terça-feira, 2 de outubro de 2012

Kyle Walker e o que Não é um Lateral

A primeira vez que vi Kyle Walker a jogar, pela selecção sub-21 inglesa, pensei imediatamente: "este tipo, em poucos anos, vai ser adorado por uma grande falange de mentecaptos, e vai ser considerado dos melhores laterais da Europa". É claro que Kyle Walker, na minha opinião, não é nada disto. Mas não me enganei. Em pouco tempo, começavam a babar-se por ele aqui, e hoje ninguém lhe discute a qualidade, como por exemplo aqui. A razão pela qual adivinhei a reputação futura de Kyle Walker é a mesma razão pela qual ninguém lhe discute o valor: a grande maioria das pessoas acha que o lateral é uma coisa que facilmente se percebia que Kyle Walker viria a ser. A saber, o jovem inglês é um prodígio em termos de força, é rápido, é muitíssimo agressivo, compenetrado, e tem técnica suficiente para fazer o corredor sem problemas. Além disso, tem uma mentalidade competitiva invejável. Este conjunto de atributos, num lateral, é hoje em dia inquestionável. Noutras posições do terreno, é mais difícil adivinhar quando um jogador vai ser apreciado ou não, mas um lateral com estas características não podia dar errado. E é este o problema. Como estas pessoas acham que um lateral tem um conjunto de tarefas para desempenhar, aquele que tiver este tipo de atributos será sempre preferido a outro tipo de jogador. Sabem que, aconteça o que acontecer, seja contra quem for, Kyle Walker vai conseguir sempre fazer o corredor com a mesma pujança, entregar-se-á sempre de maneira total ao jogo, e perderá poucos duelos individuais. Esquecem-se do principal, de que um jogador de futebol, seja lateral ou não, não é nada disto.

Para a grande maioria das pessoas, um lateral, nos dias que correm, tem de ser alguém que, para além de competente defensivamente, tem de ser capaz de fazer o corredor todo. De acordo com isto, avaliam a qualidade de um lateral recorrendo apenas a duas análises: se é forte nos duelos defensivos, e se é capaz de subir, combinar, e cruzar para área. Sem grandes rodeios, nada disto é importante num lateral, a meu ver. As competências defensivas vão muito para além da competência nos duelos de um para um, e as competências ofensivas são muito mais do que simples movimentos verticais e qualidade técnica no cruzamento. Um lateral que não se saiba relacionar com os seus colegas da defesa, que não saiba o que é uma cobertura, que não saiba fazer contenção, que pareça uma barata-tonta atrás do atacante que lhe aparecer por perto, que não saiba tomar uma boa decisão sem bola, pode ser um prodígio em termos de força, pode nunca ser ultrapassado em velocidade, pode ganhar muitas bolas divididas, mas não será um bom lateral em termos defensivos. Do mesmo modo, um lateral que não saiba jogar para dentro, que não saiba dar um apoio no momento certo, que não seja capaz de escolher a melhor opção de passe, que não tenha critério no momento de tomar uma decisão, pode ter um pulmão invejável, pode fazer o corredor milhares de vezes por jogo, e pode ser tecnicamente exemplar a cruzar, que não será um bom lateral em termos ofensivos. Sem cérebro, confesso que não consigo perceber como é que alguém possa ser jogador de futebol. Mas a grande maioria das pessoas continua a negligenciar os atributos intelectuais de um jogador, e é por isso que Kyle Walker tem o estatuto que tem, estatuto esse que há-de até tornar-se maior.


Para exemplificar o que digo, podia trazer lances de Cédric Soares. Felizmente, o próprio Kyle Walker poupa-me a ter de usar o jovem leão, cujo estatuto adquirido é em tudo idêntico ao caso do inglês, embora seja um jogador com características diferentes. Apesar de o inglês ter acumulado variadíssimas asneiras, só consegui encontrar o lance do segundo golo do Manchester, na vitória suadíssima dos pupilos de Villas-Boas em Old Trafford no passado sábado, e é dele apenas que falarei. Ainda a bola vem no meio-campo e já se percebe, embora a imagem não abra, que o posicionamento do lateral direito é já defeituoso: parando-se o filme no sétimo segundo, vêem-se 3 defesas em linha, do lado da bola, e um lateral direito que não está onde devia, que nem sequer aparece, que está demasiado aberto, porventura colado ao extremo que lá anda. Mas é quando Van Persie vem para a esquerda, com a bola controlada, e Kagawa flecte para o meio, que o comportamento inacreditável do lateral do Tottenham mais deve ser destacado. Kagawa invade precisamente o espaço entre Walker e o central do seu lado, aproveitando o erro inicial, e o lateral vai atrás dele, até ficar vários metros atrás da linha defensiva. No momento em que Van Persie dribla o seu opositor, Walker perde a fixação pelo japonês, mas mantém o seu posicionamento atrás da linha defensiva, e longe do central. Como se não bastasse, e apesar de o holandês conduzir agora a bola para a zona central, Kyle Walker abre na direita, cavando um fosso ainda maior entre o central e ele próprio. Kagawa não precisa agora sequer de se desmarcar para receber um passe pelo meio e ficar isolado frente ao guarda-redes dos londrinos: um golo fácil, resultante de um erro primário. Ao longo deste jogo, e ao longo de outros jogos, Kyle Walker cometeu vários erros básicos deste tipo. Está preocupado com as coisas erradas, não tem capacidade para perceber e ler o jogo, momento a momento, não é capaz de decidir bem, e não percebe sequer o que faz em campo, a maioria das vezes. A incapacidade para reajustar o seu posicionamento consoante as coordenadas do ataque adversário mudam é assustadora. Mas como tem pulmão, é forte fisicamente, e até dá uns toques, fizeram-no acreditar que podia ser jogador. E pode, de facto. Isto porque no futebol há mediocridade suficiente para que alguém assim possa chegar a ser um jogador de topo.