo Sporting. Um segredinho: para um clube se manter tão forte no recrutamento, durante tanto tempo, é preciso bem mais do que um par de olhos e jeitinho para o negócio. Por fim, a ideia de que identificar grandes quantidades de jogadores se relaciona de algum modo com capacidade para distinguir potenciais craques é absurda. Para que Freitas Lobo me fizesse acreditar que, de alguma maneira, tem competência para tal, teria primeiro de saber fazer distinções finas entre atletas, de saber caracterizar-lhes correctamente as virtudes e, sobretudo, de não pôr todos e mais alguns dentro do mesmo saco. Para Freitas Lobo, tudo o que tem duas pernas, tem menos de 20 anos e joga futebol é potencialmente um craque. Assim também a minha avô. Identificar potencial é muito mais do que catalogar tudo e mais alguma coisa. Para se perceber que Freitas Lobo não tem a mínima vocação para isto, embora se lhe reconheça que vê muito futebol e conhece muitos jogadores, bastava que se fosse ver o que disse de jovens jogadores há cinco anos. Lembram-se do que dizia acerca de Pelé? Eu lembro-me.

De resto, nos últimos jogos que vi do PSG comentados por Freitas Lobo, o amor por Matuidi é quase pornográfico. No PSG, é certo, podia apaixonar-se quase por qualquer jogador. Que se tenha apaixonado por Matuidi diz muito do que é Freitas Lobo. Matuidi é um jogador banalíssimo, um médio como há às centenas até nas distritais, um médio cuja melhor característica é a disponibilidade física. Para muitos, é preciso um Matuidi para suportar tantas estrelas. Para esses, o choque ontem foi Ancelotti ter apresentado tantos craques e apenas um Matuidi. Para mim, que reconheço a Ancelotti muitas qualidades, o único pecado foi ter jogado com Matuidi e não com Verratti. O PSG foi talvez a equipa que vi que melhor jogou, em cinco anos, contra este Barcelona. Ajudou, é certo, o facto de o Barcelona não ter jogado bem e de não ter forçado muito. Mas o PSG fez o que poucas equipas tentam fazer: tentou ficar com a bola, quando a conquistava. Para isso foi fundamental a qualidade técnica e intelectual do onze escolhido. Questionou-se muito a utilização de David Beckham, mas este fez um jogo exemplar, a coordenar os ritmos da equipa. Como de resto o fez Pastore. Lucas, pela facilidade de drible e pela forma como segura e conserva a bola, também foi precioso. O PSG conseguiu dividir o jogo com o Barça não porque Matuidi esteve em todo o lado, como Freitas Lobo não se cansou de dizer, mas porque soube trocar e preservar a bola quando a tinha. Fez um jogo exemplar porque juntou vários jogadores fortíssimos a conservar a bola e/ou a decidir, no momento do passe. Matuidi, nesse aspecto, era o parente pobre daquela equipa. Servia para morder calcanhares, como se essa fosse uma grande virtude, mas não servia para mais nada. Freitas Lobo insistiu, do princípio ao fim, que Ancelotti devia ter no meio-campo outro jogador como Matuidi, que devia trocar Beckham por Chantôme ou Verratti. Na base desta insistência está a ideia de que competia aos homens do meio-campo serem pressionantes. E é isso que não percebo. Pressionar verticalmente, pelo meio, este Barcelona é das coisas mais estúpidas que se pode fazer. Dois Matuidis a pressionar resultariam inevitavelmente em espaços entre os dois Matuidis e os defesas, principalmente porque este PSG se apresentou num 442 clássico. Felizmente, Ancelotti não é parvo, e Beckham ocupou sempre os espaços deixados por Matuidi, quando este saía para ir transpirar para cima de um dos médios catalães. Freitas Lobo não percebe, ao fim destes anos todos, que o futebol não é um jogo de individualidades, e que trabalhadores não servem para compensar craques, nem criativos servem para compensar trabalhadores. Cada acção individual só faz sentido colectivamente. O que Freitas Lobo valoriza nas acções de Matuidi é aquilo que elas têm de individual, não os efeitos colectivos que produzem. Gosta de Matuidi porque Matuidi se destaca dos outros por correr mais, bater mais, e estar mais em jogo. Não percebe que cada acção dele tem milhares de consequências que não vê, e que muitas das coisas boas que um jogador faz só são boas porque os colegas fazem muitas outras coisas que beneficiam a acção do colega. Matuidi não contribuiu em nada para a organização defensiva dos franceses, que foi boa (bem melhor, por exemplo, que a do Milan, que tanta gente gabou), e muito menos contribuiu para o que de bom a equipa fez com bola. Por tudo isto, Freitas Lobo é pouco mais do que o representante supremo do chico-esperto que se acha moderníssimo, mas que afinal continua a acreditar que ser responsável e eficaz em termos defensivos é estar constantemente em cima do adversário, pressionar agressivamente e batalhar por cada bola como se fosse a última.