sexta-feira, 21 de agosto de 2009

O Incrivelmente Ridículo Hulk

Tem vindo a crescer, com a importância dada a Hulk no Porto, a indignação contra a forma como o futebol do brasileiro não é protegido pela arbitragem. Começou com a frase importada de uma situação passada com Mantorras, "Deixem jogar o Hulk!", e culminou com a crítica à expulsão do brasileiro na primeira jornada da Liga. Não vi as imagens do primeiro amarelo, por isso não sei com que justiça o viu. Já o segundo é bem mostrado e o único culpado da sua exibição é o próprio Hulk. Não me vou deter, porém, neste jogo e nesta expulsão. Interessa-me, isso sim, debater os protestos de Hulk e de Jesualdo Ferreira, as alegações de que o futebol de Hulk deve ser protegido.

Em primeiro lugar, o árbitro não tem que proteger ninguém. Um árbitro deve ser isento e não a Madre Teresa de Calcutá. A única coisa que tem de fazer é aplicar leis. A aplicação correcta das leis encarregar-se-á de proteger quem tem de ser protegido. Assim, os jogadores mais imaginativos, tecnicamente mais dotados, de drible curto, capazes de esconder melhor a bola, serão sempre mais protegidos, porque serão inevitavelmente travados pela força ou pela transgressão das leis. Uma boa arbitragem protegerá assim, por consequência da aplicação das regras de futebol e não por qualquer diligência de índole caridosa, aqueles que merecem ser protegidos, aqueles que não têm outros argumentos além dos futebolísticos. Ora, não é, de todo, o caso de Hulk. É aqui que começa o ridículo da questão.

Ao contrário do que se pensa e do que se afirma em praça pública, com pompa e orgulho de gente pobre, o futebol não é um jogo de contacto. Muitos dirão que futebol não é basquetebol e que pode haver contacto. A resposta a estes é simples: vão às leis! A única carga permitida é a carga de ombro. E porquê? Porque é uma carga em condições iguais, assente numa superfície de corpo idêntica e em condições de equilíbrio semelhantes. Tirando a carga de ombro, todo o contacto que, de algum modo, perturbe o equilíbrio do jogador em posse da bola deve ser punido. Quem disser o contrário, não sabe o que é futebol. Não implica isto que não possa haver contactos, que um defesa não possa tocar no avançado, que não se possa encostar nele. Pode, evidentemente. O que não pode é usar esse contacto para ganhar vantagem na discussão pela bola; não pode desequilibrar minimamente o adversário para que este execute deficientemente; não pode agarrá-lo minimamente para que perca tempo de execução; não pode, em suma, fazer nada que não seja tentar recuperar a bola. Os melhores defesas são precisamente aqueles que não fazem uso do choque, são os que têm melhor tempo de desarme, os que são mais velozes e perspicazes a ganhar posição, os que percebem mais rapidamente as intenções do adversário, os que se conseguem antecipar melhor, os que lêem melhor as possibilidades de êxito das suas acções.

Aquilo que não se percebe em relação ao contacto é que ele não é uma possibilidade em futebol; é tão-somente uma consequência. Não é permitido usar o contacto físico para ganhar posição ou para ganhar qualquer tipo de vantagem. No entanto, há e deve haver contacto. Mas apenas como uma consequência natural de uma luta saudável pela melhor posição. Para dar um exemplo concreto, dois adversários acorrem a uma bola e um deles acaba por ocupar a melhor posição em primeiro lugar. É natural que, dada a proximidade dos dois, aconteça um contacto entre eles, mas esse contacto é consequência dessa disputa de bola. Em momento algum o contacto deve ser utilizado para ganhar vantagem na disputa da bola. É - repito - apenas uma consequência natural dessa disputa. Logo, todo o contacto que não seja resultado de uma consequência natural deve ser punido.

Isto não vale apenas para os defesas. É também para os atacantes. Em diversos momentos, numa disputa entre um atacante e um defesa, o defesa consegue ocupar a melhor posição face à bola. Se o atacante usar o contacto para recuperar essa posição e manter a posse de bola, deve ser punido tal como um defesa que use o contacto para ganhar posição o deve. É aqui que entra o futebol de Hulk. Hulk, pelas suas características, não é um jogador de drible curto e não tem uma capacidade extraordinária para proteger e esconder a bola. As suas virtudes são a velocidade e a força física. Consegue evitar os adversários muito mais graças às suas capacidades atléticas do que à sua capacidade técnica. Não é, por isso, um jogador que evite o choque. Ele é até uma das suas maiores armas. Assim sendo, a principal razão para que as suas lamentações não façam qualquer sentido é que aquilo de que se queixa é precisamente aquilo que lhe permite ser o que é.

Hulk queixa-se que os defesas não o deixam jogar quando é ele quem, pelo seu estilo de jogo, promove o contacto, quando é ele quem precisa dos duelos físicos para impor o seu futebol. Queria o quê? Que saíssem da frente e não o perturbassem? O futebol é um jogo para futebolistas, não para camiões TIR. Para progredir individualmente com a bola não basta metê-la para a frente e passar por cima de quem se coloca no meio do caminho. Hulk queixa-se também que os árbitros lhe assinalam muitas faltas. Maior parte delas são, de facto, falta. Mais uma vez, parece que queria que fossem criadas leis especiais em que só era falta quando fosse cometida sobre ele. Resulta disto que Hulk me parece não ter noção de quão ridículo é. O seu futebol vive da força e não me parece que o consiga perceber. Julga-se Maradona, certamente. Mas tem pouco a ver com o astro argentino. É que esse levava porrada porque saía do meio de três adversários com a bola controlada sem lhes tocar. Hulk sai do meio de três adversários pondo a bola para o lado e correndo ou deitando-os abaixo. O seu futebol vive da força e precisa até dela. Como tal, maior parte dos lances são disputados no máximo, sendo por isso muitas vezes impossível fugir ao contacto. É natural, por isso, que cometa muitas faltas, porque joga no limite, e que muitas vezes vá ao chão, porque tenta furar, sem arte, por onde nem Maradona se atreveria a passar. A única protecção de que Hulk necessita, portanto, é a de poder passar a entrar em campo conduzindo um carro blindado. Seria certamente mais difícil derrubá-lo.

Se o incrível Hulk me parece incrivelmente ridículo ao julgar que não o deixam jogar, já Jesualdo me parece desonesto. Fala em "falta de coragem para aplicar as leis" e imagina que Hulk esteja mesmo a ser prejudicado. O que queria Jesualdo? Que os adversários se pusessem em fila e abrissem o mais possível a defesa para não incomodar o brasileiro. O futebol não é um jogo de contacto, mas um jogo de posição. Os defesas têm por competência ocupar, a cada instante, a melhor posição possível de modo a vedar o caminho da baliza ao adversário. Se, por acaso, o adversário tem um tipo de futebol que consiste em tentar passar por cima dos outros, os defesas não têm a culpa. Ainda não vi nenhuma entrada à margem das leis sobre Hulk que não tivesse sido punida condignamente, ainda não vi entradas para aleijar sobre o brasileiro, ainda não vi nada que não fosse a normal função de um defesa. Hulk é que julga que é um comboio. E Jesualdo ajuda, fazendo "Puh-puh, pouca terra, pouca terra..."

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Elogio a Paulo Bento

Nos primeiros anos como técnico leonino, Paulo Bento iludiu como treinador: personalidade, coragem e uma primeira época (de raiz) em que, para além de ter vencido a Taça e lutado pelo campeonato até ao último minuto, a equipa jogava bem (não dava "show" como o Sporting de 2004/2005, mas apresentava um futebol mais equilibrado, que lhe permitiu, aliás, bater-se de igual com os grandes da Europa). Na Champions, o único resultado verdadeiramente decepcionante foi a derrota, em casa, num jogo em que tudo correu mal aos leões, contra o Spartak; nos confrontos com o Bayern e o Inter, cujos resultados, nos quais saiu derrotado pela margem miníma, não espelharam a qualidade demonstrada pelo conjunto leonino (sendo que, contra os bávaros, o conjunto orientado por Bento só não saiu vitorioso de um desses jogos por manifesta infelicidade).

No entanto, existiam alguns pormenores que, para o Entre Dez, eram incompreensíveis: a insistência num jogador como Liedson, o "abrir mão" de um jogador como Deivid, a aposta (demasiado) tímida em Pontus Farnerud, o esquecimento a que vetou um talento como Diogo Tavares, etc. Tudo isto eram pontos negativos mas, tendo em conta os outros factores, aparentemente positivos, o saldo da balança na apreciação ao treinador era, à partida, extremamente positivo.

Na segunda época, os equívocos continuaram, se bem que misturados com opções que eram, aparentemente, sinónimo de estarmos perante a solução ideal para um clube como o Sporting: se a opção por Gladstone não dizia nada de bom deste treinador, já a chamada de Paulo Renato e Pereirinha, a meio da época, parecia uma demonstração de que Bento prentendia tirar todo o proveito dos produtos da academia de Alcochete. Já a opção por Purovic e a justificação para a mesma, a necessidade de ter um jogador diferente para poder abordar de uma forma mais directa alguns adversários durante os jogos, até se poderia entender, com alguma boa vontade, como um raciocínio inteligente, uma forma dinâmica de ler as várias dificuldades com que uma equipa como o Sporting, muito provavelmente, se iria deparar. Mas nada disso fazia sentido. Mais do que isso, demonstrava de forma dissimulada, é certo, uma tendência para abdicar de uma das maiores virtudes do Sporting2006/2007: a qualidade (e quantidade) na posse e circulação da bola. O Sporting, na época 2007/2008, passou a jogar com uma maior ansiedade na procura do golo, tentando chegar mais rápido à baliza adversária, e isto à custa de um posicionamento mais largo da equipa no campo. O Sporting apresentou-se com os sectores mais afastados tanto em largura como em profundidade. Este facto veio promover uma maior dependência das acções individuais por parte dos seus jogadores. Com um futebol mais partido, a formação leonina passou a sentir, progressivamente, grandes dificuldades perante equipas que optassem por dividir o jogo contra os comandados de Bento: por não se remeterem a uma estratégia essencialmente defensiva (em alguns casa até acontecia exactamente o contrário) conseguiam exponenciar as debilidades que o "novo" modelo de Bento apresentava. Esta época foi ainda uma época que ficou marcada pelo reforço da equipa sportinguista por uma das maiores promessas dos ultimos anos: Bruno Pereirinha. As primeiras aparições de Bruno Pereirinha não me desiludiram em nada. Antes pelo contrário, apresentou maturidade e concentração, virtudes que, aliadas à inteligência que possuía e aos atributos físicos e técnicos que já havia demonstrado ao serviço quer dos juniores, quer do Olivais e Moscavide, indicava que a breve prazo o mundo se iria surpreender com mais um grande talento leonino. No entanto, nada disto se confirmou. A época leonina não confirmou tudo o que de bom a anterior tinha prometido e nem o facto de a equipa se cruzar perante adversários de inesquestionável menor valia lhe permitiu alcançar resultados de destaque nas competições europeias. Nas competições internas, salvou-se a conquista (de mais uma) Taça de Portugal, com o mais improvável dos heróis, visto que no campeonato as reais hipóteses de o Sporting lutar pelo título ficaram afastadas muito antes do térmito deste.

A terceira época de Bento foi apenas o corolário de todos os erros que o caminho pelo qual optara necessariamente implicaria: 442 clássico, sectores ainda mais afastados, a opção por jogadores que privilegiam o jogo directo, decréscimo acentuado da qualidade de jogo e das reais hipóteses de o Sporting se assumir candidato ao que quer que seja. Uma época patética sem nível, de constantes humilhações, em que até os seus jogadores entraram numa fase de regressão. Moutinho estagnou, e quem o viu no primeiro ano, com Peseiro, decerto não imaginava que continuasse, por esta altura, a um nível semelhante; Veloso, entre conflitos, e um modelo de jogo que não lhe permite evoluir na compreensão do jogo, perdeu todo o brilho que ostentava na sua época de estreia ao mais alto nível; Djálo, um jogador que se apresentou como um jogador com mais do que apenas velocidade, na companhia de um jogador como Liedson, que pretende resolver tudo sozinho em vez de procurar o colectivo, está cada vez mais parecido com o Levezinho, mas sem o capital de confiança que este tem; Pereirinha é o pior caso: ultimamente até na capacidade de decisão parece ter regredido, ja para não falar na gritante falta de confiança de que padece; Adrien, apesar da forte personalidade e de toda a qualidade que possui, vê-se privado de oportunidades devido a uma anedota como é o caso de Rochemback; Patrício será o único que se poderá sentir grato a Bento: apesar de se poder discutir se, por esta altura, Patrício beneficiaria se tivesse sido emprestado nos seus primeiros anos como sénior, a verdade é que a aposta de Bento, lentamente, começa a surtir efeito; Daniel Carriço, apesar de a grande generalidade das pessoas lhe reconhecerem muita qualidade e uma enorme importância na defesa leonina, não vê ser "explorada" toda a sua qualidade, nomeadamente no que toca à sua competência a sair a jogar; André Marques é talvez o que menos se ressente, mas a época ainda agora começou, por isso, ou algo de extraordinário altera a perspectiva de Bento, ou ainda vamos ver um André bem pior do que já vimos.

Finalizando: o caminho de Bento vai de encontro à maioria dos adeptos do futebol em geral e do Sporting em particular. Admito que, pela perspectiva que eles têm do futebol, vendo-o como um desporto que depende de uma série de desempenhos individuais que se vão somando aleatoriamente, o clube de Alvalade até nem está assim tão bem como isso. Mas se o enfoque do treinador se colocasse sobre a capacidade de os seus jogadores se relacionarem e combinarem a sua interpretação do jogo de forma una e colectiva, aí o clube de Alvalade seria dos mais fortes a nível Europeu. Não teríamos Liedson, Rochemback, etc., e teríamos de ter Farnerud, Romagnoli, Custódio, Hugo Viana, etc., o que para o adepto comum seria motivo de um tristeza inefável. O Sporting, porém, encontrar-se-ia neste momento perante um futuro (e provavelmente um passado recente) bem mais próspero.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Defeso, Pré-Época, Novidades, Trafulhices e Mau Jornalismo

1. Lisandro e Lucho foram embora e com eles a capacidade de o Porto ser imprevisível. Agora sim, que ruíu o que restava do legado que Jesualdo encontrou quando chegou ao Porto, o treinador portista terá um teste a valer. Perder Lucho e Lisandro num ano não é o mesmo que perder Pepe, Paulo Assunção ou Quaresma. Lucho e Lisandro eram o motor da equipa, os jogadores mais importantes no desenvolvimente ofensivo do modelo e os principais responsáveis por o Porto não ser apenas a equipa rectilínea de transições velozes que Jesualdo pretende. Lucho e Lisandro conferiam ao modelo imprevisibilidade, espontaneidade, inteligência, variedade. Sem eles, o Porto não será só menos forte na soma das individualidades; será sobretudo menos forte colectivamente, pois eram os elementos que tornavam o colectivo de Jesualdo, reduzido a movimentações rápidas e previsíveis, numa equipa menos vertical, menos refém das transições. Arrisco mesmo a dizer que, tirando um ano em que Quaresma foi determinante individualmente, muito do que Jesualdo conquistou se deveu à possibilidade de contar com estes dois jogadores. Sem eles, a história será outra.

2. Para já, pelo início de temporada, mantém-se a impressão de que Jesualdo não sabe contratar. Falcão e Valeri serão jogadores a rever, mas parecem-me pouco capazes de fazer esquecer os dois argentinos que viajaram para França, sobretudo naquilo que de colectivo estes podiam oferecer. Quanto a Belluschi, aprecio algumas das suas qualidades, embora fique muito a dever, por exemplo, aos criativos dos rivais. O problema é que me parece que o argentino não tem nada a ver com o modelo de Jesualdo. E, ao contrário do que dizem, Jesualdo não adapta o modelo às características dos jogadores que tem. O modelo é rígido e só na frente conhece algumas variações. Tirando os três atacantes, que pelas suas características podem movimentar-se de forma diferente, do meio-campo para trás Jesualdo é inflexível. É por isso que jogadores menos tácticos e de toque mais curto, capazes de desequilibrar em espaços mais curtos, mas menos frios a jogar, têm poucas possibilidades de vingar. Veja-se os casos de Leandro Lima ou de Luis Aguiar. No modelo de Jesualdo, não há espaço para verdadeiros criativos. Os seus médios têm de ser competentes em transição, agressivos, capazes de definir com velocidade. Belluschi, por isso, terá dificuldades para se impor, uma vez que não é um jogador para um futebol tão veloz e objectivo como pretende Jesualdo. Quanto às restantes contratações, Álvaro Pereira é suficientemente bom para ser titular e dar alguma qualidade ao lado esquerdo da defesa. Mas Varela e Miguel Lopes são anedotas. Se pensarmos em Guarín, em Tomás Costa, em Kazmierczak, em Nélson Benitez e em tantos outros, vemos que Jesualdo, ao longo destas épocas, contratou essencialmente mal. Analisando concretamente, temos Rolando e Cissokho, que são jogadores razoáveis e que jogavam porque não tinham concorrência à altura, Fernando, que só encaixou na equipa porque não havia ninguém para o lugar e se conseguiu impor a Pelé e a Guarín, Rodriguez, que já tinha mostrado todo o seu valor no Benfica, e Hulk, que é um jogador que vale pelas suas qualidades individuais e que, por isso, não requer muita atenção. Jesualdo é competente na forma de trabalhar, mas é francamente fraco a avaliar jogadores e tem tido alguma sorte em poder contar com o poderio financeiro do clube.

3. Por falar nisso, para onde foi desta vez o Pelé? E, já agora, uma vez que era, a par do grande médio-centro formado no Guimarães, a grande estrela da selecção de sub-21 da altura, para onde vai também Manuel da Costa? Estes dois colossos continuam a sua descida vertiginosa em direcção ao esquecimento. O Entre Dez bem avisou...

4. Ainda no Porto, cheira-me que este ano o lema vai ser: "Passem ao Hulk que ele resolve..." O problema é mesmo que a única coisa que ele resolve fazer é não passar a ninguém e continuar a estragar jogadas de ataque. Se é verdade que as suas qualidades individuais poderão solucionar alguns problemas ofensivos, não é menos verdade que o Porto será menos equipa, será muito mais previsível e estará dependente da inspiração de um jogador. Será muito pouco... E será sobretudo a confirmação de que o modelo de Jesualdo se baseia nas individualidades e não no colectivo...

5. Por fim, o caso Cissokho. Vender Lucho e Lisandro pelas quantias conseguidas é normal. Vender Cissokho por 15 milhões é estupidamente absurdo. O senegalês é um jogador mediano, que soube ocupar um lugar para o qual não havia concorrência, mas que tem ainda muito a melhorar. Soube cumprir os princípios defensivos exemplarmente, apesar de um início um tanto ou quanto displicente, e valeu-se da sua melhor característica, a força. É um jogador capaz de ser regular, mas sobre o qual não antevejo um futuro brilhante que justifique um investimento tão arriscado quanto o do Lyon. Dito isto, não é possível esquecer todo o processo negocial. O Lyon foi a primeira equipa a mostrar interesse no jogador, mas não ia além dos 7 ou 8 milhões de euros, quantia muito mais consentânea com o valor e com o potencial de Cissokho. O Porto, procurando esticar a corda, ia adiando o negócio. E, de repente, aparece o Milan a oferecer o dobro pelo mesmo jogador. Ninguém com um mínimo de imaginação terá ficado indiferente a este brusco e peremptório interesse do Milan. A primeira coisa que pensei foi que isto era um esquema para que o Lyon decidisse oferecer a mesma quantia. Mas a verdade é que o negócio se consumou. Não querendo acreditar, imaginei ingenuamente que o jogador chumbaria nos testes médicos e voltaria ao Porto, valorizado por uma oferta que afinal não passara de um embuste para fazer crer a terceiros que o jogador tinha mercado e valia o dobro daquilo por que estava a ser pretendido. Quando saiu a primeira notícia sobre os testes médicos falhados, percebi que aquilo que pensara na forma de um gracejo, na forma de uma tentativa de justificar algo que me parecia absurdo, estava afinal bem próximo da realidade. Por coincidência, imaginara exactamente aquilo que veio a acontecer. As razões que me levaram a imaginar o sucedido não poderiam diferir, por certo, das razões que fizeram com que isso acontecesse de facto. Não tenho dúvidas que o interesse manifestado pelo Milan nos dias seguintes não foi mais do que uma forma de reforçar a ideia de que o clube italiano estivera mesmo interessado no lateral do Porto. E o Lyon acreditou. E aceitou pagar o dobro daquilo a que estava disposto. Qualquer pessoa dotada de bom senso perceberá que o Milan nunca esteve interessado em Cissokho. Além da desculpa esfarrapada dos dentes e da oferta repentina e descabida pelo jogador, razões suficientes para fazer desconfiar qualquer pessoa, a equipa italiana, depois de gorado o negócio, não procurou contratar outro lateral-esquerdo. Ora, estavam dispostos a dar 15 milhões de euros por um lateral e afinal nem sequer precisavam de laterais? Não faz sentido. É por demais evidente que o Milan e o Porto negociaram uma transferência fictícia de maneira a valorizar Cissokho para que o único e verdadeiro interessado no jogador, o Lyon, ficasse com a impressão de que havia emblemas dispostos a pagar 15 milhões e que o jogador talvez valesse assim tanto. Expus esta ideia ainda o Lyon não tinha avançado para a contratação de Cissokho, logo após o senegalês ser rejeitado pelo Milan, e houve quem achasse ridículo que um jogador que tinha chumbado nos testes médicos pudesse ficar valorizado. A mim, contudo, parece-me ridículo o contrário, tendo em conta que o jogador sempre esteve apto para jogar futebol. O interesse do Milan - repito - foi uma ficção, uma impostura, e teve a finalidade de impressionar e de acirrar o interesse do Lyon. Tendo em conta a actual conjuntura legal que envolve as negociações de atletas, este embuste, mais do que o reflexo da capacidade negocial dos dirigentes portistas, consiste numa actividade fraudulenta que merecia uma investigação cuidada.

6. O Sporting, ao contrário dos seus rivais, não contratou muito. Matías Fernandez, Saleiro e Caicedo renderam Romagnoli, Derlei e Tiuí. Não tenho nada contra a política financeira e desportiva do clube de Alvalade e acho até absurdo argumentar que tem menos meios que os rivais. Não tendo um poderio financeiro tão elevado, tem uma formação mais competente, o que compensa. E o valor do plantel, por causa disso, não se ressente. Aliás, o plantel leonino não é inferior ao do Porto, por exemplo. Desculpabilizar campeonatos mal conseguidos por incapacidade de competir com o Porto é ridículo. Revela um comportamento hipócrita e tacanho. Se o Sporting não tem conseguido competir com o Porto, é porque não tem sido tão competente. Afirmar que Paulo Bento tem feito o possível e repetir chavões como "sem ovos não se fazem omeletas" é uma atitude bem portuguesa que revela conformismo e servilismo. O Sporting tem argumentos tão ou mais válidos que os rivais, tem "ovos" de categoria com os quais pode fazer "omeletas" formidáveis. Quem pensa o contrário, engana-se.

7. Pela pré-época leonina, auguro uma época sombria. Paulo Bento tem perdido, gradualmente, as suas melhores características. O jogo do Sporting, agora, resume-se a um marasmo sem explicação. Não há motivação, não há alegria. E assim é difícil que haja vontade. O problema do Sporting - repito - é de liderança. Não tem a ver com liderança, porém, no sentido psicológico. Tem a ver com o saber extrair dos atletas o seu melhor, de ser capaz de puxar pela sua vaidade, pelo seu brio. E isso não se faz apenas com um discurso de líder. Faz-se sobretudo usando um modelo de jogo no qual os atletas ao seu dispor se sintam valorizados. No actual modelo, uma coisa feia, rectilínea, que tem por fim chegar à frente o mais depressa possível, que valoriza essencialmente a velocidade e a força física, que pretende jogar apenas pelas alas e não pelo meio, os virtuosos, os inteligentes, os criativos estão amordaçados. O Sporting é, dos três grandes, a equipa com mais jogadores cuja principal característica é a inteligência. Deveria aproveitar esse facto para praticar um futebol inteligente, de posse e circulação de bola, e não o contrário. Pratica um futebol de distrital, um futebol de equipa pequena. Por essa razão, os jogadores entram em campo com os colossos europeus a pensar que lhes são muito inferiores. Daí os desastres com o Bayern; daí o facto de jogadores como Pereirinha e Djaló permanecerem acanhados; daí a estagnação de Moutinho e Veloso; daí a pouca preponderância de Romagnoli e Matías Fernandez; daí a aparência de que Liedson é Deus.

8. As exibições com o Twente foram das piores que vi desde que Paulo Bento assumiu as rédeas da equipa. E não acredito que o Sporting melhore muito ao longo da época. Não acho Paulo Bento péssimo, mas neste momento é prejudicial ao Sporting. Enquanto não sair, a equipa não ganhará nada de importante, permanecerá amarrada a ideias que não podem vingar e os jogadores não evoluirão. Uma vez que a política do Sporting necessita da valorização dos seus activos, Paulo Bento já nem sequer é o homem certo à frente do leme. Os primeiros jogos do campeonato e a eliminatória com a Fiorentina deveriam servir para se reflectir sobre o futuro do Sporting, até porque, muito provavelmente, esses jogos comprometerão toda a temporada.

9. Liedson leva mais de 500 minutos sem marcar, não é? Isso dá o quê, 6 jogos? E Postiga foi o melhor marcador da equipa na pré-época, não foi? E quem é que Paulo Bento tirou para fazer entrar Caicedo, o rapaz que ainda não marcou um golo esta temporada e que não ganhou um lance durante o jogo, ou o melhor marcador da equipa na pré-temporada? É por haver estes tipo de indiscutíveis que há "azias" permanentes no balneário. É de todo irresponsável e errado censurar Miguel Veloso, Djaló ou Vukcevic por ficarem chateados por não jogar. A responsabilidade não é deles; é de Paulo Bento e das suas ideias preconcebidas.

10. No Benfica, nem tudo são rosas, apesar de o início de época ser auspicioso. A indefinição quanto ao guarda-redes titular, a incapacidade de se perceber que Sidnei é evidentemente o melhor central encarnado e que David Luiz, neste momento, não só não pode ser lateral como não tem lugar a central, as desconfianças em relação a Shaffer, o melhor defesa-esquerdo a actuar em Portugal, a discrepância entre o aplauso constante a Javi Garcia e o apupo permanente a Yebda, quando são jogadores de um nível idêntico, um melhor posicionalmente, outro mais ágil e agressivo e tecnicamente superior, a dificuldade que se adivinha em gerir expectativas quando há jogadores de estatuto idêntico que vão ficar necessariamente de fora (entre Carlos Martins, Ruben Amorim e Ramires só vai jogar um), o excesso de avançados, etc., são alguns dos problemas individuais que poderão comprometer a temporada. Há que ter em conta essas coisas no momento de elevar as expectativas.

11. Outro problema, para mim o principal em termos colectivos, está relacionado com o sistema táctico e com a abertura que se nota no meio-campo. O Benfica de Jesus, ao contrário do que tem sido apontado, não joga em 442 losango, mas sim em 4132, com Aimar a jogar na mesma linha dos interiores. Não sendo alas, estes dois homens jogam então necessariamente mais abertos do que num 442 losango, em que seriam responsáveis mais pelo trabalho interior do que pelo exterior. No Benfica de Jesus, esta amplitude permite à equipa maior largura, mais velocidade, mas compromete o centro do terreno e os apoios pelo miolo. Além de a ligação entre meio-campo e ataque não ser garantida com tanta facilidade, pois o 10 joga mais afastado da dianteira, o que afasta os sectores e prejudica necessariamente a pressão, a equipa perde ainda um apoio frontal, um homem a aparecer frequentemente no espaço entre linhas, tão útil no futebol moderno. Sem isso, o Benfica terá de ser constantemente dinâmico, terá de cair na vertigem de jogar sempre com uma intensidade elevadíssima e será incapaz de controlar o ritmo de jogo quando lhe convier que este seja mais pausado. O Benfica será, por isso, uma equipa muito dependente dos dois momentos de transição e aí terá de se defender com a sua capacidade posicional. Se o posicionamento de um médio-defensivo garante o equilíbrio em relação à defesa, é à frente dele e sobretudo ao lado que me parece que há espaços indevidos. Os interiores, sendo responsáveis pelo trabalho exterior, não estão constantemente a fechar no meio e isso, sobretudo em transição, pode ser fatal. Nesta pré-época, o principal problema defensivo do Benfica foi precisamente o espaço entre o médio-defensivo e os outros três médios, coisa que, não sendo corrigida, pode trazer amargos de boca nada agradáveis.

12. Escalpelizados os principais defeitos do Benfica de Jesus, resta uma palavra de apreço pelo futebol praticado, provavelmente o melhor nesta década para os lados da Luz. Considero o Benfica o principal candidato ao título esta época. Individualmente, tem um plantel fortíssimo. Colectivamente, tem o homem certo à frente do leme. E a concorrência parece bastante debilitada, seja o Porto pelo muito músculo e pouca cabeça, seja o Sporting pela incapacidade de compreender a força do seu plantel.

13. Para os detractores de Aimar, esta será uma época de poucas palavras. O argentino é o jogador mais talentoso do campeonato português e, inserido num modelo de jogo que potencia o verdadeiro talento, vai certamente encantar. A inteligência de Jesus começou a ser revelada no preciso momento em que reconheceu que Aimar era o jogador mais importante da equipa, entregando-lhe a batuta e construindo o resto em função da sua existência.

14. Aimar e Saviola formarão a dupla mais temível da Liga Portuguesa. A importância da relação entre dois ou mais jogadores costuma ser pouco valorizada. Já referi que essa era a principal arma do Porto nas últimas épocas e que Lisandro e Lucho se entendiam como ninguém. Agora que saíram de Portugal e que, no Sporting, Paulo Bento insiste em não aproveitar a capacidade intelectual dos seus jogadores para criar duplas ou triplas que se entendam muito bem, é no Benfica e nesta dupla de argentinos que reside o grupo de jogadores que melhor se entende no futebol português. É de assinalar a facilidade com que jogam um com o outro, caindo às vezes no exagero saudável de trocarem a bola entre si num espaço de três metros, enquanto os adversários andam à rabia.

15. Das restantes equipas da Liga, destaco Braga e Vitória de Guimarães, por me parecerem aquelas que reúnem melhores elementos a nível individual. Com Madrid, Possebon, Hugo Viana, Mossoró, Alan e Linz, Domingos Paciência está obrigado a fazer um grande trabalho. De igual modo, com Custódio, Desmarets, Nuno Assis, Rui Miguel, Jorge Gonçalves e Douglas, Nelo Vingada também não se poderá queixar de falta de qualidade do meio-campo para a frente. O Marítimo de Carlos Carvalhal, pela competência que lhe reconheço, terá também uma palavra a dizer no que diz respeito aos lugares europeus. Estou com alguma curiosidade para ver o que Jorge Costa fará neste regresso à primeira Liga, pelo que não sei até que ponto o Olhanense não será uma surpresa agradável. O Nacional é um clube estável e ocupará, por certo, posições confortáveis. O Vitória de Setúbal, a Naval, o Rio Ave, o Leiria, o Belenenses, o Paços, a Académica e o Leixões parecem-me as equipas mais débeis e prevejo que sairão deste grupo as duas despromovidas.

16. Em Inglaterra, o Manchester perdeu Ronaldo e Tevez de uma assentada. Vieram Owen e Valencia, o que deixa a equipa bastante inferiorizada. Poderá ser a época de explosão de Nani, mas creio que o reinado dos Red Devils estará ameaçado. Liverpool e Chelsea são, para mim, os principais favoritos à conquista do campeonato.

17. O Arsenal de Wenger reúne talento que nunca mais acaba, mas o sistema táctico manter-se-á o principal problema do treinador francês. As saídas de Adebayor e Touré não são graves, se pensarmos que há Fabregas, Rosicky, Nasri, Arshavin, Van Persie, Walcott, Eduardo e Carlos Vela, mas teriam de ser incluídos num modelo que os beneficiasse... Na rigidez de um 442 clássico, não há médios vocacionados para preencher tanto espaço, nem tantos criativos como Wenger tem ao seu dispor usufruem da liberdade que seria desejável.

18. O Manchester City contratou muito, mas mantém um treinador incompetente. Apesar de ter contratado bastante para o ataque, a defesa não está mal apetrechada. Zabaleta, Micah Richards, Kompany, Touré e Wayne Bridges deverão conferir qualidade ao sector. No meio-campo, há também alguns jogadores de qualidade, como Gareth Barry ou Martin Petrov. Mas Robinho, Santa Cruz, Adebayor e Tevez mereciam um treinador a sério.

19. Em Itália, continua a revolução de mentalidades. Ainda há muita gente que acredita que o futebol italiano é fechado, mas a verdade é cada vez menos condizente com esse preconceito. Há muito que o futebol italiano deixou de ser defensivo e este ano parece-me que se dá mais um passo rumo à desacreditação de tais ideias. Mourinho jogará de forma completamente diferente, pressionando provavelmente muito mais alto, e, contratando convenientemente para o meio-campo, terá equipa para lutar novamente pela Liga dos Campeões.

20. A Juventus será talvez o mais sério rival do Inter. Diego, Tiago, Camoranesi e Filipe Melo seriam as minhas escolhas para o meio-campo. Del Piero e Amauri constituíriam a dupla ofensiva. Não esquecer Giovinco, que este ano deverá aparecer em força.

21. O Milan de Leonardo parece-me estar um pouco abaixo da concorrência. A chegada de Huntelaar trará qualidade ao ataque, mas, pelo que pude ver na pré-época, os processos ofensivos passam muito por esperar que Ronaldinho esteja inspirado. Se Beckham regressar a Milão, como se diz, um 442 losango com Pirlo, Beckham, Seedorf, Ronaldinho, Huntelaar e Pato, bem trabalhado, seria demolidor.

22. Em Espanha, as contratações milionárias do Real Madrid fizeram furor. O Barcelona será novamente campeão e o resto é conversa.

23. Dispensar Huntelaar e Van der Vaart é uma palermice. Se acrescentarmos a esta lista a pouca vontade de Pellegrini em contar com Sneijder, Robben, Guti ou até mesmo Gago, parece-me evidente que o Real vai ser uma equipa de gente com músculos, mas sem muitas ideias. E duvido que Kaká consiga compensar tanta desorientação. Depois, contratar Granero, um jovem da cantera que regressou este ano do Getafe que pouco ou nada vai jogar e ceder o jovem Daniel Parejo, um jogador muito mais talentoso e com uma margem de progressão assombrosa, revela muito do que é este clube. Em resumo, o Real contratou em demasia e terá muitos problemas em formar uma equipa.

24. O Barcelona manteve a estrutura e contratou pouco e bem, como se recomenda. Não será por acaso que as duas contratações dos catalães, Maxwell e Ibrahimovic, passaram pelo Ajax. Também não é por acaso que Bruno Alves não foi para Barcelona e que Guardiola tenha optado por fazer regressar o central brasileiro Henrique. E também não é por acaso que o Barcelona se manterá como o mais forte candidato à vitória na Liga dos Campeões.

25. Para finalizar, um pequeno aparte sobre um momento da pré-época. Gosto de defender quem merece ser defendido e atacar quem merece ser atacado. Del Piero falhou um penalty na final da Peace Cup e a Juventus acabou por não ganhar a competição. Aos risos, que são naturais, juntou-se a estupidez de quem gosta de ser estúpido e falou-se em um dos piores penalties de sempre. A estupefacção tomou conta de mim. É verdade que Del Piero falhou, mas o penalty não foi mal marcado. Antes pelo contrário, Del Piero fez tudo o que o que deveria ter feito. Repare-se que ele modifica a corrida no momento anterior ao remate, tentando enganar o guarda-redes. Tecnicamente, não foi displicente. Ele sabia exactamente o que ia fazer e a sua ideia era fazer o guarda-redes cair para um lado e chutar para o meio. Aliemos a isto o facto de o guarda-redes, nas quatro penalidades anteriores, ter sempre tentado adivinhar o lado para onde o avançado ia chutar. Del Piero esteve certamente com atenção a isso. Sabia que o guarda-redes preferia adivinhar o lado e não haveria melhor forma de convertê-lo do que chutando para o meio da baliza. Tendo em conta que Del Piero raramente bate para o meio, o penalty foi até imprevisível. Por paradoxal que pareça, o guarda-redes defendeu a bola porque foi burro. E com a burrice dos outros é difícil de contar. Se o guarda-redes fosse inteligente, jamais decidiria ficar quieto. O que ele imaginou foi que Del Piero, por ser um craque, iria tentar bater à Panenka. Mas isso não é ser esperto. É ser burro. Porque Del Piero nunca bate à Panenka. Teve sorte e a bola bateu-lhe nos pés. Às vezes os burros têm sorte. E os comentadores, sem se darem ao trabalho de raciocinar, nem perceberam que o penalty foi bem batido, quer em termos de decisão, quer em termos técnicos, e que não houve displicência alguma. Houve sim sorte do guarda-redes. Catagolar um penalty bem batido que não deu golo porque o guarda-redes teve sorte como um dos piores penalties é uma doença grave. Ou então é aquele impulso de homem das cavernas de relatar factos surpreendentes aos outros, de contar histórias mirabolantes, como se conhecer tais histórias fizessem essas pessoas mais sábias, e que conduzem ao exagero de falar de coisas normais como se fossem coisas extraordinárias. Veja-se o que a redacção do Mais Futebol escreveu a seguir: "Curiosamente aquele não era mesmo o momento de Del Piero: para além de falhar o penalty, o internacional italiano falhou também a «recarga» - que de qualquer forma não ia valer, mas que fez em desespero de causa." Pois, o que o Del Piero queria era mesmo fazer a recarga. Claro. Nem estava irritado por não ter marcado nem nada. Ele queria mesmo era fazer a recarga... E chamam a isto jornalismo? Isto não é jornalismo; isto são bandalhos a dizer asneiras...

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

O que é um Lateral?

É já excessivamente sabido que, na concepção peculiar que temos do jogo por aqui, nenhum jogador, em nenhuma posição salvo talvez a de guarda-redes, tem funções específicas. Como concebemos uma equipa como um colectivo perfeito, toda e qualquer função deve ser do colectivo. A cada elemento do colectivo resta agir de acordo com a posição em que joga. Assim, ninguém tem a função de marcar golos, ou de pautar o jogo ofensivo da equipa, ou de recuperar bolas, ou de marcar adversários. Todas as funções são da responsabilidade do colectivo, entidade abstracta que consiste na relação entre os elementos que o compõem. Não estou a dizer com isto que essas funções devem ser alcançadas pela soma do esforço de cada um dos elementos. É mais do que isso. Devem-no ser pela própria relação entre os elementos. Perceber isto pode parecer simples, mas acredito que não é. Para dar um exemplo prático, sempre que se diz que o jogador mais criativo de uma equipa deve jogar mais recuado, em zonas de menor densidade, para poder pegar no jogo, comete-se necessariamente o erro de pensar que, por ser o jogador mais habilitado a conduzir os ataques da sua equipa, deve jogar onde o pode fazer com mais à-vontade. Discordo inteiramente disto. Isto é atribuir a esse jogador um determinado papel dentro do conjunto. Nenhum criativo deve ser responsável por assumir a condução do jogo ofensivo. Isso é tarefa do conjunto. Da mesma maneira, sempre que se diz que um jogador, em trabalho defensivo, deve ocupar uma determinada zona, está a atribuir-se a esse jogador a responsabilidade de vigiar uma zona específica. Não concordo com essa forma de defender. Nenhuma zona é da responsabilidade de ninguém, como nenhum adversário é da responsabilidade de ninguém. Defender à zona não tem nada a ver com cada jogador ter uma zona para vigiar. Tem a ver com relacionar-se correctamente com os colegas, com a bola, com a baliza e com o espaço.

Dados estes exemplos e tendo-se explicado sucintamente a ideia de nenhum jogador ter funções em campo, gostaria de partir para o caso particular dos laterais. Para muita gente, um lateral deve ter tarefas como subir pela faixa, cruzar, dobrar os centrais, etc. Não concordo com esta visão redutora da coisa. Um lateral, como outro jogador qualquer, tem por missão ocupar a sua posição e tomar a melhor decisão a cada momento. As suas tarefas são, pois, coisas gerais, que se pedem a todos os jogadores. A diferença está no facto de o seu espaço de acção não ser o mesmo. Assim, é a posição em relação aos colegas que é diferente. E é, portanto, o espaço geográfico que deve ocupar que determina o seu comportamento e não o contrário. Se é lateral, deve ser o último a fechar, na linha defensiva, quando a jogada se desenrola do lado contrário; deve ser ele a pressionar o portador da bola quando a jogada se desenrola do seu lado; deve servir de apoio recuado quando um colega tem a bola no seu flanco; deve dar profundidade quando a jogada se desenrola do lado contrário; etc. Ou seja, toda a sua acção é determinada não por ter tarefas específicas, mas por jogar numa posição que o obriga a agir de determinada maneira porque se relaciona de determinada maneira com o resto da equipa. Ora bem, assim sendo, um lateral competente tem pouco a ver com um jogador potente fisicamente que consiga percorrer quilómetros pela faixa, ou com um jogador muito dotado tecnicamente, ou com um jogador que saiba cruzar como ninguém. Um lateral competente será aquele que se relacionar bem com a equipa, com a estrutura em que está inserido; será aquele que souber ser um apoio recuado quando um companheiro tem a bola na faixa, à sua frente; será aquele que souber dar profundidade quando é necessário dá-la; será aquele que souber fechar no meio quando o adversário ataca pelo lado contrário ao seu; será aquele que souber ocupar espaços em rearranjos defensivos motivados pela deslocação de um colega em acção de pressão; e será sobretudo aquele que, com bola, melhor servir as intenções de posse e circulação de bola da equipa em acção ofensiva.

Sem querer menosprezar as preocupações defensivas de um jogador, é em acção ofensiva que me parece importante interpretar a qualidade de um jogador. Isto porque, numa equipa que queira mandar no jogo, que queira assumir as despesas da partida, maior parte do tempo será passado em acção ofensiva. No que diz respeito, portanto, a um lateral, parece-me fulcral não só a capacidade de se movimentar sem bola, fornecendo apoios ou explorando a profundidade, como principalmente aquilo que faz quando tem a bola nos pés. Se a ideia, numa equipa que quer mandar no jogo, passa por ter, em quantidade e em qualidade, a bola, todos os jogadores devem ter por princípio a acção de preservar a posse de bola. Assim, com bola, um lateral deve ter por principal prioridade o vir para dentro, o jogar no meio, o dar nos médios. Ao contrário da grande maioria dos laterais, que prefere jogar ao longo da linha (o que dificulta significativamente a recepção de bola e prejudica a preservação da mesma), o lateral competente é aquele que pouco ou nada joga pela linha, que prefere jogar curto no meio, num médio ou no trinco. Dessa forma, a equipa em posse vai a um lado, regressa ao meio, vai ao outro, regressa ao meio. E com isto obriga o adversário a oscilar, abrindo espaços para progredir. Os laterais, numa equipa que jogue assim, deverão, por isso, ter por principal acção jogar para dentro e não insistir pela linha. Um lateral que o faça recorrentemente será sempre mais competente, do ponto de vista ofensivo, do que um lateral possante, bom no drible, capaz de acções individuais notáveis. O que está aqui em jogo é a competência colectiva do lateral em contraste com a sua competência individual. Privilegiar a sua competência colectiva é o modo de manter a coerência quanto à inexistência de funções em cada jogador da equipa.

Recuperando as principais características daquilo que considero um lateral competente, temos que deve ser 1) sem bola, um jogador capaz de perceber o espaço que deve ocupar em função dos colegas, seja em acção defensiva a fazer coberturas ou em acção ofensiva a fornecer apoios ou a dar linhas de passe e 2) com bola, um jogador interessado em manter a posse de bola, um jogador que jogue curto e para o meio. Dito isto, é para mim absolutamente incompreensível a desconfiança generalizada em relação ao lateral esquerdo argentino do Benfica, Shaffer. Desde o primeiro jogo de pré-época que Shaffer me impressionou pela positiva. Além dos atributos técnicos inegáveis e de a cruzar ser, provavelmente, o melhor lateral que passou pelo campeonato português nos últimos cinco anos, Shaffer revela preocupações colectivas acertadas e possui essa virtude, tão rara actualmente, de ter por primeira opção jogar para dentro, para um médio que vem buscar ou para o trinco poder rodar o jogo. Sem bola, é também perfeito a dar profundidade pelo seu corredor e funciona muito bem como apoio recuado quando é preciso. É verdade que, em termos defensivos, ainda pode melhorar, mas não tenho dúvidas que é, talvez a par de Fucile, o melhor lateral em Portugal no que diz respeito à qualidade que confere à posse e circulação de bola da sua equipa.

Jorge Jesus parece não confiar no argentino, possivelmente por ser para ele imprescindível que o seu lateral seja perfeito a defender. Mas além de perder tudo o que de bom, em termos ofensivos, Shaffer pode dar, e que é muito, não me parece convincente que o exemplo seja David Luiz, que a defender, como lateral, é uma perfeita anedota. César Peixoto será, provavelmente, aquele que merecerá a confiança imediata de Jesus. Admiro muitíssimo o ex-bracarense e acho que pode ser uma mais-valia para o Benfica, mas tenho sérias dúvidas que consiga dar ao Benfica o mesmo que Shaffer dá (sem contar com o potencial de evolução do argentino). E, depois, resta ainda saber se, em acção defensiva fará assim tanta diferença. Até porque aquilo que falta a Shaffer (e que não é assim tão grave quanto se tem dito) é o mais fácil de corrigir, isto é, o seu comportamento sem bola, quando tem de dar atenção apenas ao movimento dos colegas e perceber a evolução defensiva da estrutura em que está inserido. Seria mais grave se faltasse a Shaffer perceber o que é correcto fazer quando se tem a bola, pois as variáveis são maiores. Mas nisso o argentino parece-me insuperável. Peixoto é um jogador mais vertical e as suas rotinas de jogo são as de um médio ou de um extremo. É pouco provável que, enquanto lateral, tenha a preocupação de jogar para dentro tão acentuada quanto Shaffer. E isso prejudicará necessariamente a posse de bola encarnada. Se esse prejuízo será decisivo ou não, logo se verá.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Sporting e a Formação: que Futuro?

Depois de ver o jogo entre o Barça "B" e a equipa principal do Tottenham pergunto-me sobre o que é que é preciso mais para se perceber que o Barcelona vale pela filosofia de jogo, pelo modelo implantado desde as camadas jovens, e não pelas individualidades (estas, e o respectivo desempenho, sim, são influenciadas pelo modelo implementado).

Neste jogo, vimos um Barcelona "mandão", que só não o venceu por manifesta infelicidade. Nomes como o de Montoya, Fontás, Victor Sanchez, Oriol, etc., não envergonharam em nada o campeão da Europa. E isto tudo porque existe uma grande afinidade e identificação com os mecanismos e padrões da equipa. Por isso, o Barça é a melhor escola do Mundo! Porque a formação catalã é contextualizada, eles formam jogadores para jogar na sua equipa principal e não nos seus adversários. Com isto quero dizer que os seus jogadores são "formatados" segundo as características da filosofia de jogo adoptada pelo clube, de tal forma que estes jogadores, muito provavelmente, só conseguem explorar todo o seu potencial no Barça.

Em Portugal muito se fala da formação do Sporting; se por um lado se admite que é a melhor em Portugal, por outro critica-se o facto de nos séniores não se utilizar o mesmo sistema táctico dos escalões de formação.

Realmente, devo admitir que deveria existir um padrão que servisse quer os esclões jovens, quer os séniores. Mas esse padrão deverá ir muito para lá do sistema táctico. Deverá compreender, também, o mesmo estilo e modelo de jogo. Isto permitiria ao clube, por um lado, executar uma selecção (e evolução) mais correcta dos seus jovens jogadores; por outro, facilitaria a introdução dos jovens talentos no plantel principal (fruto da identificação dos jogadores com o modelo que vão encontrar).

Assim, o Sporting não só não salvaguarda os interesses do seu maior activo, a formação, como não consegue evoluir no futebol sénior através da exploração do filão que tem na Academia. Promovendo ingressos de elementos juniores na equipa principal de forma anárquica, não consegue explorar todo o potencial dos jogadores que vão sendo formados.

Não existe um padrão e, por isso, tão depressa se forma jogadores como Diogo Tavares, Ricardo Nogueira, Carlos Saleiro, e outros como Silvestre Varela, Wilson Eduardo, André Cacito, etc. Se os primeiros são jogadores que se poderiam associar a grandes escolas como a do Ajax e Barcelona, devido à capacidade de perceber o jogo e ao facto de privilegiarem soluções colectivas, em detrimento das individuais, os jogadores do segundo grupo são exactamente o oposto: primitivos, o seu único proposito é explorar as suas caracteristicas físicas para o seu sucesso individual, relegando para segundo plano os movimentos colectivos.

Esta esquizofrenia não só é prejudicial para os elementos da formação leonina como impede que o aproveitamento desses elementos contribua, da melhor forma possível, para a evolução da equipa principal de Alvalade. E o Aurélio Pereira, infelizmente para o Sporting, não é eterno...