sábado, 27 de novembro de 2010

Certezas (20)

É a primeira vez que um guarda-redes é elogiado nesta rubrica, mas a qualidade deste jovem é tanta que dificilmente lhe poderia escapar. Os melhores clubes do mundo andam já interessados no seu concurso e não é crível que aguente muito mais tempo no seu clube. De qualquer modo, porque a concorrência não podia ser maior, o seu lugar na selecção do seu país continuará a ser difícil de assegurar. À parte disso, o seu futuro é quase uma certeza absoluta. O que mais impressiona, quando o vemos na sua baliza, é a frieza e a segurança, como se fizesse aquilo há já muitos anos. Aliando a esta capacidade mental uma técnica de guarda-redes prodigiosa e a facilidade com que rapidamente se impôs na ribalta do futebol europeu, diria que estamos na presença de um dos cinco melhores guarda-redes dos próximos dez anos. Tanto quanto me pude aperceber, não tem propriamente pontos fracos. Ainda que não tenha uma envergadura invejável, é seguro a sair dos postes. Nas saídas aos pés dos avançados, faz uso da sua agilidade e, não sendo muito agressivo e intimidador, é no entanto tecnicamente evoluído e sabe esperar pelo momento certo quer para fazer a mancha, quer para cair. Naquilo em que é, todavia, indiscutivelmente muito forte é na meia distância. A sua elasticidade e a perfeição técnica com que voa para qualquer um dos lados é ímpar. Não me lembro, talvez à excepção de Preud'homme, de outro guarda-redes tão elegante e com um gesto técnico tão perfeito quanto ele. De resto, é capaz de segurar bolas muito difíceis, bolas que outros, pela dificuldade do voo, preferem invariavelmente defender com a palma da mão para canto. Esta, a meu ver, é a imagem de marca dos melhores do mundo na baliza: ser capaz de voar para um dos lados e, ainda assim, agarrar a bola. Preud'homme era mestre nisso; este miúdo também parece sê-lo. Não duvido, por tudo isto, que David De Gea terá, muito brevemente, o mundo a seus pés...

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Um Jogo Estúpido

Por que é que o futebol é um jogo estúpido, de gente estúpida, para gente estúpida, disputado por gente estúpida e arbitrado por gente estúpida? Porque as leis do jogo, que são estúpidas, e os árbitros que as interpretam, que são ainda mais estúpidos, permitem que, no mesmo jogo, um jogador veja dois amarelos por um puxão e por um empurrão, acabando expulso, enquanto outro jogador, inocentado pela estupidez intrínseca do jogo, envia um adversário para o hospital com uma rotura de ligamentos no tornozelo, após entrada por trás para travar um contra-ataque, e é admoestado com um amarelo, com o qual acaba o desafio, satisfeito com a sorte.

P.S. Às vezes, gostava de acreditar que o futebol era um jogo para seres racionais.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Defender o um para um

Muito se discutiram, após o clássico que opôs o Porto ao Benfica, as opções de Jorge Jesus e o rotundo falhanço estratégico da sua abordagem ao jogo. Corroboro grande parte dessas críticas, sobretudo a não-utilização de Saviola, a opção pelo 442 clássico, e o medo em relação a Hulk que levou à troca de Coentrão por David Luiz. Nenhuma crítica, porém, foi mais referida que a utilização de David Luiz à esquerda. Há, nessa aposta, dois erros primários: o primeiro - e também o mais óbvio - tem a ver com a opção por contrariar as qualidades individuais de um adversário utilizando as qualidades individuais de um atleta. Jesus falhou, neste particular, não só porque alterou uma estrutura enraízada, mas também porque não compreendeu que a melhor estratégia para contrariar qualidades individuais é necessariamente colectiva. Muito mais fácil do que procurar remediar um problema individual através da promoção de um duelo individual teria sido promover a criação de superioridade numérica, em momento defensivo, sempre que a bola chegasse aos flancos, por exemplo. Mas esse foi, como referi, apenas um de dois erros. O segundo, e que poucos certamente saberiam identificar, porque corroídos pela opinião pública convencionada, tem a ver com a escolha de David Luiz para essa função. Jorge Jesus escolheu-o porque o considera o mais capaz a defender duelos individuais. Poucos disputariam esta consideração. Afinal, para estas pessoas, a característica essencial para que um defesa seja forte no um para um é a velocidade. Afirmo frontalmente que estão equivocados.

David Luiz é rápido, é agressivo e, graças a estas duas características, tem uma boa capacidade de antecipação. Nada disto faz com que seja bom a defender o um para um. O objectivo deste texto é precisamente desmontar esta ideia, assim como argumentar que há coisas bem mais importantes que a velocidade para travar um adversário especialmente forte no um para um. David Luiz tem estas características muito desenvolvidas e é principalmente por elas que é tão apreciado. Acontece, contudo, também porque se deixa deslumbrar por elas, que tem outras características pouquíssimo desenvolvidas. Não evoluiu rigorosamente nada em termos de leitura dos lances e continua com uma péssima abordagem a jogadas que exigem que raciocine rapidamente, jogadas em que a defesa não está organizada, por exemplo. Já para não falar das faltas de concentração e das displicências com bola. O que pretendo demonstrar é que defender eficazmente o um para um não é necessariamente distinto de tudo o resto e que, portanto, é muito mais importante o defesa ter capacidade de concentração e boas abordagens ao lance do que propriamente rapidez para reagir à iniciativa do adversário.

Para muitos, defender o um para um é uma questão de capacidade de resposta àquilo que o adversário propuser. Isto é, se o adversário investe pela direita, o defesa tem de ter rins e pernas para o perseguir pela direita; se investe pela esquerda, o mesmo. Parece-me isto um modo fácil e antiquado de olhar para a coisa. É óbvio, porém, que quem pense assim tenha a pressa de afirmar que o melhor a defender o um para um é aquele que reage melhor à investida do adversário, vá ele por onde for. Discordo amplamente disto. Creio até que defender o um para um é uma técnica, idêntica a outras técnicas relacionadas com o jogo, e que, ainda hoje, é muitíssimo negligenciada. Deixando de fora, para já, as especificidades do adversário particular que se pretende defender, coisa que pertence ao plano estratégico e que deve ser interiorizado apenas mediante o confronto particular com esse jogador e que não tem necessariamente a ver com a técnica geral de defesa do um para um que aqui quero referir, acho que há, para quem defende, muitas outras coisas a fazer para além de esperar pela iniciativa do adversário e reagir o melhor que souber. É disso que quero falar em seguida.

A primeira coisa que quero contestar é que a iniciativa seja necessariamente do avançado que tem a bola. Não quero, com isto, afirmar que o defesa deve tentar a intercepção antes de o avançado optar por um dos lados. É possível tomar a iniciativa de outro modo. Como? Sugerindo um lado, por exemplo. Por definição, o defesa coloca-se entre o avançado com bola e a baliza, exactamente a meio, permitindo a quem tem a bola escapar por um de dois lados. Este posicionamento convencional garante iguais possibilidades ao defesa de chegar ao lance quer o avançado vá pela esquerda, quer vá pela direita. Mas tem a desvantagem de permitir a escolha a quem tem a bola. Optando por este tipo de posicionamento, a iniciativa é sempre de quem tem a bola. Basta que esse avançado seja especialmente rápido e forte para que o defesa esteja constantemente em desvantagem. Do meu ponto de vista, sobretudo contra avançados que não são imprevisíveis, isto é, que vão optar pelo lance individual, este posicionamento convencional não é o mais eficaz. Muito mais eficaz é retirar poder de escolha ao avançado e, assim, ter a iniciativa do lance. Por exemplo, no caso de David Luiz e Hulk, defender mais o lado direito, convidando a que a iniciativa individual se desenrolasse para a linha e para o pé direito do avançado portista, teria sido uma estratégia individual muito mais produtiva. Condicionava-se um jogador pouco capaz de responder a obstáculos imprevistos a optar sempre pelo mesmo caminho e a fazer uso do seu pior pé mais vezes; propiciavam-se situações de cruzamento com o pé direito de Hulk cuja resposta poderia até ser trabalhada em treino durante a semana; e, sobretudo, nunca se promoveria a possibilidade de Hulk ultrapassar individualmente o seu opositor directo, criando situações de superioridade numérica. Outra possibilidade seria a contrária, optar por fechar mais a linha e convidando Hulk a fintar para dentro. Fazendo depois uso de um bom jogo posicional de toda a equipa e juntando os jogadores no momento defensivo, obrigar-se-ia Hulk a voltar recorrentemente para trás ou a forçar lances individuais pelo meio em franca inferioridade numérica. A opção foi outra e passou por ter David Luiz sempre em cima de Hulk, à espera da iniciativa do avançado portista e sem qualquer plano previamente concebido. Como Hulk é fortíssimo quando lhe oferecessem a iniciativa e quando o adversário não se acautela colectivamente para responder às suas investidas, deu no que deu.

Como devem saber, os que lêem este blogue, tal como não sou especial admirador de David Luiz, não sou especial admirador de Hulk. Tem duas ou três características extraordinárias e que podem fazer a diferença ocasionalmente, mas tem atributos subdesenvolvidos e que considero essenciais no futebol moderno. Quero com isto dizer que Hulk faz ou pode fazer a diferença quando se reúnem circunstâncias favoráveis à exploração das suas características, mas terá sempre dificuldades quando tiver de ser ele a procurar essas circunstâncias. Ou seja, a preponderância de Hulk dependerá sempre mais do contexto criado do que dele próprio. Villas-Boas tem tido o mérito de ser capaz de forçar o aparecimento dessas circunstâncias e, assim, de tornar produtivas ao máximo as capacidades do brasileiro, mas a criação dessas circunstâncias depende sempre em parte da proposta do adversário. O erro de Jesus, mais do que ter medo de Hulk, foi ter medo das coisas erradas. Receou o momento em que Hulk tinha a bola quando deveria era ter receado o momento anterior e o momento posterior a esse; receou Hulk quando deveria ter receado era o Porto enquanto colectivo capaz de criar as circunstâncias favoráveis às capacidades de Hulk; receou o drible de Hulk quando deveria era ter receado a explosão dele. É que Hulk com bola não é especialmente perigoso; Hulk com espaço sim. E foi precisamente o espaço que Jesus não acautelou. O medo de Jesus, portanto, para além de todas as consequências que daí resultaram, radicou ainda no equívoco magistral de ser infundando precisamente por ser um medo acerca das coisas erradas.

Regressando agora à generalidade do tema e utilizando Hulk como paradigma do jogador difícil de parar no um para um, por ser rápido e forte, devo dizer que o melhor modo de defender o um para um contra estes jogadores é precisamente como sugeri acima, tomando a iniciativa. Tomar a iniciativa, deste ponto de vista, implica modificar o padrão a que o adversário está habituado e, com isso, condicioná-lo e limitá-lo. Tratando-se de um jogador previsível - residindo a sua previsibilidade no facto de apostar invariavelmente no um para um - esta opção nunca constitui uma desvantagem e o próprio defesa saberá sempre, por antecipação, aquilo que o avançado vai fazer, porque o preparou para isso limitando-lhe as escolhas. Ao invés de se ficar a meio metro do adversário, deve-se ficar ligeiramente mais afastado e deve-se dar ostensivamente um dos lados, concedendo-lhe uma aparente liberdade que tem o condão de o condicionar. Há ainda truques defensivos eficazes, como 1) forjar um mau posicionamento aparente, convidando o adversário a atacar a zona aparentemente desprotegida, mas estando preparado para atacar essa zona e fazendo-o assim que o adversário dá o toque na bola, momento em que a capacidade de reacção do avançado é nula; 2) dar espaço e fingir esperar a iniciativa do adversário, atacando depois repentinamente a bola antes de essa iniciativa ser tomada; 3) simular um pequeno reajustamento de posição (como simular um pequeno passo para a frente ou para os lados, ou ameaçar atacar a bola), o que obriga o adversário a reajustar-se também ou a reagir mais decisivamente, atacando depois o lance no momento em que a reacção do adversário à simulação se efectiva. Todos estes truques servem para que o defesa tenha parte da iniciativa do lance do seu lado. São modos de tornar mais eficaz o seu desempenho em duelos individuais, modos de tornar menos relevantes possíveis diferenças de atributos físicos e modos de tornar menos determinantes jogadores que só o podem ser se tiverem a seu favor certas circunstâncias, como o sejam a possibilidade de tomar a iniciativa em duelos individuais e o espaço posterior propiciado por uma abordagem defensiva, individual e colectiva, deficiente.

Esta forma de defender o um para um é extraordinariamente negligenciada e constitui uma técnica pouquíssimo trabalhada, onde quer que seja. Há poucos jogadores que recorram a este tipo de coisas e maior parte deles fá-lo-ão de forma inconsciente, talvez como protecção involuntária contra a ausência de certos atributos físicos. Um defesa rápido, e que tenha orgulho na sua rapidez, nunca recorre a isto. Encara os adversários sempre de igual modo, concedendo-lhe a iniciativa para depois recuperar em velocidade e dar a impressão de um grande feito. Veja-se a diferença entre Ricardo Carvalho e Pepe, agora que jogam juntos, na forma como abordam este tipo de lances. Pepe aproxima-se muitíssimo do portador da bola e espera a sua iniciativa para reagir, fazendo uso da sua velocidade; Ricardo Carvalho espera, dá mais espaço, força um dos lados. E nunca é ultrapassado. Veja-se ainda Piqué ou Daniel Carriço. Raramente enfrentam este tipo de lances de frente; estão de perfil, concedendo um dos lados, diminuindo as possibilidades do adversário que tem a bola. Isto é cultura e inteligência. E é a forma mais eficaz de defender o um para um. David Luiz é só um defesa veloz. Não é especialmente inteligente nem tem cultura suficiente que o torne excepcional a defender o um para um. Contra um adversário poderoso em termos de velocidade, é facilmente ridicularizado. César Peixoto, o tal que agora os mentecaptos têm por passatempo assobiar, tem metade da velocidade de David Luiz e fez muito, mas muito melhor, no jogo da Supertaça. Passou essencialmente por reconhecer as suas limitações em termos atléticos e por procurar resolver os problemas de outro modo. O Benfica, Jorge Jesus e David Luiz quiseram vencer o Porto e Hulk nos termos destes, tentando contrariar velocidade com velocidade. Um duelista experiente saberia de antemão que teria mais hipóteses de vencer um pistoleiro excepcional se, tendo a possibilidade de escolher, escolhesse um duelo de espadas. É que raramente se vence um perito com as armas em que essa pessoa é perita.

P.S. Há quem diga que Hulk, por ser especialmente forte, nunca deve receber de frente e, portanto, que a marcação individual tem de ser sempre apertada e movida a todo o terreno. Isto é absurdo. Foi precisamente por isto que Villas-Boas venceu o jogo. Antecipou que Jesus iria mover uma perseguição individual a Hulk e que o jogador que o marcasse, fosse qual fosse, iria abandonar a sua zona para ir atrás do brasileiro. Com isto em mente, terá treinado durante a semana movimentos semelhantes ao do terceiro golo, com Hulk a baixar, levando David Luiz e criando um buraco, e a bola a ser metida nesse espaço, no qual entraria Belluschi. Aliás, o segundo golo não é muito diferente. As preocupações excessivas com Hulk fizeram com que a linha defensiva do Benfica nunca estivesse bem formada, com David Luiz sempre demasiado subido. Falou-se muito em Sidnei e na sua pretensa falta de rotina, mais foi o mais esclarecido de toda a linha defensiva. O terceiro golo é o exemplo perfeito disto e é inteiramente da responsabilidade de David Luiz (ou de quem lhe ordenou que se comportasse assim), que vai atrás de Hulk até ao meio-campo e propicia o espaço aproveitado por Belluschi. Sidnei chega em esforço e não pode cometer falta, sob pena de conceder penalty. Aliás, foi mais um jogo, entre tantos, penoso para David Luiz, com responsabilidades directas nos três primeiros golos.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

A avalanche

Há quem fale em crise, quem diga que o Barcelona, este ano, está mais fraco, e patetices parecidas. Acredito que as pessoas que o dizem não têm visto os jogos e que, olhando para os resultados, e comparando-os com os de épocas anteriores e, sobretudo, com os do Real Madrid, achem que há qualquer coisa de inferior. Não há. Aliás, exceptuando o desafio perdido em casa frente ao Hércules, o Barcelona tem sido sempre superior e nunca teve uma vitória em causa. Em vários jogos, e sobretudo porque Guardiola começou a época a gerir esforços, a equipa tem preferido ser menos massacrante e mais cautelosa e ponderada. Mas, quando é preciso passar 90 minutos a jogar à rabia com os adversários, o Barcelona continua impecável. Na semana passada, a goleada imposta ao Sevilha revela isso mesmo. Mais do que a goleada, a forma quase humilhante como os sevilhanos foram vergados é elucidativa. As pessoas esquecem-se que o Real Madrid só ainda jogou contra dois dos primeiros dez classificados da Liga Espanhola, Mallorca e Espanyol. Esquecem-se igualmente que, dos 9 jogos do Barcelona no campeonato, 5 foram contra equipas de entre esses mesmos dez. Esquecem-se, por fim, que o Barcelona já jogou e venceu, em casa, o Valência e o Sevilha, e que já passou incólume nas deslocações dificílimas ao terreno do Athletic de Bilbao e do Atlético de Madrid. Uma revisão do calendário talvez não fizesse mal aos papagaios que pensam que podem descobrir os mistérios do universo olhando simplesmente para resultados.



Fica o vídeo dos primeiros 4 minutos do jogo frente ao Sevilha. As imagens deverão ser esclarecedoras. Se não forem, diga-se ao menos que foram 4 minutos de atropelamento, com o Barcelona a jogar, a trocar a bola cada vez mais perto da baliza adversária, a progredir no terreno, a criar oportunidades de golo, e o Sevilha a correr atrás da bola. A avalanche foi de tal modo intensa que, quando o golo surge, a sensação de inevitabilidade era óbvia. Quando houver outra equipa com a capacidade para fazer 4 minutos tão demolidores como estes, ainda por cima jogando quase a passo, avisem.

P.S. A forma como Sergio Busquets antecipa o que os adversários vão fazer e a forma como se coloca em campo e como reage ao modo como os adversários atacam é genial. É o exemplo máximo de inteligência em momento defensivo. Tem a perfeita noção de quando deve atacar o lance e de como o deve fazer. Com pezinhos de lã, está no sítio certo à hora certa para impedir a transição, para fechar espaços, para roubar bolas. É de longe, mas de muito muito longe, o melhor médio defensivo da actualidade.