sexta-feira, 22 de outubro de 2010

A Falta de Confiança

A conversa da falta de confiança, em relação ao rendimento de um avançado, já chateia. Importa, porém, continuar a desmistificar ideias feitas e opiniões assentes em especulações infundadas. Mantenho aqui o que tenho vindo a defender há já algum tempo. A principal diferença, em termos de finalização, entre Postiga e Liedson, é o número de ocasiões de que os dois dispõe. O brasileiro, pelo tipo de movimentações que prefere, goza de muito mais oportunidades do que o português, que se preocupa com outras coisas além de aparecer nas zonas de finalização. Como tal, Liedson marca mais golos. Mas também falha mais. É estúpido dizer que Postiga é perdulário, que falha muitos golos, que tem um problema mental, que é maluco, etc. E é estúpido porque não é verdade. O que acontece é que, como tem menos oportunidades de golo, cada falhanço tem uma importância acrescida. Sempre que falha, então, é crucificado e dizem-se disparates sem fim. O que aconteceria se, apesar de falhar dois ou três golos num jogo, marcasse outros tantos? Ninguém se lembraria de maldizer a sua prestação, certamente.

Ora bem, de Liedson não se diz o mesmo que Postiga simplesmente porque, apesar de falhar tanto ou mais, e de forma tão ou mais clamorosa, marca com mais regularidade. Mas isso apenas porque tem mais oportunidades para fazê-lo. Em termos de percentagem de aproveitamento de oportunidades, Postiga não é de maneira nenhuma inferior a Liedson e não é de maneira nenhuma inferior a qualquer ponta-de-lança de créditos firmados. No passado jogo frente à Islândia, Postiga marcou um golo e falhou outro, no frente a frente com o guarda-redes. Muitos se apressaram a referir o falhanço como imperdoável. Mas a verdade é que marcou um golo em duas oportunidades, tendo nesse jogo um aproveitamento de 50%. Por que razão não se dizem as mesmas coisas de Liedson? É que, frente ao Gent, o avançado-deus marcou dois golos, sim, mas falhou três escandalosos, alguns de baliza totalmente aberta. Que dizer disto? Apesar dos dois golos, o aproveitamento de Liedson foi inferior ao de Postiga nesse jogo em que, tão depressa, se aprontaram a ver nele um problema qualquer. Será que Liedson também tem um problema de confiança? Será que é maluco, também? Neste mesmo jogo frente ao Gent, Postiga assistiu Salomão para o primeiro golo; foi ele quem recebeu a bola comprida, deixando-a à mercê de João Pereira, que assistiu Liedson para o segundo; foi ele quem arrastou a defesa e abriu o espaço por onde entrou Maniche no quarto golo; foi ele quem marcou o quinto. E não falhou clamorosamente nenhum golo, ao contrário do seu companheiro de sector que, para muitos, é exímio na finalização.

O objectivo deste texto é duplo. Em primeiro lugar, pôr em evidência a falácia que há em pensar que Liedson e Postiga diferem essencialmente pela capacidade de finalização, que no primeiro é boa e no segundo insatisfatória. Liedson marca mais e falha mais. E a razão por que tal acontece é porque é um tipo de jogador diferente, que usufrui de maior número de ocasiões de golo. O seu rendimento, de acordo com as ocasiões de que dispõe, não é superior ao de Postiga. O segundo objectivo é demonstrar que Postiga, além de não ser inferior a Liedson em termos de finalização, garante à equipa muito mais que o momento da finalização. E é esse excedente que o faz bem mais útil à equipa do que o brasileiro. Postiga não tem problema mental nenhum. É um avançado que, porque se preocupa com muitas coisas (servir de apoio frontal, apoiar os colegas à linha, tabelar, arrastar defesas sem bola, etc.) não consegue atacar as zonas de finalização com tanta frequência quanto um avançado que tenha por preocupação apenas os movimentos para finalizar. E, como tal, é um avançado que goza de poucas oportunidades para marcar, quando comparado com avançados de outro tipo. Assim, porque os adeptos são, tendencialmente, esquecidos, sempre que falha uma dessas ocasiões é assobiado e vêem nele alguém pouco concretizador. A verdade, contudo, é outra. E o seu rendimento, se tivermos em conta os golos que marca em função das oportunidades de que dispõe, e até superior ao de certos avançados que marcam mais golos. Assim se desmascaram falsas certezas.

sábado, 9 de outubro de 2010

Postiga

Comecemos por onde se deve começar: há poucos jogadores que me enchem as medidas, jogadores que me fazem assistir a um jogo apenas para, de entre 22 atletas e um jogo de futebol, me deliciar com aquilo que fazem em campo. Sei reconhecer qualidade, mas nem sempre conservo a disposição para ver os melhores do mundo jogar. Muitas vezes porque a sua competência deriva das suas qualidades físicas e atléticas. O verdadeiro requinte está no único atributo que não me canso de contemplar: a classe. E classe não é coisa que todos tenham. Pedro Barbosa era um jogador fenomenal porque transbordava classe. Fazia as coisas com uma calma, um auto-controlo e uma vaidade quase divinos. Como um toureiro. Alguém se lembra de um bósnio que jogou no Estrela da Amadora na década de 90 chamado Velic? Mal se mexia durante 90 minutos. Quando a bola vinha ter com ele, era preciso um batalhão para lha tirar. Enquanto não o conseguiam, fazia maldades atrás de maldades, sempre com uma calma e uma classe inusitadas. Jogava com a gola da camisola levantada, à Cantona, e tinha o cabelo rapado. É à qualidade que fazia com que Velic valesse o preço do bilhete que me refiro. Riquelme é, nos tempos que correm, o paradigma dessa virtude. Quando estes jogadores estão dentro de campo, parece que gozam com o mundo inteiro. Os fãs da intensidade jamais serão capazes de percebê-los e de aceitar que façam parte de uma equipa ambiciosa. A classe não se coaduna, para eles, com a competitividade. Estão, evidentemente, equivocados.

Na passada sexta-feira, preparava-me para mudar de canal ainda não ia o jogo da selecção a meio da segunda parte. Estava a ser um jogo aborrecido, mal jogado, com a selecção portuguesa concentrada, mas pouco clarividente, incapaz de criar situações de golo a não ser aproveitando os erros do adversário. Não me apetecia perder mais tempo com tal banalidade. Ainda que estivessem a jogar vários jogadores que admiro, nenhum me encanta como me encantavam Figo, Rui Costa, João Pinto, Paulo Sousa ou Pedro Barbosa. O futebol português pode hoje estar mais competitivo. Mas o que ganhou em competitividade perdeu em classe. Faltam hoje à selecção jogadores de classe, jogadores com capacidade para deslindar problemas complicados, para resolver situações de modos inesperados. As principais carências da selecção são a criatividade, a espontaneidade, a imprevisibilidade. Ronaldo e Nani podem estar entre os melhores do mundo, mas não são capazes de momentos de requinte. Quando percebi que Hélder Postiga ia entrar, detive-me e decidi continuar a ver o jogo. De repente, percebi que é dos poucos jogadores portugueses que tem a capacidade para me entreter e dos poucos que, por mais chato que esteja a ser o jogo, me consegue manter cativado. A razão é simples: é o último herdeiro de uma geração em que a classe abundava.

A classe é a habilidade de resolver problemas da maneira mais imprevista, fazendo a resolução parecer simples. Ronaldo pode ser o melhor jogador português da actualidade. Jamais o verão a resolver um problema difícil. Falta-lhe génio para isso. A sua qualidade vem do facto de aproveitar as suas características ao máximo e de potenciar as situações em que essas características podem fazer a diferença. Não tem, no entanto, criatividade para solucionar situações difíceis, situações em que precisa de pensar rápido e em que precisa de encontrar uma solução imprevista. Hélder Postiga pode não ser um jogador de topo. É, porém, o jogador mais genial desta selecção. Tivesse ele a capacidade, como tem Ronaldo, para potenciar as suas melhores características, e seria um dos melhores do mundo. Não a tendo, resta-lhe a esperança de estar incluído num colectivo que lhe potencie essa genialidade. Nos últimos anos, não tem tido essa sorte e a opinião pública desvalorizou-o. Felizmente, há sempre momentos num jogo em que essa qualidade vem ao de cima. Pode não ter, em termos gerais, tanta categoria quanto poderia ter, caso juntasse ao seu génio atributos físicos que lhe permitissem resolver jogos sozinho, mas, sempre que é solicitado, empresta uma qualidade que poucos conseguem emprestar. Num colectivo que privilegiasse a ideia de colectivo, que privilegiasse, portanto, o intelecto dos jogadores, Postiga seria enorme. Na mediocridade que grassa, é um patinho feio.

O que me agrada em Postiga é a sua cabeça, o seu modo de pensar. A forma como resolve os lances, encontrando invariavelmente não só a melhor solução, mas muitas vezes uma solução que poucos considerariam existir, é extraordinária. O "souplesse" com que o faz, a descontração com que executa, é que me deixa de boca aberta. E isto é o que ninguém vê, preocupados como estão em perceber se o rapaz transpira o suficiente, ou se marca muitos golos. Isto é que é formidável! Estivesse ele incluído numa estrutura que potenciasse esta virtude e todos lhe fariam largas vénias. Disse Mourinho dele, a propósito da final da Taça UEFA que não pôde jogar, que teria muitas finais na sua carreira. Enganou-se Mourinho! Não porque Postiga não tivesse a qualidade que Mourinho desde logo percebeu que tinha, mas porque as qualidades que Postiga desenvolveu não interessam à comum récua de treinadores e opinadores. A sua classe é assim arte apenas para os olhos de quem vê para além do que os números mostram. Lamento, portanto, a educação estética errada dos restantes.

Sobre ele há a teoria de que falha muitos golos. Por causa desta teoria, há a teoria de que falha muitos golos porque é mentalmente fraco e tem tendência para tremer nos momentos de decisão. É sobre isto que pretendo falar até ao fim. Não concordo com a teoria nem com a teoria sobre a teoria. E, se os próprios termos em que descrevo Postiga são verdadeiros, gera-se um paradoxo. Isto é, se Postiga é alguém com uma capacidade intelectual acima da média, se tem classe, se tem génio, se é capaz de fazer coisas difíceis e inesperadas, como é que pode ser também mentalmente instável? É um contrassenso. Significa isto que ou é falso que Postiga tenha a classe que digo ter, ou é falso que seja mentalmente fraco.

A teoria que defende que ele é mentalmente fraco procura justificar a sua pouca produção, no que diz respeito a golos, desse modo porque entende que a sua causa está na quantidade de golos falhados e não noutra coisa. O erro está em assumir que essa fraca produção advém do não aproveitamento de oportunidades de golo e não de outra causa diferente. Acontece que Postiga não falha assim tantos golos, não é perdulário ou displicente. como parecem crer. Por norma, é até muito frio na hora de finalizar. Vejam-se vários lances de finalização dele para se perceber isto. Veja-se o último jogo com o Beira-Mar e perceba-se que, em todos os lances em que não marcou golo, fez o que estava ao seu alcance para marcá-lo. Muitas vezes, o que acontece é que não goza de tantas oportunidades assim. Mas quando as tem, não treme. Dizer o contrário é simplesmente mentira. A sua fraca produção tem explicações diferentes. Tem a ver com as suas preocupações e não com problemas mentais. Postiga é fortíssimo, do ponto de vista mental. Tem um carácter fortíssimo, também. É vaidoso, fino, requintado. Gosta e consegue fazer coisas difíceis. À frente da baliza, raramente fecha os olhos e fuzila. Não é como Nuno Gomes, por exemplo, que tinha bastantes dificuldades, sobretudo a partir de uma dada altura na sua carreira, para finalizar lances fáceis. Postiga faz tudo com critério e é mais racional que a grande maioria dos jogadores de futebol. Como é que é possível alegar que é mentalmente fraco?

Aliás, esta moda de justificar o que não se consegue justificar recorrendo a factores emocionais já chateia. Sempre que não se consegue perceber oscilações de rendimento - e isto acontece sobretudo em avançados porque se associa o rendimento destes aos golos que marcam - justifica-se o mesmo com falta de confiança. Isso é um absurdo. A falta de confiança afecta os jogadores, obviamente, mas reduzir a produção de golos de um avançado à falta de confiança deste é uma patetice. Postiga não tem falta de confiança. Pode já tê-la tido, pontualmente, sobretudo quando sentiu que tinha de provar algo a alguém, mas não só isso não o afecta ou afectou sempre, de forma consistente, como jamais será a explicação mais correcta para marcar poucos golos. Postiga, para certas pessoas, tem um problema de finalização. Essas pessoas não só não sabem identificar causas de problemas e, por conseguinte, só são capazes de justificar essas coisas deste modo fácil, como não conseguem sequer perceber o próprio Postiga. Dizer tal coisa não faz o menor sentido. Postiga tem uma personalidade forte e não tem problema de finalização nenhum. Finaliza bem, tem critério, preocupa-se com o gesto técnico, preocupa-se em escolher um lado, em executar em conformidade com as necessidades do lance, etc. Simplesmente não é um avançado que goze de tantas oportunidades como um jogador clássico de área, e isto porque tem muitas outras preocupações para além das destes. Antes de teorizarem, certos teorizadores deviam, pois, perceber se as teorias em que se apoiam de modo a sustentarem os pilares da sua teoria serão, de facto, verdadeiras. É que, começando com uma premissa errada, como Descartes com o seu "cogito, ergo sum", toda a filosofia que dela procede não passa de uma torre de Babel de raciocínios viciados. E o resultado é uma asneira filosófica de todo o tamanho.