terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Proscritos

A valorização de um jogador, assim como o seu reconhecimento, resulta da forma como é compreendido e enquadrado no conjunto onde está inserido, tal como o seu recrutamento está associado à capacidade de interpretação que orienta o seu treinador. Mas o que acontece quando os jogadores apresentam características que valorizam as dinâmicas colectivas, ao invés dos desempenhos individuais? Como é que um jogador, que vale essencialmente pelos atributos intelectuais, valorizando o conjunto em detrimento do protagonismo individual, consegue o reconhecimento necessário para que lhe seja permitida a hipótese de demonstrar todo o seu valor? Na maioria das vezes, não o é, e se se vê reconhecido é pelas razões erradas, vendo as características e qualidades conceptuais subjugadas pelas sensoriais, ou seja, aquelas que mais facilmente são apreendidas pelos que abordam o jogo de forma mais superficial, não se dando ao trabalho de enquadrar e tentar compreender a razão que antecedeu a acção.

A evolução no mundo do futebol é, acima de tudo, sensorial. Vive de um sem número de pomposas inovações cheias de mecanismos de medição, analíticos, privilegiando estes sobre a interpretação das acções, das dinâmicas que as equipas impõem. As análises tornam-se frívolas, desprovidas da profundidade necessária para apreender todas as virtudes dos jogadores, e das suas equipas, que não cabem nos números. A questão é, no entanto, muito mais grave do que aparentemente seria de supor, visto que não é possível entender, de forma clara, se estamos perante uma causa, ou uma consequência de uma abordagem inferior ao jogo. Não será esta a primeira vez que reconhecemos ao Futebol um potencial enorme enquanto jogo. Todavia, dificilmente esse potencial será alcançado se continuarmos a olhar para o mesmo em função do que cada jogador pode fazer, pela capacidade que tem em desequilibrar individualmente, em detrimento da capacidade que o mesmo possui em se relacionar com os restante elementos, em conseguir que a equipa onde está seja capaz de, ela própria, através de uma predominante dinâmica colectiva, superiorizar-se e desequilibrar o conjunto adversário. Para uma equipa alcançar este tipo de comportamentos, pede-se aos seus jogadores que se focalizem na sua capacidade de se articular com os restantes elementos, tornando-se com isto em algo diferente do que apenas mais um elemento a somar aos outros todos. Todos dizem: “o conjunto é mais do que a soma das partes”. Até que ponto acreditamos nisto, ou como realmente abordamos este cliché, é a “chave” para podermos dar o salto para o nível que se segue. Mas, para isto acontecer, é necessária uma abordagem que se centre mais na interpretação e análise através da observação do jogo.

Um jogador não deve sucumbir aos vícios que os seus atributos físicos e técnicos reclamam; deve, ao invés, servir-se deles para relacionar o seu intelecto com o todo a que pertencem, preocupando-se sobretudo em fortalecer a dinâmica colectiva do conjunto que o acolhe. Significa isto que se deve diluir totalmente a individualidade de cada jogador na equipa? A resposta assenta num aparente paradoxo. O facto de cada jogador se manifestar em cada jogada em função da equipa, procurando em cada momento buscar a melhor solução colectiva (que a dado momento poderá passar pelo drible, em função da disposição dos restantes colegas, assim como relação risco/recompensa que a situação oferece, etc.), não impede que o mesmo empreste o seu cunho pessoal em cada movimento efectuado, mesmo que actue sobre uma filosofia e estilo comungados pelos restantes companheiros, pois cada jogador é único, assim como a sua capacidade de se relacionar com o mundo. No entanto, para isto acontecer, é necessário que o treinador não sucumba à tentação de procurar que os seus elementos resolvam os problemas colectivos através de iniciativas que dependam pura e simplesmente das dinâmicas individuais. Daí a necessidade de referir, mais uma vez, que os jogadores não possuem funções específicas, para além da óbvia: jogar Futebol.

Assim, enquanto esta realidade não passar de uma miragem, iremos assistir a um aproveitamento negligente de um número considerável de jogadores que, por possuírem uma perspectiva muito mais colectiva e solidária do jogo, abordando-o como um desporto que vale sobretudo pela capacidade colectiva dos seus elementos, são sistematicamente marginalizados. Existiram no Sporting pelo menos três casos de jogadores que sucumbiram a esta incapacidade de o jogo evoluir no sentido acima referido: Romagnoli, Farnerud, e Pereirinha. Os dois primeiros dificilmente conseguirão confirmar todo o potencial que possuem. Quanto ao jovem internacional sub-21 português, não será fácil a confirmação de todo o seu valor, por tudo o que foi dito. No entanto, o facto de ser mais forte na sua individualidade do que os outros dois, principalmente em acções de 1x1, poderá ainda abrir-lhe as portas para um estatuto que o seu intelecto já há muito reclama. De lamentar será se Pereirinha, para se poder impor no futebol que o rodeia, se vir forçado a desvirtuar o seu jogo, assente na capacidade de decisão, em função de um estilo mais vistoso.

Um artista, um escritor, pintor, escultor, etc., não se vê aprisionado pela diferença do seu trabalho da mesma forma que um futebolista. Mesmo que a sociedade contemporânea seja falha da capacidade necessária para valorizar o trabalho que o artista desenvolve, a obra deste pode ser apreciada postumamente. No caso de um futebolista, o cárcere que lhe é imposto pela mentalidade sub-desenvolvida que o rodeia impede-o de deixar obra, e contribuir para o desenvolvimento do jogo. Temos agora a hipótese de dar esse salto, graças a Guardiola. Cabe aos restantes fazer a parte deles: podem começar por ser bons alunos.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Requiem

"Lacrimosa dia de lágrimas, aquele em que o homem pecador renasce de sua cinza para ser julgado. Tende, pois, piedade dele, Deus. Ó piíssimo Jesus, ó Senhor, concedei- lhe o repouso eterno. Amén."

Mozart, Requiem


Este texto, pretendendo prestar o devido respeito ao clube finado, e compadecendo-se com a perda leonina, deve ser lido enquanto se escuta a sempiterna Lacrimosa de Mozart, a secção final do seu Requiem a que a epígrafe faz referência.

No dia em que o futebol português voltou a ter 3 clubes capazes de competir pelo título, Alvalade chorou a perda do super-herói que, nos últimos 8 anos, fazendo valer-se dos seus inimitáveis super-poderes, impediu que o Sporting descesse de divisão. Sem Liedson, como poderá o Sporting agora sobreviver? Duvido sinceramente que seja capaz de aguentar mais do que duas épocas na primeira divisão. Aliás, compreendo bem o choro da família sportinguista. É mais ou menos o que aconteceu aos escravos quando se aboliu a escravatura: após anos e anos de opressão, verem-se livres para fazerem o que bem entenderem, não dependerem de senhores prepotentes e não trabalharem ao ritmo da vergasta e do chicote, não é fácil. A reacção dos escravos, perante a mudança, por melhor que fosse essa mudança, foi certamente chorar. Estavam tão habituados à pobre condição de escravos que achavam a escravatura mais confortável que a liberdade.

O que é certo é que, em uníssono, Alvalade compôs um requiem de lágrimas perante a despedida do seu mais valioso futebolista dos últimos anos. Ainda por cima, após um jogo em que o super-herói marcou dois golos. E que golos! Um deles, à boca da baliza, graças a um faro de golo apuradíssimo, que o fez perceber com clareza que o guarda-redes contrário iria defender para a frente, após um lance vulgaríssimo do vulgaríssimo companheiro de ataque, Hélder Postiga. O outro, melhor ainda, seguido de um ressalto vindo de um médio da Naval, deixando-o inadvertidamente isolado. É disto que Alvalade mais terá saudades, desta forma extraordinária de aproveitar tudo o que é acidental, ressaltos, maus alívios, erros dos adversários, disparates alheios. Não poderia terminar melhor a sua passagem pelo clube do que com dois golos que, afinal, tão bem o definem. Aliás, não poderia terminar melhor do que com esses dois golos e com os outros dois que flagrantemente falhou, um dos quais o define igualmente muito bem, a desaproveitar um passe fraquinho de Postiga, falhando isolado perante o guarda-redes adversário.

Por todas as alegrias que o seu super-herói lhes deu nos últimos anos - e foram vários os troféus que ajudou a conquistar - mas sobretudo pelo magnífico desempenho deste último jogo - pois têm mais facilidade os seres humanos em lembrar as últimas coisas e os lances capitais de um jogo - chorou então todo o estádio. Chorou também todo o estádio por saber interiormente que a perda daquele que invariavelmente resolvia todos os problemas da equipa significava o fim do próprio clube. A mim, que tenho um coração de manteiga, a missa fúnebre que foi a cena final comoveu-me muitíssimo, e senti vontade de assistir àquilo tudo com o Requiem de Mozart como música de fundo, para condizer. Desejo acabar, porém, com a nota de optimismo a que subtilmente aludi no início do texto: apesar da tragédia e da choradeira, apesar de não restar agora qualquer réstia de esperança na salvação, apesar da partida do super-herói e do enterro público do defunto, há que ver que, para o futebol o português, é capaz de ser positivo passar a haver mais um candidato ao título.