sábado, 18 de fevereiro de 2012

O Académico

Fez ontem notícia que o professor Jorge Castelo, académico reputado e comentador televisivo nas horas vagas, iria integrar a equipa técnica de Ricardo Sá Pinto. Os que acham que os académicos estão subvalorizados incharam imediatamente, apoiaram a decisão, e desejaram boa-sorte ao senhor professor. Os que acham que aos académicos faltam competências de campo torceram o nariz. Como é sabido, acho que a competência de um treinador, ou de quem quer que trabalhe numa equipa técnica, tem pouco a ver com ser ou não ser académico. Há coisas que a academia dá que a experiência de campo jamais pode dar; mas há coisas que a experiência de campo dá que nenhuma academia é capaz de simular. Nem o supra-sumo dos académicos, por si só, é garantidamente competente, nem aquele que absorveu melhores experiências de campo o pode ser. Dirão os mais incautos que alguém que reúna competências académicas e científicas e experiência de campo está mais apto do que quem só reúna uma delas. Subjaz a quem assim pensa o mesmo erro: o de presumir que a competência de alguém depende necessariamente de qualquer coisa tão circunstancial e breve como a experiência passada directamente relacionada com o jogo. A competência depende de muita coisa, e de muita coisa da qual não se estaria certamente à espera que pudesse depender. Sim, dificilmente poderá haver um bom treinador que não tenha competências futebolísticas relevantes, que não tenha aprendido o que normalmente se aprende em cursos de treinador, mas isso é uma infimíssima parte daquilo que produz um bom treinador. A sua competência depende de conhecimentos futebolísticos, mas depende também de inteligência em bruto, de bom senso, de conhecimento prático, de capacidade de reflexão, de espírito crítico, etc. Pode ser que isto surpreenda alguém, mas estou em crer que, bem mais importante do que conhecer as coisas que o professor Jorge Castelo divulga nos seus livros, é mais determinante à formação da personalidade de um bom treinador conhecer toda a obra de Dickens, ou a teoria da evolução de Darwin. O que causa estranheza nesta afirmação é que parece que Dickens e Darwin, embora francamente mais geniais do que o professor Jorge Castelo, parecem ter menos a ver com futebol do que o professor. Evidentemente, a aplicação ao futebol do que se pode aprender com os primeiros não é clara, ao passo que a aplicação ao futebol dos ensinamentos do professor Jorge Castelo, bons ou maus, é directa. O que estou a sugerir, porém, é que as competências de um bom treinador dependem menos das coisas que aprendeu sobre o jogo e que pode aplicar directamente ao seu trabalho do que propriamente de tudo o resto que lhe molda o carácter. Sim, estou plenamente convencido que um treinador que nunca leu Jorge Castelo pode ser mais competente do que todos aqueles que o leram. Isto porque a competência em futebol não é determinada pela soma das coisas que se leu a respeito de futebol, tal como a competência de um político não é determinada pelas coisas que sabe acerca de política. Serve esta introdução não só para baixar as expectativas em relação ao que se segue, como para, de um modo enviesado, preparar o leitor para a amostra de disparates que um académico reputado pode fazer publicar num livro.

Ao falar sobre o professor Jorge Castelo, podia evidentemente falar de lambe-botice. Não é nada que não me desse um certo prazer, como facilmente perceberá o leitor. Mas achei que teria mais piada, pelo menos desta vez, dar relevância à nova aventura desportiva a que o académico se atira agora partilhando um exercício que descobri ser muitíssimo interessante. Consiste o exercício em abrir ao acaso o livro Futebol - A Organização Dinâmica do Jogo, de 2004, da autoria do professor Jorge Castelo, em citar aquilo que se encontrar na página em que o livro inadvertidamente se abrir, em comentar o que se vir escrito, e em repetir o procedimento enquanto me apetecer. Parece aborrecido? Estou em posição de prometer que será bem divertido. Peço ainda atenção não só para o conteúdo das citações, como para a forma das mesmas, pois que no português utilizado (nomeadamente na colocação das vírgulas) se evidenciam desde logo alguns dos problemas no modo de pensar do dito académico. Tentarei ainda sublinhar aquilo que for mais interessante, em cada uma das citações, para facilitar a compreensão das mesmas.

1. [pp.181]

"Se não for possível retardar o contra-ataque ou, o ataque rápido do adversário, logo após a perda da posse de bola, é fundamental:

A) Criar as condições mais favoráveis, para enfraquecer o diminuto espírito colectivo deste método ofensivo, por forma a que não haja qualquer tipo de possibilidade (veleidade) dos adversários poderem cimentar esses propósitos em qualquer momento do jogo. Inclui-se neste âmbito, a impossibilidade de se utilizar a segunda vaga de ataque.

B) Desgastar psicologicamente os adversários, evitando que estes possam pôr em prática os seus comportamentos táctico-técnicos, em especial, os atacantes sobre quem recai a organização deste método de jogo. À medida que os procedimentos de suporte a estes métodos ofensivos se tornam ineficazes, os atacantes descrêem das suas próprias capacidades diminuindo gradualmente a sua actividade de jogo."

Observações: Ou seja, para parar um contra-ataque adversário, diz-nos o académico, há que a) criar condições favoráveis para pará-lo (que raciocínio formidável!!), ou então b) correr atrás dos adversários a raspar com um garfo num prato para "desgastar psicologicamente os adversários", que acabam inevitavelmente por descrer "das suas próprias capacidades". É ou não é um método defensivo brilhante? Eu avisei que isto ia ser divertido. Mas há mais, e logo na mesma página.

2. [pp.181] [Sobre procedimentos para prevenir o contra-ataque]

"Quando de posse de bola a equipa deverá:

A) Manter uma organização defensiva de base (...)

B) Marcar individual e agressivamente, todos os jogadores que não estejam directamente empenhados na defesa da sua própria baliza. Nestas circunstâncias, devem-se utilizar os melhores defesas em termos individuais ou, criar condições de superioridade numérica, no caso da equipa adversária contar com jogadores de elevada capacidade táctico-técnica individual ofensiva (resolução de situações de 1x1)"

Observações: Para o professor Jorge Castelo, portanto, a equipa que ataca e tem a posse de bola deve guardar, apesar de ter a bola, dois ou três defesas para "marcar individual e agressivamente" alguns adversários. Levando à letra, enquanto 7 ou 8 atacam, 2 ou 3 defendem, enquanto 7 ou 8 andam à procura de dar linhas de passe, oferecer coberturas, etc., 2 ou 3 andam atrás de adversários que, por sua vez, andam atrás de quem tem a bola. Isto é jogar futebol ou é jogar à apanhada?

3. [pp.274]

"Denominamos de superfície de contacto, a parte do corpo que entra voluntariamente em contacto com a bola, que em si oferecer uma multitude de superfícies, consoante esteja animada ou não. Podemos, estabelecer dois aspectos fundamentais no que diz respeito à superfície de contacto com a bola:

1) Quanto maior for a superfície de contacto, maior é a precisão da acção.2) Quanto menor for a superfície de contacto, maior é a potência, que se poderá imprimir à bola."

Observações: Em primeiro lugar, parece que, para o professor Jorge Castelo, a bola não é redonda, pois oferece "uma multitude de superfícies". Às vezes o português é traiçoeiro, mas neste caso não ponho as mãos no fogo. Quanto à teoria de que, quanto maior a superfície de contacto, maior a precisão, quanto menor, maior a potência, tenho a dizer que o professor é capaz de não ter equacionado todas as possibilidades. Será que um remate com a ponta de um dedo é mais potente do que um remate com o peito do pé? Será que um passe com as costas é mais preciso do que um passe de bico? Será que a precisão e a potência têm alguma coisa a ver com a superfície de contacto? Cheira-me que a teoria não é boa! Continuemos, porque isto promete.

4. [pp.312]

"As combinações tácticas podem ser classificadas em:

1) Combinações Simples (combinações a dois ou "passa-e-sai"): (i) o portador da bola fixa a acção do adversário directo (penetração), (ii) executa um passe a um companheiro, que consubstancia um deslocamento ofensivo de apoio, seguido de um deslocamento imediato (passar e mover), para um espaço ou posição facilitadora e favorável para receber a bola.

2) Combinações directas (um-dois ou passa-e-sai): (i) o portador da bola fixa a acção do adversário directo (penetração), (ii) execução de um passe a um companheiro que consubstancia um deslocamento ofensivo de apoio, seguido de um deslocamento imediato (passar e mover) para um espaço ou posição facilitadora e favorável para a recepção da bola e, (iii) devolução da bola ao portador inicial.

3) Combinações indirectas (combinações a três jogadores). A utilização de combinações simpes (a dois), são muitas vezes difíceis de concretizar, face às grandes concentrações de jogadores ou à falta de espaços livres. São assim fáceis de anular sempre, que a cobertura defensiva é assegurada. De modo a garantir um maior desequilíbrio na organização defensiva, integra-se mais um jogador, realizando uma combinação a três, que abre mais possibilidades. Em função da iniciativa (selecção de uma opção), da circunstância (local da acção espaço) e, da colocação ou posicionamento do adversário directa (penetração), (ii) executa um passe a um companheiro, que realiza um deslocamento ofensivo de apoio, seguido de um deslocamento imediato (passar e mover) para um espaço ou, posição facilitador e favorável para a recepção da bola, e (iii) devolução da bola, não ao portador inicial, mas a um 3º jogador cuja situação favorável resulta de um benefício directo (fruto da acção que desencadeou) e, um benefício indirecto (fruto da acção desenvolvida pelo primeiro portador da bola)."

Observações: Devo confessar que foi sem fôlego que terminei de citar isto. A minha pergunta é: por que é que o professor Jorge Castelo, para designar as acções de passe e tabela, precisou de escrever tanto e em grego? Para mim, é um mistério. Apesar disso, ficamos a saber que, para Jorge Castelo, quando há pouco espaço e uma tabela não resolve o problema, pode uma equipa surpreender tudo e todos com a inclusão de um terceiro elemento na acção ofensiva. Combinações entre três jogadores? Por esta é que uma defesa não esperava!

5. [pp.320]

"As formas de se conseguirem mais situações de bola parada, são as seguintes:

1) Passar a bola para o espaço nas "costas" da defesa adversária. Os passes para o espaço nas "costas" dos defesas causam-lhes sempre problemas, porque partem para uma posição desconfortável, tendo que rodar em direcção à sua própria baliza.

2) Através de cruzamentos. Os cruzamentos para as "costas" da defesa, especialmente para a zona central causam um desconforto enorme aos defesas. Na maioria dos casos, estes ao deslocarem-se em direcção à sua própria baliza, intervêm sobre a bola enviando-a para lá da linha final.

3) Através da acção de dribles. Os atacantes, ao optarem por uma situação de 1x1 na zona ofensiva, poderão retirar grandes dividendos, através de situações (de pontapés livres directos ou indirectos) muito vantajosas para a sua equipa.

4) Pressionando os defesas. Quando a bola é introduzida nas "costas" da organização defensiva, os atacantes devem pressionar constantemente os adversários (mesmo que estes cheguem primeiro), disputando com eles a bola, diminuindo-lhes o tempo e o espaço para a poderem jogar. Esta limitação (em termos de tempo e espaço), determina que a execução técnica tenha que ser perfeita, logo, se os defesas não estão confiantes da sua capacidade, frequentemente entram em "pânico". Neste sentido, embora pareça estranho, todos os defesas devem estar marcados por um atacante, os quais mesmo não tendo a certeza de chegar primeiro à bola, devem tentar disputá-la com o defesa adversário.

5) Rematando. Quanto mais uma equipa rematar, mais oportunidades tem de criar situações secundárias de remate. Algumas advêm de ressaltos e outras de pontapés de canto. As equipas devem estar preparadas para rematar em qualquer oportunidade, sobre esta pressão os defesas têm mais probabilidades de cometer erros e, originar mais situações de bola parada."

Observações: Não sei muito bem por que é que será útil a uma equipa saber por que métodos é que se podem obter mais lances de bola parada, mas Jorge Castelo parece pensar que sim. Dá-nos 5 formas de aumentar os lances de bola parada, e quase todos com coisas engraçadíssimas pelo meio. Acredita o professor, por exemplo, que a equipa deve tentar muitos passes para as costas dos defesas, pois estes sentem-se sempre desconfortáveis com isso. Um passe para as costas da defesa é, por isso, como um cisco no olho: é desconfortável e incomoda. Aliás, se após um passe para as costas dos defesas, esses defesas forem pressionados e não estiverem "confiantes da sua capacidade", são bem capazes entrar em pânico, como nos informa. Uma bola nas costas da defesa, seguida de pressão, é para os defesas como tentar escapar de um navio a naufragar. É claro que isso deve ser explorado por uma equipa. Conclui, por isso, o professor Jorge Castelo, que "embora pareça estranho, todos os defesas devem estar marcados por um atacante". Caro professor, não parece; é mesmo estranho. Se todos os defesas estiverem marcados por um atacante, quem é que faz o passe? E para quem? Para um atacante que estiver ao pé de um defesa, por estar a marcá-lo? É de mim ou há qualquer coisa nesta teoria que não bate certo? Como se não bastasse, Jorge Castelo acredita ainda que os atacantes devem forçar situações de 1x1, tal como "devem estar preparados para rematar em qualquer oportunidade". Não sei bem de que modo rematar serve para ganhar livres ou cantos, mas a ideia de que uma equipa deve rematar em qualquer oportunidade é suficientemente estúpida para que não a mencione. Então e se, por exemplo, se der uma situação de 2x0? É uma boa oportunidade para rematar, e, segundo Jorge Castelo, uma equipa deve rematar. Aproveitar a superioridade numérica não só não pode fazer tanto sentido, para o académico, como rematar, como ainda reduz a possibilidade de se ganhar uma bola parada. Formidável!

6. [pp.89]

"Os jogadores deverão tentar objectivar o golo, o maior número de vezes possível. Para isso é importante que estes reflictam correctamente a concepção e o método de jogo, previamente preconizado pela equipa."

Observações: Segundo o professor Jorge Castelo, portanto, uma equipa de futebol é uma espécie de cão com cio: qualquer que seja a situação, quaisquer que sejam as circunstâncias do jogo, o importante é "objectivar o golo". Eu diria que o académico, neste aspecto em particular, parece um velho jarreta a falar.

7. [pp.157] [Sobre os aspectos favoráveis da marcação homem a homem]

"Os aspectos favoráveis do método individual são os seguintes:

1) Possibilidade de se anular um jogador de grande capacidade táctico-técnica, por um jogador de menores recursos. Esta diferença de capacidades é compensada por outras características, tais como a perseverança, o empenho e a vontade, mas também pelo facto de os procedimentos defensivos serem mais fáceis de executar que os procedimentos ofensivos.

2) Estabelece missões facilmente compreendidas no plano táctico, por parte dos jogadores, pois, cada um pode concentrar a sua atenção e esforço num só adversário, numa só missão.

3) Transmite, quando é eficazmente aplicado, uma autoconfiança de extrema importância no desenrolar do jogo, porque a defesa ganha mais duelos do que perde. Simultaneamente verifica-se um desmerecimento por parte dos atacantes, que vão desacreditando das suas reais possibilidades.

4) Provoca um desgaste táctico-técnico, físico e principalmente psicológico aos jogadores sujeitos a este tipo de marcação, pois estão sujeitos de forma contínua e permanente a uma marcação impiedosa e agressiva. Mesmo nas situações em que o defesa perde momentaneamente o contacto com o atacante, este continua a reagir e a proceder, como se tivesse efectivamente marcado. Com efeito, após algum tempo de jogo, o atacante desenvolve nele próprio um constrangimento psicológico, que o leva a actuar como se tivesse marcado, quando na realidade não está. Estas situações são bem visíveis no comportamentos dos pontas-de-lança, que ao receberem a bola de costas para a baliza adversária, ao serem pressionados pelo defesa central, a devolvem quase de imediato ao companheiro em apoio frontal. Todavia, nos casos em que não estão pressionados têm a tendência de executar a mesma resposta táctico-técnica, em vez de rodarem e direccionar os seus comportamentos para a baliza adversária.

5) Reduz a iniciativa do adversários que está sob influência deste tipo de marcação, pois nunca tem espaço e tempo para exprimir as suas capacidades táctico-técnicas.

6) Consegue-se permanentemente um certo equilíbrio numérico em qualquer situação momentânea de jogo em qualquer espaço.

7) Potencializa-se a sua eficácia, quando utilizado, logo, após a equipa ter conseguido o golo. Aumenta-se assim, o carácter perturbador da situação, em que a equipa para além de sofrer o golo, está perante um obstáculo adicional, que se consubstancia por uma marcação mais agressiva e individualizada."

Observações: E quando se pensava que a jarretice não podia ir mais longe, eis que o professor nos surpreende. Eu chamaria atenção para os pontos 4) e 7), que consistem em argumentos sofisticadíssimos para a utilização deste método defensivo. Mas antes de falar deles, gostaria de falar de outras coisas. Para o professor Jorge Castelo, este é o método melhor para anular "um jogador de grande capacidade táctico-técnica", coisa de que, por exemplo, Maradona, um dos jogadores com maior "capacidade táctico-técnica" da História, discordava. Gostaria ainda de falar do substantivo "desmerecimento", coisa que acontece aos atacantes quando marcados individualmente (caro professor, não quereria antes dizer "esmorecimento"?), e do verbo "ter" em vez do verbo "estar", em frases como "como se tivesse efectivamente marcado" e "que o leva a actuar como se tivesse marcado, quando na realidade não está". Sem sombra de dúvida, uma boa prova da imensa categoria deste académico respeitado. Sigamos agora para o prometido. Acredita Jorge Castelo que a marcação ao homem desgasta psicologicamente o jogador que sofre essa marcação e, não satisfeito com isso, acredita também que esse desgaste dá lugar a um "constrangimento psicológico" que o leva a comportar-se em todas as ocasiões como se estivesse marcado. Significa isto que, para Jorge Castelo, um jogador de futebol, quando marcado em cima durante algum tempo, passa a comportar-se como o cão de Pavlov, reagindo à ausência da marcação do mesmo modo que reagiria à sua presença. Podemos, portanto, concluir que o enormíssimo académico tem um jogador de futebol em tão boa conta como um rato de laboratório, como alguém cuja capacidade de decisão é facilmente manipulável. Eu não sei que jogos o professor tem visto, mas eu não me lembro de nenhum avançado que, ficando inesperadamente isolado frente ao guarda-redes, voltasse para trás apenas porque não era normal dispor de uma situação como essa, estando mais habituado a outro tipo de comportamento. Este é, aliás, um bom exemplo daquilo que dizia ao início, acerca de as competências de um bom treinador dependerem acima de tudo de coisas que têm pouco a ver com conhecimentos futebolísticos. Se o professor Jorge Castelo procurasse aperfeiçoar os seus conhecimentos em áreas que nada têm a ver com o futebol, se soubesse, por exemplo, que um ser humano adulto e perfeitamente racional dificilmente responderia condicionadamente como o cão de Pavlov, não publicaria disparates como estes. Mais chocante ainda é achar que este método defensivo é especialmente eficaz a seguir a um golo obtido. Parece presumir o académico que defender ao homem, além de criar problemas de raciocínio aos adversários, ainda os desmotiva, sobretudo a seguir a situações em que a perda de motivação se torna mais plausível, como seja um golo sofrido. Além, portanto, de servir para transformar homens em asnos, defender ao homem é também útil para deixá-los melancólicos e abatidos. Permitam-me a analogia: defender ao homem, para o professor Jorge Castelo, é mais ou menos como um navio pirata em que os piratas, depois de pilharem os navios que abordam, não só embebedam os marinheiros do navio abordado, deixando-os incapazes de responder racionalmente, como também lhes levam toda a água potável, fazendo-os acreditar que não têm possibilidade nenhuma de sobreviver. É claro que um método defensivo deste tipo não dá hipóteses nenhumas. Perante tamanhos benefícios, nem sequer consigo perceber como é que caiu em desuso.

Enfim, já vai longa a amostra. O professor Jorge Castelo defende isto e muito mais. Para o que interessa, isto basta. Este senhor vai agora trabalhar num dos clubes mais importantes do país. E não publicou isto há 30 anos, como se poderia pensar. Publicou-o há 8, o que significa que dificilmente pensará de modo diferente. Para aqueles que defendem a aposta incondicional em académicos, o meu conselho é que é reflictam um pouco antes de falar. A academia não pode, obviamente, ser representada por um único exemplo, ainda que esse seja o mais reputado dos exemplos, mas também não pode, por si só, ser uma fonte de saber incontornável. A principal diferença do professor Jorge Castelo para o comum dos treinadores é a de ter reputação. Nos dias que correm, por mais disparates que se digam, por mais pateta que se seja, a reputação, o nome, os rótulos, e a capacidade de dar palmadinhas nas costas das pessoas certas, são os atributos mais importantes para se chegar longe. Em vez de se contratar competência, contratam-se aparências. O académico agradece, engorda os bolsos, acrescenta uma linha ao currículo, e os estúpidos continuam a bater-lhe palmas, quem sabe esperando que um dia os recompense o académico, lembrando-se deles em qualquer ocasião de necessidade.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Uma Crise ou um Desejo?

Se, por um lado, o recente distanciamento entre os dois principais candidatos ao título em Espanha tem motivado os disparates habituais daqueles que têm por santo protector José Mourinho, suscitou, por outro, a ideia de que o Barcelona se encontra em crise. Para quem não vê os jogos, e olha apenas para os resultados, talvez seja esta a impressão que dá. Para aqueles que se acham muito espertos e que perdem horas a fio a tentar perceber o jogo, é no mínimo inaceitável que pensem desse modo. Falar em crise interna é absurdo, precisamente porque os resultados negativos dos catalães são relativamente fáceis de explicar. Começo pelo recente jogo em Pamplona, diante do Osasuna. Num campo com aquelas condições, a vantagem que o Barcelona tem em qualquer jogo por trocar a bola com facilidade entre as linhas adversárias fica imediatamente posta de lado. Num terreno em que era praticamente impossível jogar ao primeiro toque com o mínimo de segurança, o Barcelona não pôde exercer o seu habitual jogo de posse com a mesma qualidade. Se juntarmos a isso o facto de Xavi, Iniesta, Fabregas e Busquets não terem alinhado, ficamos praticamente com a explicação de que precisamos. Sem estes, o meio-campo do Barça, que é o sector mais importante no modelo da equipa, não podia necessariamente ter o mesmo rendimento, sobretudo em termos de criatividade. Juntemos a isto a ausência de Keita, na Taça das Nações Africanas, e temos que Guardiola teve de fazer alinhar Mascherano no meio-campo, pela primeira vez esta época. O argentino não só compromete incrivelmente em termos ofensivos, como é uma nulidade em termos posicionais, e teve responsabilidades directas em todos os golos sofridos. Significa isto que o Barcelona está em crise?

Para mim, a diferença no campeonato (que estará praticamente ganho pelo Real), pode ser facilmente explicada, sem recorrermos à ideia de que há alguma crise. Principalmente porque não há crise nenhuma. A explicação não é linear, obviamente, mas ainda assim fácil de obter. Veja-se o tempo de utilização dos jogadores. No Real, Mourinho raramente mexeu no seu onze. Guardiola tem optado por outra estratégia. Callejon, Altintop, Granero e Nuri Sahin, por exemplo, têm menos minutos de utilização do que Isaac Cuenca, que seria, à partida, apenas a quinta opção para as alas. Christian Tello, Sergi Roberto, Jonhattan dos Santos e Gerrard Deulofeu têm sido presença praticamente assídua na convocatória. As lesões de Villa, Afellay, Pedro, Xavi, Fabregas, Iniesta e Busquets têm, evidentemente, possibilitado que assim seja. Mas o importante é que Guardiola não tem forçado os mais conceituados a jogar sistematicamente. Faz isto com que, ao fim de alguns jogos, o Real consiga manter a consistência, e o Barça não. Agora, falar de crise quando os maus resultados do Barcelona foram quase sempre obtidos em jogos em que se verificaram muitas ausências parece-me estúpido.

No campeonato, o Real encarou cada jogo como uma final, e não facilitou minimamente. Pôde dar-se a esse luxo por várias razões: porque não teve, tirando Ricardo Carvalho e, mais recentemente, Di Maria, lesões em jogadores fulcrais (no Barcelona, Afellay, Villa e Pedro praticamente ainda não jogaram; Piqué e Puyol passaram os primeiros dois meses de competição parados ou a adquirir ritmo; Alexis, Fabregas, e Iniesta já tiveram lesões que os obrigaram a parar várias semanas; Xavi tem sido gerido a pinças; Keita esteve um mês ausente), porque o grupo da Liga dos Campeões era ridiculamente acessível, e até porque foram eliminados da Taça do Rei (os últimos 5 pontos que o Barça perdeu foram em jogos três dias antes ou três dias depois de compromissos a meio da semana para a Taça do Rei). O Real apostou forte no campeonato, e tem conseguido manter-se na frente, muitas vezes com vitórias alicerçadas numa força de vontade francamente assinalável. O Barcelona já ganhou 2 competições, continua na Taça, e acabou por perder pontos importantes no campeonato. Não há crise nenhuma. Há pontos decisivos perdidos, que a juntar à campanha praticamente imaculada do Real explicam tudo.

Para os que acreditam na ideia de uma crise, o conselho que dou é que vejam os jogos do Barcelona, e não apenas os resultados ao domingo à noite. E lembrem-se também de que era de crise que se falava há quatro anos, quando o Barcelona (na altura no primeiro ano de Guardiola) somou apenas um ponto nas primeiras duas partidas na liga. Se tivessem visto os jogos nessa altura, como se vissem os jogos agora, pensariam talvez duas vezes antes de falar em crise. Eu, que vi os jogos todos do Barcelona esta época, ainda não vi um único jogo em que os catalães não merecessem a vitória. Um único. Ainda não vi um jogo em que a equipa não conseguisse encontrar maneiras de resolver os seus problemas, um único jogo em que pudesse dizer que o adversário tivesse conseguido manter os catalães desinspirados e longe das imediações da sua baliza, como por exemplo o Hércules conseguiu em Camp Nou o ano passado. Repito, ainda não vi um único jogo em que o resultado não devesse ser favorável à equipa de Guardiola. Como é óbvio, houve jogos menos bons, jogos em que a equipa se "pôs a jeito", jogos em que facilitou. Nesses jogos, ao contrário do que aconteceu com o seu rival, o Barcelona perdeu pontos. Mas, em todos eles, tal como perdeu pontos por um ou outro detalhe, podia facilmente não os ter perdido, e era até isso o mais provável. Aconteceu frente à Real Sociedad, por exemplo, em que a seguir a uma primeira parte de domínio absoluto, com 2-0 ao intervalo, a equipa entrou para a segunda parte desconcentrada, acabando por consentir o empate. Aconteceu contra o Getafe e contra o Osasuna, em que o estado do relvado não ajudou. Aconteceu também contra o Atlético de Bilbao, debaixo de uma tempestade que fez com que o jogo não fosse fácil de jogar. Mas, em qualquer um destes jogos, mesmo tendo o Barcelona jogado menos do que poderia, jogou mais do que o suficiente para vencer.

Tal não se pode dizer, por exemplo, do Real Madrid, que chegou já a golear em jogos em que, francamente, nem empatar merecia. O futebol é assim mesmo, e o que é facto é que a equipa de Mourinho tem sabido contrariar a pouca inspiração que tem denotado em muitos jogos com uma força de vontade e uma mentalidade incríveis. Se me perguntassem, diria que não acreditava que uma equipa conseguisse ganhar sistematicamente tendo como principal arma uma mentalidade vencedora, mas a verdade é que o Real, que em alguns jogos até tem apresentado bastante qualidade, tem vencido muitos apenas pelo "querer". Perdi mesmo já a conta dos jogos em que o Real arrancou a perder, fez uma primeira parte miserável, e acabou por dar a volta na segunda, sem apresentar um grande futebol, mas com uma força anímica muito grande. Foi assim com o Levante, este fim-de-semana, por exemplo, se bem que ter ficado a jogar contra dez ajudou. Tal e qual foi o jogo com o Atlético de Madrid, em que goleou, é verdade, mas em que, até aos 20 minutos (antes do golo do empate e da expulsão do guarda-redes colchonero) estava a ser completamente manietado e perdia por 1-0. Há duas semanas, com o lanterna vermelha Saragoça, em casa, podia facilmente ter perdido pontos, tal foi o mau futebol que apresentou. Frente ao Maiorca, igual: começou a perder, a jogar muito mal, e acabou por dar a volta na segunda parte, já perto do final, quase só pelo esforço. Frente ao Atlético de Bilbao, levou mesmo um banho de bola (o golo do 2-1 é obtido na sequência de duas faltas evidentes, e a seguir ocorre mais uma expulsão, o que permite ao Real voltar a golear). Aliás, a quantidade de jogos que a equipa tem resolvido após expulsões de adversários também ajuda a explicar a regularidade das vitórias. Frente ao Valência, mais um jogo em que o Real não conseguiu ter o controlo e venceu quase miraculosamente, depois de um jogo magnífico dos comandados de Unai Emery. Frente ao Espanhol, venceu por 4-0, mas passou o jogo a sofrer, com a equipa catalã sempre muito melhor, em quase todos os momentos do jogo. Bastava o Real ter perdido pontos nalguns destes jogos menos conseguidos para que agora o campeonato continuasse em aberto, e não se falasse agora em crise no Barcelona. Como, apesar de o Barcelona continuar a controlar muito melhor as suas partidas do que o Real, acabou por ter deslizes que os madrilenos não tiveram, e que se explicam principalmente porque nem tudo é controlável num jogo de futebol, acha-se que os pontos que o Barcelona perdeu demonstram que a equipa tem estado pior no campeonato. Pois não tem. Tem estado bem melhor do que o Real Madrid, até. Simplesmente, tem tido lesões que os madrilenos não têm tido, tem feito uma gestão de esforço que os outros não têm feito, tem tido infortúnios, etc.. E tudo isso são detalhes suficientes para que exista uma distância pontual que não condiz com a qualidade de jogo que as duas equipas têm apresentado.

Por fim, queria ainda chamar a atenção para duas coisas. O Real está empenhadíssimo em vencer o campeonato, e é muito difícil a uma equipa como o Barcelona, que ganhou tudo o que havia para ganhar nos últimos tempos, ainda por cima de forma categórica, manter os índices de concentração tão altos como no passado. Em certos momentos isolados dos jogos (início e final das partidas, após uma vantagem dilatada, etc.), a equipa tem denotado algum relaxamento. Em termos de concentração competitiva, neste momento, o Real Madrid é superior, o que não é nada de extraordinário. A meu ver, esse tem sido o principal factor para que a equipa de José Mourinho tenha mantido a regularidade de vitórias. No Barcelona, quando muito explicará um ou outro deslize, como o que aconteceu ante a Real Sociedad. O que quero com isto dizer é que esse é um factor circunstancial, que advém do facto de o Real estar há muito tempo sem vencer o campeonato, do facto de não conseguir vencer o Barcelona, e do facto de querer recuperar a dignidade perdida. Estas circunstâncias permitem a campanha da equipa. Sem elas, o Real é o mesmo Real do ano passado, com o mesmo tipo de problemas ao nível da qualdidade do jogo: trata-se de uma equipa fortíssima do ponto de vista individual, muito bem trabalhada em transição, mas com problemas a nível de organização ofensiva (acho que tem melhorado nos últimos tempos, e a meu ver porque Kaká e Granero têm jogado mais, em detrimento de Khedira, Lass e Di Maria). Em organização, o Real já tenta mais penetrações pelo meio, e já privilegia mais o toque curto e o passe vertical, mas continua a não ser capaz de invadir blocos baixos com facilidade. A sua força, neste momento específico do jogo, tem sido essencialmente a alma guerreira da equipa, assim como a qualidade individual dos seus jogadores.

Uma última coisa, apenas a respeito da gestão do plantel. Guardiola, mesmo numa época em que o Real Madrid não tem cometido erros, não tem tido quaisquer problemas em lançar vários jovens: Cuenca, Tello e Sergi Roberto, principalmente, já para não falar de Thiago. Tratam-se de jovens com qualidade, mas que, se não tiverem a oportunidade de jogar com o mínimo de regularidade, nunca se afirmarão. Isto para dizer que, ao contrário de Mourinho, que está principalmente interessado em engordar o currículo, em vencer no presente, Guardiola tem de juntar às ambições presentes a ideia de clube e de futuro que não preocupa o português. A curto prazo, isso pode ter ajudado a custar este campeonato ao catalão, mas dará certamente dividendos no futuro. Também por isso, não posso deixar de presenteá-lo com o meu largo aplauso pela coragem. E, acima de tudo, é mais uma lição para clubes que acham que apostar na formação é apenas arranjar maneira de ter os melhores miúdos do bairro a jogar pelos seus escalões mais jovens. O Sporting, acima de qualquer outro clube em Portugal, deveria aprender com o que Guardiola está a fazer em Camp Nou. A sede de títulos não pode nunca pôr em causa a ideia de futuro de um clube, e se há jovens com potencial para servir esse clube, esses jovens devem ser lançados sem medo, mesmo que, a curto prazo, a equipa se ressinta dessa aposta. O futuro desses jovens, e o contributo que darão à equipa, justificará certamente o risco.

Para finalizar, agora sim, não concordo, de maneira nenhuma, que se associe aos resultados internos do Barcelona uma crise. Esses resultados têm explicação fácil, e qualquer pessoa justa que tenha visto os jogos das duas equipas que lideram o campeonato dirá que a qualidade que os catalães têm apresentado em campo continua a ser bem superior. Significa isto que o Barcelona, podendo não vencer este campeonato, continua a ser a melhor equipa do mundo, a larga distância dos outros, e continua a ser o principal candidato a ganhar tudo o resto. A única coisa em que o Real de Mourinho tem sido superior tem sido na determinação em vencer. E isso, desculpem-me o cepticismo, é muito pouco. As pessoas que falam em crises têm teorias acerca das oscilações de forma das equipas. Mas até nisso este Barcelona é diferente de todas as outras equipas, no presente e no passado. É que não houve nunca uma equipa que estivesse tão imune a crises, a oscilações de forma, a perdas de motivação, como esta. Tem isso a ver, também, com o próprio modelo de jogo, que exige dos jogadores uma concentração que outros modelos não exigem. Pode haver momentos de descontracção pontuais, mas não há, nem nunca houve, e, arriscaria, não haverá tão depressa, uma perda de motivação ou de concentração significativa que faça com que a equipa fique mais perto de perder os seus desafios. Não há crise nenhuma na Catalunha. Há, talvez, isso sim, um desejo enorme fora dela de que essa crise de facto exista. Infelizmente, para os que a desejam, estão equivocados. Mesmo perdendo uma ou outra competição, ainda demorará algum tempo para que a hegemonia de Guardiola e dos seus pupilos possa realmente ser posta em causa.