terça-feira, 29 de março de 2011

Robben e as Individualidades

Arjen Robben é um dos maiores desequilibradores do futebol mundial e, certamente, um dos melhores na sua posição. À margem das muitas lesões que tem sofrido ao longo da sua carreira, poucos não gostariam de contar com os seus serviços. O que pretendo defender, neste texto, é que, apesar de apreciar Robben e de lhe reconhecer capacidades individuais soberbas, dificilmente encaixaria a especificidade do seu futebol (pelo menos do futebol que, nos últimos anos, tem feito seu) numa equipa com um ideal colectivo como eu o concebo. Aliás, será objectivo deste texto argumentar que Robben, tal como joga no Bayern de Munique, apesar de temível individualmente, é nocivo à evolução da equipa enquanto colectivo. Por arrasto, será defendido que todo o jogador que tenha a tarefa específica de ser o principal desequilibrador da equipa é nocivo à desenvoltura colectiva dessa equipa.

O Bayern de Van Gaal, apesar de, muitas vezes, parecer uma equipa frágil a defender e não ter ideias ofensivas, é uma equipa muitíssimo responsável em termos posicionais, com fio de jogo como poucas e com bastantes princípios ofensivos. O 4231 implementado pelo técnico holandês é mais arrojado que um 4231 tradicional, nem que seja pelo facto de não jogar com um único médio de características tradicionalmente defensivas. À parte dos problemas que a equipa tem em fechar os espaços entre os defesas e os médios, o modelo é interessante. Ofensivamente, as movimentações de Müller, como eram as de Litmanen no Ajax de Van Gaal, são das mais interessantes naquela posição. O Bayern é também das equipas europeias que melhor joga com o espaço entre linhas, e das que melhor procura os espaços certos para atacar. O problema, a meu ver, está na especificidade de alguns dos seus atletas. O ano passado, sem Robben, que esteve grande parte da época lesionado, o Bayern teve de procurar resolver os seus problemas de variadíssimas maneiras e, com isso, evoluiu colectivamente. Ribery, por melhor que seja em termos individuais, não é Robben. Não é um chamariz como o holandês e não tem a influência do seu colega. Sem Robben, o Bayern jogava mais pelo meio, era mais vertical, solicitava menos as acções individuais dos seus extremos e envolvia mais atletas no processo ofensivo.

Este ano, com Robben em condições, uma grande fatia das soluções ofensivas da equipa passa por circular a bola até ao holandês, normalmente na extrema direita, em afastar todos os colegas dele, de modo a arrastar adversários e a conceder-lhe espaço, e a deixar entregue ao seu talento a solução individual de cada ataque. É estratégico, neste Bayern, levar a bola até Robben e depois autorizar-lhe e fornecer-lhe as condições ideais para que desequilibre. O problema desta estratégia é que, por mais que desequilibre individualmente, é previsível. A previsibilidade do futebol dos bávaros, este ano, é inacreditável. Ainda que Robben, por si, não seja normalmente previsível, o simples conhecimento desta estratégia por parte dos adversários prepara-os para a mesma. E, por a estratégia ser previsível, as acções de Robben têm também muito menos consequências. Por norma, os adversários obrigam-no a vir para o meio, a procurar cruzamentos largos pouco eficazes. Por Robben ter tanto destaque, o Bayern, enquanto equipa, tornou-se mais fácil de parar. Bastou, para isso, que os adversários se preparassem para os momentos em que a bola entrasse no holandês.

O grande problema do Bayern, segundo esta análise, foi por isso aquilo que era, aparentemente, a sua melhor solução. É um caso ímpar de como o peso excessivo de uma unidade numa equipa, ainda que uma unidade individualmente muito útil, pode comprometer o colectivo. O que Van Gaal fez foi o contrário do que se deve fazer: submeteu as características do modelo à especificidade de Robben, quando deveria ter encaixado o holandês na estrutura colectiva. O que este exemplo, no fundo, ilustra é aquela velha teoria que sempre se defendeu aqui de que o modelo tem de estar acima da especificidade dos jogadores. Pouquíssimos defenderão o mesmo que nós. Para a grande maioria, o modelo ideal deve aproveitar e adaptar-se à especificidade dos atletas, tirando desse modo o melhor de cada um. Para nós, o modelo ideal está acima de qualquer individualidade e compete ao treinador não adaptar a sua ideia de jogo aos jogadores que possui, mas o contrário, adaptar os jogadores que possui à ideia de jogo, que lhes é anterior. Arjen Robben é fortíssimo no um para um, mas o Bayern não precisava de focar-se estrategicamente nessa capacidade para ser bem sucedido. Pelo contrário, seria bem mais sucedido se preconizasse um modelo estrategicamente diferente, em que todas as individualidades obedecessem a uma ideia homogénea. Incluído num conjunto com uma ideia estritamente colectiva do jogo, sem estar presa à tarefa de desequilibrar individualmente, a especificidade de Robben acabaria por ser eficaz quando tivesse que ser. Nessas condições, nem o Bayern estaria dependente da inspiração de Robben, procurando o êxito por outros caminhos e tornando-se menos previsível, nem Robben estaria dependente de si mesmo. Os grandes jogadores só adquirem a excelência se não dependerem exclusivamente de si mesmos, o que é o mesmo que dizer que só podem valorizar-se quando integrados em conjuntos em que não têm a missão hercúlea de resolver tudo e mais alguma coisa. Nada disto é uma crítica a Robben. Nem tão-pouco a Louis Van Gaal. Trata-se de um vício muitíssimo abrangente de cuja natureza tóxica só um treinador do mundo me parece ter consciência clara.

terça-feira, 22 de março de 2011

Façam o favor de serem inteligentes...

“O Frank foi muito importante para o Barcelona. Gostaria agora de lhe poder retribuir alguma coisa. Caso seja treinador do Sporting tudo faremos para ajudar a sua equipa”, afirmou.

Rosell adiantou ainda que no dia a seguir à vitória de Dias Ferreira “serão iniciadas de imediato negociações entre as duas equipas para formalizar esse mesmo apoio”.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Excessos Excessivamente Excessivos

Como o título indica, este será um texto sobre coisas excessivas, sobre asneiras que as pessoas repetem, sobre ideias demasiado consagradas, sobre acontecimentos exageradamente discutidos, etc..

1. Numa entrevista, quando ainda era treinador do Braga, Jorge Jesus disse que aprendera no mesmo sítio que Guardiola e que, por isso, o seu modelo, em termos de princípios de jogo, era idêntico ao do Barcelona. O excessivo, aqui, não é o exagero da coisa, mas a redução da ideia de modelo ao conjunto de princípios gerais: futebol ofensivo, pressão alta, linhas subidas, etc. Os princípios de jogo do Barcelona vão muito para além disto e é esse muito que o distingue. O modelo de jogo de Jesus, tendo virtudes, não é por isso sequer primo do modelo de Guardiola.

2. Outra coisa excessiva a respeito do modelo de Jesus é o entusiasmo que causa. O problema desta relação entre qualidade do modelo e entusiasmo que provoca é que é falaciosa. O melhor modelo não é o que galvaniza mais as bancadas, o que cria mais oportunidades de golo, o que motiva mais os jogadores. Não há relação de causalidade entre qualidade e efeitos exteriores na audiência, resultados práticos ou capacidade de motivação. O melhor modelo, e esta é a minha definição, é aquele que faz depender o colectivo o menos possível das individualidades. Nesse aspecto, o modelo de Jorge Jesus tem-se revelado cada vez mais banal. Depende excessivamente - e isto é algo que ando a dizer desde o início da época passada, embora se revele cada vez mais - da vertigem que as individualidades são capazes de colocar no jogo; depende das correrias dos laterais, da velocidade a que cada jogador reage à perda de bola, da espontaneidade de cada elemento, etc. Se é verdade que, jogando deste modo, impede os adversários de se organizar do melhor modo, impede também a própria equipa de jogar de modo organizado. O modelo de Jesus prepara a equipa para ser forte em momentos de desorganização, mas limita-a não a preparando para ser competente quando é preciso inventar essa desorganização.

3. Talvez o melhor exemplo de como o modelo tem graves problemas seja Saviola. O argentino - têm dito - não está na sua melhor forma. Isto é absolutamente falso. Tem tido menos preponderância neste Benfica porque este Benfica, pelo modo como joga, não procura valorizar aquilo em que Saviola pode fazer a diferença, sobretudo em ataque posicional. Ao jogar excessivamente em velocidade, o Benfica passa a focar o seu interesse em jogadores velozes e fortes fisicamente e perde de vista aquilo que os mais criativos, como Saviola, podem emprestar em criação de espaços curtos. Saviola, como aliás Pablo Aimar, foram os jogadores que, o ano passado, puderam permitir ao Benfica ser uma equipa com outras soluções que não as corridas desenfreadas. Este ano, Jesus tem gradualmente abdicado desse tipo de soluções e os dois argentinos foram perdendo protagonismo. Com essa perda de protagonismo, perdeu também o Benfica imprevisibilidade e passou a depender mais daquilo que cada jogador é capaz de dar, enquanto individualidade.

4. No final da época passada, quando elegemos André Villas Boas como o melhor treinador do campeonato, tínhamos em conta precisamente estes defeitos do modelo de Jesus. Um ano volvido, acreditamos ainda mais na diferença entre os dois. Não obstante um ou outro problema no modelo do Porto, é certo que é o modelo que, em Portugal, maior qualidade apresenta, pois é aquele que depende menos da soma das suas individualidades. O que é excessivo, neste ponto, é portanto a incompreensão de como o Porto deste ano, radicalmente diferente do do ano anterior, soube superiorizar-se ao Benfica de Jesus, tal como este, na época passada, se superiorizara ao Porto de Jesualdo.

5. O principal defeito do modelo portista, a meu ver, está na tarefa distinta dos extremos. Toda a equipa privilegia uma posse de bola curta e o passe ao drible, à excepção dos extremos, que parecem ter liberdade para individualizar os lances. É verdade que Hulk e Varela são fortes no um para um e é verdade que várias das suas acções individuais podem trazer benefícios ao colectivo. Também é verdade que há movimentações sem bola, sobretudo de abaixamento, que os extremos fazem e que se inserem na ideia colectiva. Mas existe, no meu entender, uma fé excessiva na capacidade individual destas unidades que pode ser prejudicial à equipa. Os extremos são jogadores essencialmente verticais e que têm a tarefa de definir os lances. Raramente são utilizados na gestão passiva e racional da bola, o que impossibilita que o Porto consiga ser ainda mais dominador do que é quando a tem. Assim sendo, o Porto é fortíssimo a controlar o jogo com bola nos dois primeiros terços do terreno, mas não o é nas imediações da área. Raramente consegue penetrar em defesas sólidas e densas sem utilizar a arma das individualidades: os remates de meia distância, o drible, o um para um, etc. Falta envolvência ofensiva em espaços curtos a esta equipa e muito por causa da excessiva verticalidade que é pedida ou autorizada ao trio da frente.

6. São excessivas também as previsões catastróficas do futuro sportinguista. Basta lembrar o que era o Benfica antes de Jorge Jesus para se perceber que tudo pode mudar de um ano para o outro, havendo a sorte de se contratar competência. É evidente que os recursos financeiros do Benfica são outros, mas a principal causa da mudança está no cargo de treinador. Tenha o Sporting a sapiência de contratar um treinador competente e a próxima época será certamente diferente. É também evidente que os rivais estão muitíssimo fortes e que ganhar o título poderá depender muito do que esses rivais forem capazes de fazer para o ano. Mas, com um treinador capaz, pelo menos a intromissão na luta pelo título é um horizonte mais do que realista. Do que me pude aperceber das eleições que se avizinham, o único candidato que poderia relançar imediatamente o Sporting é Dias Ferreira. Não por ter competências excepcionais como presidente ou como pessoa, mas porque foi o único que apresentou um treinador que me parece apropriado para as aspirações do Sporting. E o treinador deveria ser, sem dúvida, a principal preocupação eleitoral.

7. A valorização de Domingos é outra das coisas que me faz alguma confusão. É interessante que o diga agora, um dia depois de um apuramento histórico do Braga. Campanhas europeias históricas ou alguns resultados surpreendentes não chegam para qualificar um treinador. Se chegasse, Jaime Pacheco teria de ser recorrentemente uma das cogitações para treinar um grande. É verdade que, na Europa, o Braga está a fazer mais do que se esperaria. Mas internamente está a fazer menos. Num ano em que o Sporting está tão mal e em que o Guimarães não tem pedalada para mais, um treinador de grande qualidade teria de deixar o Braga em terceiro lugar. Concordo que Domingos tem qualidades, sobretudo ao nível da preparação estratégica dos jogos e da implementação de certos conceitos defensivos. Mas o seu Braga não é, nem nunca foi, uma equipa capaz de dominar jogos. Trata-se de uma equipa organizada, sim, mas ofensivamente medíocre. E já o ano passado o era, fazendo a campanha interna que fez por questões mentais, por se ter adiantado na classificação num momento precoce da época e, por isso, ter adquirido forças extra para superar os obstáculos. Numa equipa grande, Domingos teria, a meu ver, enormes dificuldades para se impor.

8. Muitos terão visto o jogo da segunda mão entre Barcelona e Arsenal e muitos terão opiniões sobre esse jogo. Não vou falar do jogo, mas de um pormenor que não sei até que ponto terá passado despercebido. Os noventa minutos foram todos praticamente jogados em 30 metros. Quando assim acontece, por norma, esses são os trinta metros mais próximos da baliza de quem defende. Não foi isso que se passou neste jogo. O jogo foi jogado apenas em trinta metros, mas praticamente no meio-campo. Deveu-se esse facto a duas razões: à atitude defensiva do Arsenal, por um lado, e à opção, invulgar em quem opta apenas por defender, por uma linha defensiva muito subida. O Arsenal jogou basicamente com duas linhas, uma de seis jogadores e outra com quatro, mas tentou fazê-lo na zona de meio-campo e não à frente da sua baliza. A intenção era evitar que o Barcelona jogasse entre linhas, mas sem recuar em demasia. Com isso, o jogo foi de tendência unicamente catalã, como tantas vezes acontece, mas disputado numa zona do terreno pouco comum. Quem viu o desafio com atenção viu por isso um jogo altamente atípico, jogo esse que, na minha opinião, é representativo de um tipo de futebol que se jogará no futuro.

9. Já se falou muito de treinadores; fale-se agora de jogadores. Um dos mais criticados, no início da época, em Espanha, era o francês Karim Benzema. Benzema pode não ser um jogador extraordinário de costas para a baliza, como apoio vertical, mas não é, também, dos piores. Depois, é tecnicamente muito evoluído e é capaz de se desembaraçar com alguma facilidade em espaços curtos. Sempre achei as críticas que faziam ao francês, que eram unicamente baseadas no facto de não marcar golos, incrivelmente desajustadas. A mobilidade de Benzema e a facilidade com que combinava com os colegas emprestaram ao Real Madrid, nessa fase, algo de muito positivo. A arrastar marcações, então, foi determinante. Ninguém foi capaz de ver isso e, agora que voltou a marcar, acham que evoluiu e que está mais confiante. Nada mais falso. Karim Benzema está igual. Mas, como marca golos, as pessoas mudaram a opinião. É um bom exemplo de como a imbecilidade se pode propagar.

10. Em Portugal, dois jogadores de quem se tem falado recentemente e em relação aos quais não consigo compreender o entusiasmo: Djalma e Rúben Brígido. O primeiro é um extremo veloz e habilidoso. Só. Poderá crescer, eventualmente, até a um nível aceitável, mas duvido que venha a ser um jogador de topo. Falta-lhe, sobretudo, compreender e pôr em prática ideias colectivas, e carece de imaginação. A menos que se torne muito forte no um para um, coisa que ainda não é, nem de perto nem de longe, poderá ter alguma utilidade, e ainda assim apenas num modelo que privilegie tais características. Quanto a Rúben Brígido, o melhor que se pode dizer dele é que é atrevido. Sim, arrisca ir para cima dos defesas e não tem medo de falhar. Nunca percebi por que razão tais características são coisas positivas. É demasiado vertical, procura sempre o desequilíbrio, e não é capaz de perceber as necessidades da equipa em cada situação. Tem boa técnica, embora não seja especialmente forte no um para um, mas raramente toma boas decisões. É um jogador agressivo com bola, espontâneo, objectivo, como dizem, mas pouco imprevisível. Tenho também sérias dúvidas que algum dia tenha capacidade para singrar ao mais alto nível.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Conversa da Treta

De há uns anos para cá, tem-se acentuado a tendência de se privilegiar treinadores académicos a treinadores que foram ex-jogadores ou que fizeram carreira dentro do futebol. Com o fenónemo Mourinho, essa tendência ganhou ainda mais relevância. Acho esta divisão uma patetice. Há bons e maus treinadores nos dois lados da barricada. A academia garante tanta competência quanto a experiência dos relvados, ou seja, nenhuma. Ler muito, adquirir muitos conhecimentos, ter tido contacto com os mais recentes estudos não tem relação directa com a competência de um treinador. Não é a forma como a pessoa se instrui que advoga a sua qualidade, mas as ideias que possui e, em suma, a sua inteligência.

Os partidários da academia são ainda religiosamente favoráveis à metodologia de treino da moda: a periodização táctica. O problema da periodização táctica não é a periodização táctica, mas o que cada um acha que é a periodização táctica e a importância excessiva da discussão acerca dela. Há os que acham que ela é a coisa moderna que os modernos devem modernamente seguir, para não passarem modernamente por antiquados. Estes são os mais estúpidos, aqueles para quem, no fundo, trabalhar em periodização táctica é a única coisa que faz sentido, ainda que não saibam explicar porquê. Dizem-se adeptos da periodização táctica porque sabem que é a metodologia que corresponde ao que é moderno e porque faz lembrar Mourinho. Depois, até sabem mais ou menos em que consiste, mas não percebem que benefícios se podem extrair dela que não os óbvios. São, no fundo, fanáticos, pessoas que gostam de uivar que as equipas não devem ter preparadores físicos, que subir escadas não faz sentido nenhum e que o que interessa é treinar situações de jogo. Ouviram dizer estas coisas e agora repetem-nas, crendo-se diferentes.

Antes de prosseguir, queria deixar claro que a metodologia de treino é apenas um ingrediente e não tem o peso que estes fanáticos pretendem que tenha. Acho que, em teoria, há coisas que mais facilmente se adquirem treinando segundo a periodização táctica, mas acho também que há riscos enormes que dificilmente os fanáticos saberão acautelar. Agora, o que me parece importante referir é que se trata apenas de uma metodologia, ou seja, da maneira como se educa uma equipa. A conversa sobre metodologias centra-se no "como". Mais importante que essa conversa é uma que se centre no "quê". Um treinador que ache que a melhor maneira de chegar à baliza adversária é através da solicitação do seu ponta-de-lança de dois metros, utilizando um jogo directo, pode ser o melhor do mundo a operacionalizar treinos em periodização táctica, mas nunca será um grande treinador. É o melhor do mundo apenas a ensinar certos comportamentos à sua equipa. Falta saber se esses são os comportamentos que mais interessam à equipa. Treinar em periodização táctica não significa, por isso, treinar bem. Significa apenas treinar de modo diferente. Jaime Pacheco, se de repente aderisse à periodização táctica, continuaria a ser Jaime Pacheco. Continuaria a dar preferência ao músculo, embora agora não desse sovas aos seus jogadores e os pusesse antes a entrar duro uns sobre os outros, em exercícios com situações de jogo. E continuaria a ser um treinador sem ideias. A conversa abstracta sobre metodologia, por isso, é uma conversa frívola. O que interessa são as ideias. Se as houver, depressa se perceberá quais os melhores exercícios para as pôr em prática.

Dito isto, acho que o treino analítico, puro e duro, tem os dias contados. Por treino analítico entendo treino que divida as componentes física, técnica, táctica e psicológica e que as ministre separadamente. O treino analítico entende, por exemplo, que a componente táctica se subordina às componentes física e técnica, sendo por isso necessário preparar os atletas fisicamente e tecnicamente para que possam depois adquirir preparação táctica. Não acredito nisto porque acho que o jogo é específico e a melhor preparação é aquela que tem em conta todas as componentes em simultâneo. Não significa isto que não possam nem devam haver exercícios descontextualizados, que não deva haver trabalho adicional de ginásio, etc. O treino deve-se centrar sobre o comportamento, a decisão (e isso é tão táctico quanto técnico, físico e psicológico), mas não tem necessariamente de ser exclusivamente contextualizado. Ou seja, um exercício de posse de bola descontextualizado, sem as referências da situação de jogo, como sejam a baliza e o posicionamento relativo dos colegas, tem potencialidades que o melhor exercício de posse de bola contextualizado não tem: potencia situações imprevistas e obriga os jogadores a arranjar soluções inovadoras, estimulando por isso a criatividade e não forçando habituações excessivas. Do meu ponto de vista, o que é mais importante é educar o comportamento dos jogadores, obrigá-los a pensar e a descobrir por si quais as melhores soluções para cada lance. A periodização táctica pode funcionar, sobretudo para algumas coisas, mas pode também dificultar essa educação. É sobre as benefícios e os malefícios deste tipo de treino que pretendo falar em seguida.

Benefícios

Não vou falar de benefícios gerais, pois esses parecem-me conceptualmente errados. Dizer que a especificidade da periodização táctica é melhor do que a falta de especificidade do treino analítico não quer dizer nada e carece de explicação. A especificidade, a meu ver, é útil para certas coisas, mas prejudicial noutras. Vou antes referir aspectos em que me parece que a metodologia da periodização táctica pode potenciar a aprendizagem. Uma vez que o treino assenta sobre comportamentos, são os comportamentos colectivos que esta metodologia mais pode potenciar. Por exemplo, operacionalizar uma defesa à zona que tenha por referências a posição da bola, a baliza e o posicionamento dos colegas tem tudo a ganhar se trabalhado de um modo estritamente contextualizado. Aliás, algo que requer tanta coordenação entre tantos elementos só pode funcionar plenamente se trabalhado de modo contextualizado. Trabalhar a defesa à zona, porque se trata de um comportamento colectivo, é um dos benefícios da periodização táctica. Os atletas adquirirão rotinas de posicionamento e comportamento que dificilmente adquiririam sem o treino específico. O mesmo se passa em situações de transição defensiva e ofensiva. Uma equipa pretende que, no momento da recuperação de bola, o avançado se desloque do centro para a direita e que a bola seja posta nesse local para se iniciar a transição. O treino específico e contextualizado irá potenciar essa aprendizagem. Em suma, a metodologia da periodização táctica é benéfica para todo o comportamento colectivo que requeira repetição e sistematização. Mas nem tudo em futebol requer repetição e nem sempre a sistematização é benéfica.

Malefícios

Uma das principais críticas à periodização táctica consiste em defender que uma metodologia que se baseia na repetição de estímulos atrofia a criatividade e a capacidade de improvisação do atleta. Acho a crítica injusta porque aquilo que se pretende não é que o atleta se comporte sempre da mesma maneira, mas que a equipa tenha comportamentos padronizados. Isto é, a periodização táctica serve para criar hábitos nos comportamentos colectivos, não nos comportamentos individuais. Serve para criar soluções colectivas sistemáticas e para oferecer, por sistema, as mesmas várias soluções ao portador da bola, não para obrigar o portador da bola a decidir sempre da mesma maneira. Isto não implica que isto não seja um perigo. E tenho sérias dúvidas que a maioria dos treinadores entenda esta ténue diferença. A periodização táctica, para muitos, serve para cultivar o estímulo que entendem ser o mais correcto em cada atleta. Com isso, atrofiam-lhe a capacidade de decisão. Um dos malefícios, portanto, da periodização táctica, está no facto de a especificidade poder travar a criatividade. Mas há mais. Acho a crítica acima injusta, mas acho também que há um lado da mesma que interessa ter em atenção. O comportamento colectivo, em futebol, depende de duas coisas: do comportamento de cada um dos elementos desse colectivo e da relação entre cada um desses elementos. A periodização táctica é especialmente útil para melhorar este segundo ponto, a relação entre os elementos do colectivo, mas é insuficiente ou até prejudicial no que diz respeito ao comportamento individual. A periodização táctica preocupa-se excessivamente com a abstracção do colectivo, esquecendo que o colectivo, em futebol, tem esta dupla dimensão. Só entendendo o treino colectivo nesta dupla dimensão, como treino de indivíduos e treino de relações entre indivíduos, se pode extrair o máximo de uma equipa. Se, por um lado, a periodização táctica pode ter o condão de aperfeiçoar mais facilmente a coordenação colectiva, ou seja, de melhorar com mais facilidade a relação entre indíviduos, devendo por isso ser adoptada em exercícios cujo objectivo seja afinar essa relação (defesa à zona, pressing, situações de transição, bolas paradas, etc.), tem por outro lado o problema de tornar demasiado específico o comportamento individual. É por isso que as equipas que trabalham em periodização táctica são, normalmente, mais organizadas, mas também equipas com menos capacidade de improviso, demasiado específicas. Assim é porque o treino a que estão sujeitas assenta na repetição e na sistematização, o que, como expliquei, acarreta virtudes e defeitos. Depois, há ainda o problema adicional de cultivar certos comportamentos num jogador, mas não cultivar nele a necessidade desses comportamentos. Um dos maiores problemas de quem trabalha em periodização táctica, a meu ver, tem a ver com o grau de consciência com que os atletas repetem as suas acções. Na minha opinião, sistematizar comportamentos só tem verdadeiro interesse se, ao mesmo tempo, for ensinado ao jogador o porquê de, em determinadas acções, fazer aquilo para o qual está a ser preparado. Percebendo a razão pela qual se deve comportar de tal maneira, mais facilmente o jogador adquirirá o comportamento correcto e melhor preparado estará para a imprevisibilidade do jogo. Ora, tenho sérias dúvidas que a grande maioria dos treinadores que trabalham em periodização táctica tenha competência para fazer perceber aos jogadores o porquê dos comportamentos que lhes são exigidos. E essa será uma das razões principais para o atrofio da criatividade e da capacidade de improvisação a que muitas dessas equipas acabam por ficar sujeitas. Há ainda outros riscos no uso desta metodologia, embora menores, em meu entender. É comum dizer-se que, não se treinando especificamente competências físicas e técnicas, não é possível, ou é difícil, que os atletas adquiram os requisitos físicos e técnicos de que necessitam. Ora, creio que compete ao treinador exigir o máximo em cada exercício e estar atento à execução do mesmo. Se assim for, o treino específico prepará fisicamente tão bem ou melhor os atletas quanto o treino analítico.

Para finalizar, gostaria de dizer que, em tempos, também eu fui traído pelo equívoco que esta conversa inútil implica. No rescaldo do fenómeno Mourinho, fui levado a acreditar que a capacidade de explicar certas coisas e a capacidade de perceber como fazer com que a equipa sistematize comportamentos eram sintomas de qualidades de treinador. Sei hoje que não é assim. Carlos Carvalhal será um dos melhores exemplos. Em tempos, por ter lido a sua tese de licenciatura e por ter percebido que tinha certas competências técnicas, acreditei que era um grande treinador. Não é. É um treinador mediano, que sabe trabalhar bem e potenciar ao máximo certos aspectos de uma equipa, mas que carece de uma compreensão do jogo que se distinga de outros treinadores. Vítor Pontes é outro exemplo. Estes treinadores conseguem, por norma, que as suas equipas sejam defensivamente organizadas, e que tenham as transições minimamente trabalhadas. Mas isso é tão pouco que não chega para fazer a diferença. Lá está, são pessoas que são capazes de tirar o melhor do método em que trabalham, mas que não são capazes de escapar aos perigos que o método acarreta. Por norma, as suas equipas são pouquíssimo criativas. Carlos Azenha é outro dos treinadores modernos a que este texto se dirige. E talvez seja aquele que melhor exemplifica a inutilidade desta conversa. Trata-se de um treinador académico, que parece ter conhecimentos teóricos diferentes, mas que é tão mau ou pior do que qualquer outro treinador medíocre. A curta passagem de José Guilherme pela Académica poderia também servir como exemplo.

Como disse acima, a conversa que se centra no "como" é conversa da treta. Privilegiar uma determinada metodologia de trabalho em detrimento de outra é apenas um pequeno aspecto a considerar nas competências gerais de um treinador, um aspecto tão relevante como, por exemplo, o sistema táctico preferido. Há várias fórmulas para chegar ao sucesso e, não obstante considerar que a periodização táctica tenha virtudes, optar por ela em vez de uma metodologia tradicional não significa praticamente nada. Aliás, não se percebendo certas coisas bem mais importantes acerca do jogo, diria mesmo que essa opção é absolutamente irrelevante. Não percebendo, por exemplo, a importância de ter os sectores sempre juntos, em todos os momentos do jogo, a importância das coberturas defensivas e ofensivas, a importância da tomada de decisão no cômputo geral das acções individuais, etc., diria que pouco importa ser o melhor do mundo a perceber como é que se pode fazer com que os atletas adquiram certos comportamentos. Pensar, por isso, que existe uma espécie moderna de treinadores que está mais capacitada que a espécie antiga, e que a diferença de espécie se explica pela conjuntura teórica em que esses treinadores foram formados, é uma forma errada de pensar. Não existe diferença de espécie nenhuma. Existem treinadores competentes, treinadores mais ou menos competentes e treinadores incompetentes. E a competência não é algo que se adquira por se pertencer a uma determinada espécie e não a outra.