terça-feira, 27 de março de 2012

O Coice de Ronaldo

Tinha pensado escrever sobre o assunto na altura, há coisa de um mês, mas a falta de tempo acabou por impedir que o fizesse. Acontece que o próprio Cristiano Ronaldo escolheu recentemente o golo que resultou desse mesmo lance como o mais bonito que marcou ao serviço do Real Madrid. Não podendo deixar passar esta segunda oportunidade, serve este texto para distinguir um grande golo de um golo fortuito, uma genialidade de um coice. Falo, claro está, do golo de Cristiano Ronaldo no terreno do Rayo Vallecano, que na altura garantiu mais três pontos à equipa de José Mourinho.

O espanto com a definição do lance tem sobretudo a ver com a imprevisibilidade do seu desfecho. E é por aqui que começo. De facto, ninguém esperava que Ronaldo, de costas, sem se virar, tentasse alvejar a baliza. Por si só, a imprevisibilidade é, obviamente, uma grande arma. Na minha opinião, no entanto, essa imprevisibilidade só deve ser alvo de admiração se de facto lhe corresponder algo genial, algo que surpreendesse o adversário fosse qual fosse o desfecho. O que estou a tentar dizer é que não é a imprevisibilidade do desfecho que merece reconhecimento, mas a imprevisibilidade da acção em si. E, honestamente, o golo de Ronaldo só gerou admiração porque a bola, realmente, entrou na baliza. Se não tivesse entrado, como seria o mais provável, a tentativa não seria senão um disparate de todo o tamanho.



Disse Ronaldo que "foi o que deu para fazer no momento e felizmente deu tudo certo". Para ser honesto, sim, há que reconhecer a parte da felicidade. É que, em 100 lances iguais, dificilmente o resultado seria o mesmo. Além de que não era bem tudo o que dava para fazer no momento. Após um canto, a bola acaba por sobrar para Ronaldo que, de costas para a baliza, e com meia-equipa do Rayo Vallecano atrás de si, se lembra de tentar, ainda assim, fazer golo. Ao seu lado, bem melhores colocados, tinha Pepe e outro colega. Mesmo achando que um passe naquela zona encontraria oposição, poderia sempre conservar a bola, esperar por um apoio mais sólido, por um colega em melhores condições. Ronaldo não pensou assim. Pensou que teria mais sucesso dando um coice na bola e entregando o lance aos caprichos dos deuses; pensou que, mesmo com cinco ou seis jogadores no enfiamento do lance, um coice tinha boas probabilidades de levar a bola a entrar na baliza. É óbvio que não tinha. É óbvio que tomou uma má decisão. E é óbvio que a bola só entrou porque teve toda a sorte do mundo. Às vezes acontece. O que não dá é para eleger um golo de coice, totalmente fortuito, como "um golo muito bonito".

Isto das más decisões tem obviamente muito que se lhe diga. Para aqueles que não lhes dão importância, o que interessa é que a bola entrou, o que interessa é que o resultado dessa decisão, por imprevisível, foi bonito. O problema dessas pessoas é a importância excessiva que dão ao resultado das acções, e não às acções em si. A probabilidade de aquele coice dar golo era baixíssima. Diria até que a probabilidade de aquele coice dar golo era mais baixa do que se Ronaldo tivesse dado um pontapé na direcção de Casillas, de modo a iniciar nova jogada de ataque do Real. No entanto, deu golo. Será isso motivo de aplauso? A meu ver, não. Da mesma forma que um autogolo não é festejado como um grande golo, um golo fortuito também o não deveria ser. Mas como foi de calcanhar, como ninguém esperava aquilo, transformou-se uma banalidade num lance de génio. Ronaldo não foi genial; foi disparatado. Acontece que em futebol, por vezes, um disparate é facilmente confundido com uma genialidade.

O golo de Ronaldo garantiu a vitória do Real Madrid, em mais um jogo francamente mau do Real Madrid. Como em muitos outros jogos desta época, o Real voltou a vencer sem fazer o suficiente para isso. O próprio Mourinho reconheceu que o resultado mais justo, nessa partida, teria sido o empate. Aliás, já nos descontos, o Rayo Vallecano desperdiçou um lance óptimo para empatar a partida, com um avançado a falhar a emenda a menos de um metro da linha de golo, sem ninguém pela frente. O coice de Ronaldo é pois a melhor imagem possível de muito do que tem sido a época do Real Madrid. É verdade que, em muitos jogos, o Real jogou bem e mereceu vencer. Ainda no passado fim-de-semana, frente à Real Sociedad, mereceu amplamente o resultado obtido. Mas as exibições da equipa não foram minimamente regulares, ao contrário do que o ciclo de vitórias consecutivas sugeria. Em muitas ocasiões, o Real venceu apenas porque sim, porque os adversários falharam em momentos chave, porque os árbitros ajudaram, porque as vicissitudes do acaso estiveram do seu lado, porque, substituindo-se à inspiração, um coice qualquer fez entrar uma bola que não entraria de outro modo.

Já o disse várias vezes, e volto a dizê-lo: acho difícil que uma equipa, sobretudo num campeonato como o espanhol e com um adversário como o Barcelona, consiga ser campeã dependendo tanto e tantas vezes de factores como estes, mas a verdade é que, quando o Real venceu esse jogo (na altura, mantendo a distância de dez pontos), pensei que talvez aquele coice fosse o sinal de que, esta época, tudo os protegeria. Como é evidente, há sempre excepções à regra, e se, depois de ganhar vários jogos que não merecia, até com um coice o Real evitava perder dois pontos, talvez fosse prudente reconhecer que, este ano, mesmo não o merecendo, o ceptro iria para Madrid. Algumas semanas depois, porém, o Real começou a perder os pontos que deveria ter começado a perder há muito mais tempo. Em mais dois jogos em que não fez absolutamente nada para sair vencedor, eis que viu a vantagem emagrecer para 6 pontos (sabendo ainda que tem de ir a Camp Nou). Se, na altura, aquele coice me fez pensar que este ano nada os faria cair, agora já não tenho tantas certezas. Sendo verdade que o Barcelona tem no próximo fim-de-semana, entre dois jogos europeus difíceis com o Milan em 6 dias, a recepção sempre perigosa ao Athletic de Bilbao, o calendário do Real Madrid até à deslocação à Catalunha é muito mais complicado: deslocação a Pamplona para defrontar o Osasuna, actual sexto classificado (onde o Barça, por exemplo, perdeu), recepção ao Valência, e deslocação ao Vicente Calderón, três dias apenas depois do jogo com o Valência, para enfrentar um Atlético de Madrid muitíssimo agressivo, desde que Diego Simeone tomou o comando da equipa. A menos que mantenha a vantagem actual de 6 pontos até ir a Camp Nou, o que implicaria passar com distinção em qualquer um dos jogos acima referidos, o campeonato está agora longe de estar decidido. Mais do que nunca, até porque o Real terá ainda de ir a Bilbao, a equipa de Mourinho precisa de coices como o do jogo com o Rayo Vallecano para continuar a ser o principal favorito à vitória final. O mês de Abril será, para essas contas, certamente decisivo.

sábado, 24 de março de 2012

A Expulsão de Aimar e a Falta de Bom Senso

Não está em questão a relação entre o lance e o resultado final, nem sequer me parece que isso possa servir de justificação, quando haviam sido criadas tão poucas oportunidades de golo até ao momento. O empate penaliza a pouca imaginação da equipa de Jorge Jesus, e não creio que mereça, como talvez tenha merecido noutras ocasiões, referências ao trabalho do árbitro. Se o Benfica deixou pontos em Olhão, foi principalmente porque não conseguiu contrariar o bloco baixo e a agressividade defensiva do adversário. Uma vez mais, a importância de ter alguém em campo que sabe movimentar-se entre linhas, arrastar marcações, jogar ao primeiro toque, tabelar, e encontrar espaços rapidamente em zonas muito densas foi amplamente negligenciada por Jorge Jesus. Quando se preferem atributos individuais a atributos colectivos, a equipa fica mais refém das individualidades, e com menos capacidade para ultrapassar estratégias deste tipo. Não é novo, e um lance de bola parada até podia ter resolvido a coisa, mas é uma tendência que se acentua de jogo para jogo, fruto daquilo em que a equipa se tem gradualmente vindo a transformar.

Interessa, apesar de tudo isto, analisar a expulsão de Aimar, principalmente pela estupidez das opiniões acerca do lance. A menos que Aimar tenha músculos que um ser humano normal não tem, não consigo perceber como é que se pode acreditar que tenha pontapeado propositadamente o seu adversário. Eu gosto de acreditar que as pessoas, antes de falar, antes de emitirem opiniões, usam a cabecinha. Se calhar é ingenuidade minha. A verdade é que, para a grande maioria, como o pé de Aimar foi embater na coxa de Rui Duarte, só pode ter sido intencional. Não sei se as pessoas estão cientes de que, muitas vezes, o que acontece não é planeado mentalmente. Se calhar não estão. O lance explica-se facilmente. Aimar e Rui Duarte disputam uma bola com força, acertando nela praticamente ao mesmo tempo. Com a força do impacto, as pernas de cada um deles sofrem movimentos inesperados, que nenhum deles controla. Por força do embate, Rui Duarte, por exemplo, perfez praticamente 180º em torno do seu pé de apoio. O mesmo aconteceu à perna de Aimar, que acabou por ir tocar em Rui Duarte, valendo-lhe a expulsão. Vendo o lance calmamente na repetição, é perfeitamente claro que Aimar não estica a perna para lhe acertar, que o seu pé bate na coxa de Rui Duarte unicamente por força do impacto anterior. Francamente, acho até fisicamente impossível alguém conseguir pontapear outro após um impacto daqueles. João Capela, porém, não teve dúvidas, e achou que Aimar tentou deliberadamente agredir o seu adversário.



As opiniões dos que viram as repetições são estúpidas o suficiente, mas não são de alguém com responsabilidades. O árbitro da partida, porém, é um agente responsável. E a sua responsabilidade não termina com a responsabilidade de ter os olhos bem abertos. Um árbitro não deve apenas assinalar o que vê com os olhos. Deve interpretar. Jorge Jesus tocou, a meu ver, num ponto relevante: Aimar não é o tipo de jogador que agrida outros. Podia acontecer, mas a pouca frequência devia pelo menos fazer pensar João Capela. Não fez. Viu um pé na coxa e achou que só podia ser agressão. Mais uma vez, falta à grande maioria dos árbitros aquilo que me parece mais importante não só num árbitro, mas num ser humano: bom senso. Com um pouco de bom senso, facilmente suspeitaria de que aquilo que os seus olhos tinham visto tinha de ter outra explicação. Como não tem bom senso, João Capela (e a grande maioria dos árbitros) agiu maquinalmente, analisando o lance como o analisaria qualquer instrumento mecânico que para o efeito de analisar lances destes se criasse. E Aimar, num lance incrivelmente fortuito, sem maldade alguma, foi expulso como se tivesse cometido uma atrocidade. A reacção que se seguiu é a normal em quem se sente injustiçado.

O que me impressiona é que, por exemplo, Javi Garcia repita entradas maldosas e francamente arrojadas jogo após jogo, sem que seja punido por isso, e Aimar, ao primeiro lance em que o seu pé toca num adversário não mereça sequer o benefício da dúvida. O futebol continua a ser extraordinário a esse respeito. Basta lembrar como Bruno Alves raramente era expulso, ou basta até lembrar a indignação dos jogadores e treinadores do Real Madrid pela expulsão de Sérgio Ramos no último encontro (e até pelo amarelo a Pepe), frente ao Villareal, depois de uma entrada absurda do mesmo. Para mim, o que é claro é que jogadores maldosos, que entram à bola para aleijar ou intimidar adversários, continuam a ser estupidamente protegidos, enquanto outros, fortuitamente, continuam a ser injustiçados. A protecção e a injustiça não são deliberadas, claro. Resultam da falta de bom senso da grande maioria dos árbitros. Se tivessem bom senso, interpretariam melhor cada lance, perceberiam melhor as intenções dos jogadores em cada lance, etc. Os árbitros estão demasiado atentos ao que vêem, ao resultado de um choque, ao que acontece, e negligenciam invariavelmente o que motiva o que acontece. Em lances como o de ontem, há que analisar a intenção do jogador e não a sua acção. Isto porque a acção pode não ser intencional. O mesmo acontece com quedas na área, que muitas vezes podem não ser motivadas pela intenção de enganar o árbitro. Com um pouco de bom senso, João Capela facilmente perceberia que o lance de ontem foi normalíssimo, que o pé de Aimar ter tocado em Rui Duarte foi obra do acaso. Mas, já se sabe, bom senso é coisa que falta a muita gente, não apenas a um árbitro. Basta ver como a sua decisão foi considerada acertada por quase toda a gente. Assim se mede a estupidez de uma espécie.

domingo, 18 de março de 2012

O Futebol Consciente e a excomunhão do Maestro

A manifestação de uma sinfonia sem Maestro. Esta é a melhor definição do jogo preconizado pelo Barcelona de Guardiola. É, sem qualquer dúvida, a equipa que mais análises à sua abordagem ao jogo promove, sendo sujeita a inúmeros crivos. No entanto, pretendo abordar a construção da identidade do conjunto orientado por Guardiola numa perspectiva temporal intrínseca e exclusiva do futebol manifestado pelos catalães.



Não raras vezes, distinguimos uma faúlha de civilização por entre a animalidade que sobrevive, no estado de selvajaria, ou assim muito próximo, nas equipas de futebol. Não passam de farrapos, porém, sobranceiros à gestão primitiva, os exemplo de que falo: quatro ou cinco jogadores, se tivermos sorte, que, de forma descontínua, emprestam algo de sofisticado aos conjuntos onde se encontram, criando a ilusão de que algo diferente se passa; são sociedades secretas, ou a isso dão ares, facilmente perecendo à tirania estulta dos resultados. Do efeito colateral das suas acções individuais, encontramos este vislumbre, mas apenas se houver um número razoável de elementos, porque se não... bem, se não, nem esse vislumbre apreciamos. E isto, apesar de trágico, não acrescenta nada de novo ao que temos escrito, bem sei, mas cuja presença neste texto se apresenta como evidente.



Não é novidade a nossa insubordinação contra a definição vigente do conceito colectivo que prospera no futebol; não acredito que a esmagadora maioria dos treinadores exorcize o desempenho individual em si mesmo, ou seja: apesar de pedirem aos seus elementos que joguem de forma colectiva, analisam, e tomam decisões sobre os jogadores em função dos seus desempenhos individuais, daquilo que de explícito sobra do comportamento destes em acções concretas. E este problema advém da forma descontinuada como lêem o jogo, como o conceptualizam.



Daqui surge o primeiro obstáculo ao aparecimento da identidade no colectivo. A identidade de uma equipa não é apenas uma imagem que se cria e se impôe àquele conjunto de jogadores; tem de nascer do eco que esta imagem, esta filosofia, provoca nos jogadores. Daí a necessidade de construir um jogar "inteiro", uma intenção deliberada de construir a cada instante, a cada relacionamento com o jogo e as suas idiossincrasias, uma nova imagem do mesmo, mas que essa imagem seja sempre orientada ao estilo pretendido; é necessário que as acções sejam coerentes, que adquiram um pulsar distinto e exclusivo à filosofia que orienta cada momento, cada acção de cada elemento, permitindo uma concertação conciliadora entre os vários espaços temporais do jogo. Este é o primeiro passo para a construção de um "eu" numa equipa de futebol.




Uma identidade que ressoe em cada movimento e em cada decisão tomada.



Para equipas que assumem posturas incoerentes, ignorantes das consequências que os seus movimentos num dado momento do jogo vão promover no instante que precedem, não aceito que se fale em identidade colectiva. A identidade de uma equipa obriga a que se exija exactamente o oposto, que a cada opção tomada no presente se repercuta uma intencionalidade das situações que se criaram no passado. Necessita-se de um construir, de um sentir o jogo, tendo presente que cada decisão não se esgota em si própria, não só no mero desenvolvimento e encadeamento das acções colectivas, mas na construção de um padrão reconhecido pelos seus elementos, emergindo deste um sentimento de conhecimento, fundamental à emergência de uma identidade. A partir desta sugestão, pode-se, de forma errónea, pensar que então todas, ou quase todas, as equipas têm identidade definida: a grande maioria dos treinadores trabalha de forma minuciosa a disposição que pretende, assim como os movimentos que quer ver incluídos para diversos momentos do jogo. Nada mais errado. Isto não passa da delimitação da própria equipa, um esboço do ambiente ideal para que os propósitos sejam realçados, permitindo aos jogadores comportamentos mais objectivos, pragmáticos; almeja-se, deste modo, um equilíbrio estrutural que lhes permita tirar o máximo partido das características das partes que compõem o todo. Isto nos casos mais evoluídos, claro está. O facto de o jogo ser demasiado rico para se poder compreender todas as situações que ele nos oferece, impede porém que estes comportamentos disposicionais ofereçam ao conjunto, da parte dos seus constituintes, uma invariância de comportamentos suficientemente estável para a criação de uma identidade. A equipa quer marcar golos, também não os quer sofrer; reconhece com alguma iminência a possibilidade destas duas partes do jogo, mas não é capaz de planear, com antecedência, quando confrontada com um dado novo no jogo, uma forma de, mantendo em mente estas duas partes do jogo, preservar comportamentos que respeitem a filosofia de jogo anteriormente idealizada. E é neste aspecto "fracturante" que encontro a maior resistência à emergência de uma perspectiva colectiva.



A posse de bola, como potenciador de um pulsar invariável.



Nem sempre, de forma deliberada, quando se atinge algo de extraordinário, é ao mais brilhante alvo que se dirigem as intenções dos homens. Tão pouco sei se este é um desses casos ou não. Contudo, uma coisa é certa, a diferença que o futebol de Guardiola ostenta em relação a toda e qualquer abordagem jamais feita assenta, se não em absoluto, pelo menos em grande parte, neste aspecto: um respeito inefável pela posse de bola. A bola é o centro de todas as decisões, é a constante que permite ao jogar do Barcelona edificar a sua maior vitória: a obtenção de uma consciência, o construir de uma verdadeira identidade colectiva. Todas as decisões, movimentos, a própria disposição da estrutura, etc., enfim, todos os aspectos do jogar de Guardiola, incutem a cada elemento do seu conjunto a consciência do valor determinante da posse da bola, incomparavél a qualquer outro aspecto do jogo. A invariância deste sentimento, perante algo que é intrínseco ao próprio Futebol, a bola, permite-lhes alcançar uma perspectiva ubíqua, obrigando-os (aos jogadores, e ao próprio treinador) a abordar cada nova circunstância do jogo, cada contingência do mesmo, com uma grande coerência e respeito pelos tempos e momentos de jogo que se sucedem.




Os sentimentos e decisões após o relacionamento da estrutura colectiva com um acaso do jogo, em função da partilha de um valor que é intemporal no jogo, o valor da posse da bola, e a necessidade de a preservar, promove uma similiaridade de respostas entre os seus elementos, reconhecendo estes, entre eles, perante as várias situações com que se deparam, uma abordagem semelhante da parte dos seus colegas. Derivando da antecipação similar partilhada por cada elemento em cada momento do jogo, esta Constância permite à equipa promover disposições coerentes, mesmo perante um jogo tão propício ao acaso como o futebol. Associando esta peculiaridade a um Reconhecimento Inteiro do Jogo, assistimos ao nascimento de uma identidade verdadeiramente colectiva, algo que até aos dias de hoje é inédito.



Pela primeira vez, na minha opinião, a abordagem ao jogo é despida de funções específicas: não existem uns para defender, outros para marcar, outros para assistir, etc. E, por mais paradoxal que isto possa parecer, alcança-se com o melhor futebol do mundo, com o que mais encanta, ou assim devia ser, o fim do romance, do misticismo que envolve o Número Dez: Acabou-se o espaço dos jogadores que resgatam a equipa da mediocridade, que pensam, em exclusivo, ou quase, o futebol do conjunto que o alberga. É, no entanto, uma extinção que serve e sublima a própria génese do conceito, catapultando-o para um “organismo” que o exponencia a limites que o transcendem.

sábado, 3 de março de 2012

A Lotaria dos Detalhes e o Ostracismo de Saviola

Num jogo com duas equipas pouco interessadas em arriscar muito, pressionantes, subidas, mas raramente querendo fazer da bola aquilo que ela deve ser, num jogo em que as preocupações em não perder a bola em construção, e em que o medo dos desequilíbrios defensivos superou a necessidade de promover a imaginação e a criatividade ofensiva, num jogo em que houve um equilíbrio de forças muito constante, a vitória poderia pender para qualquer um dos lados. Neste tipo de jogo, os detalhes fazem a diferença, e - pode de facto dizer-se - foram os detalhes que definiram a vitória do Porto na Luz: os comportamentos defensivos inadequados de Emerson nos dois primeiros golos, o fora-de-jogo no terceiro, as lesões de Aimar e Garay, a expulsão de Emerson, o único lance em que o Benfica não conseguiu impedir a transição do Porto ter dado golo, etc..

Mas a derrota no jogo (e quem sabe no campeonato) tem de começar a explicar-se muito antes. É que não é por acaso que a equipa encarnada acabou à mercê dos detalhes. Tudo começou há muito tempo, e culmina agora. Jesus tem vários méritos, mas teve sempre o defeito de ter como principal paixão a vertigem e a intensidade. Esse era o defeito principal do seu Benfica no primeiro ano, defeito que, por não ter corrigido no segundo, lhe valeu o desastre que valeu. Este ano, tentou corrigi-lo, mas não soube nunca como o fazer. Passou a não correr tantos riscos em construção, numa primeira fase, com uma circulação mais à largura e mais paciente nessa primeira fase, e tentou trazer densidade e argumentos físicos ao meio-campo. O problema, no entanto, é que Jesus, como em muitos outros casos, pareceu identificar o problema certo nos sítios errados, ou de modo errado. O problema da intensidade e da vertigem não está só nos desequilíbrios defensivos que provoca, não está só no risco que promove; está também, e talvez acima de tudo, na incerteza ofensiva que gera. E a verdade é que, se numa primeira fase, o Benfica actual parece mais calmo e maduro do que antes, se parece mais capaz de controlar a forma como se desequilibra quando ataca, no último terço continua a equipa febril e viciada em intensidade que sempre foi na era de Jesus. As competências ofensivas da equipa encarnada continuam assim demasiado dependentes da intensidade que a equipa conseguir impor ao jogo (levando o jogo para velocidades de execução que acentuem a desigualdade individual), da inspiração individual, e dos atributos técnicos e físicos dos seus atacantes. Continua a ser dada pouca importância à imaginação, à criatividade, à inteligência, e às combinações colectivas.

O problema mais curioso de Jesus, como disse, parece ser a incapacidade para perceber mais concretamente aquilo que até consegue intuir. Isso é extraordinariamente fácil de compreender no que diz respeito aos jogadores que aprecia. É que Jesus parece muitas vezes gostar dos jogadores certos, mas pelas razões erradas. E isso é determinante. Durante muito tempo, acreditei que Aimar só continuava a ser aclamado entre os adeptos porque Jesus o percebia como poucos treinadores em Portugal o perceberiam, e lhe dava bastante protagonismo no seu modelo por essas razões. Achava que um jogador com as suas debilidades físicas depressa seria ostracizado por qualquer outro treinador. Por aqui, o Gonçalo sempre discordou de mim, e sempre achou que a reputação de Aimar era a principal razão para Jesus lhe dar a atenção e o crédito que lhe dava. Sensivelmente a meio da época passada, comecei a torcer o nariz à minha crença, e hoje estou certo de que o Gonçalo tem razão. Jesus não gosta de Aimar pelo melhor que ele tem, por aquilo que de melhor pode oferecer à equipa; gosta dele porque tem qualidade e a qualquer altura pode inventar uma jogada soberba. Ou seja, o que Jesus espera que Aimar dê à equipa é um momento ou outro de génio, que é mais ou menos o que toda a gente acha que Aimar pode dar. A colocação do argentino preferencialmente mais perto das zonas de decisão assim o comprova. Eu, por outro lado, acredito que Aimar podia dar muitas outras coisas, nomeadamente a capacidade de circulação e progressão em zonas mais baixas, melhor capacidade para sair de zonas de pressão, competência em espaços curtos e entre linhas adversárias, etc.. Aimar é muito mais do que o último passe ou dois ou três apontamentos por jogo. E não perceber isso é determinante. É determinante porque implica não perceber o que falta verdadeiramente à equipa. Aliás, este problema de Jesus estende-se a muitos outros jogadores. Gosta de Nolito pela agressividade e pelo repentismo do espanhol, e não pela forma como antecipa os comportamentos dos colegas e como lê linhas de passe; gosta de Cardozo pelos golos que marca e pela estampa física do paraguaio, e não pela forma como se relaciona com os colegas, sobretudo quando serve de apoio vertical e referência para tabelas; gosta de Saviola pelo oportunismo do argentino e não pela inteligência na movimentação e na decisão. É também por isso que valoriza tanto jogadores que deixam muito a desejar, em alguns aspectos relevantes do jogo. O caso evidente é o de Emerson, mas poderia estender o argumento a Rodrigo, por exemplo, que anda por estes dias quase que criminosamente sobrevalorizado.

De resto, a melhor explicação possível para mais uma época falhada - a confirmar-se o falhanço - é a mesma que tenho dado há já muito tempo. Desde o primeiro ano de Jesus que defendia que os principais argumentos ofensivos do Benfica consistiam nas combinações curtas, que na altura ocorriam quase que exclusivamente quando Aimar e Saviola coabitavam. Aos poucos, Jesus foi abdicando disso. Também aqui não percebeu a importância vital de um argentino para a produção do outro. Aimar e Saviola passaram a estar em campo à vez, até que, finalmente, o segundo deixou de ser opção. O ostracismo de Saviola, tão simplesmente isto, é a principal causa da derrota de ontem. Evidentemente, nada mudaria se Saviola estivesse dentro de campo ontem. O que quero dizer é que há uma relação causal entre uma equipa ser incapaz de não ficar à mercê da lotaria dos detalhes e o processo de ostracismo a que o argentino foi votado. Ao conceder a Saviola o papel de quinta opção, quando necessariamente teria de ver nele a primeira solução para o seu ataque, Jesus pôs um ponto final na dúvida acerca da sua capacidade para perceber de que maneira a sua equipa poderia ser mais competente em termos ofensivos. Ao prescindir de vez de Saviola, mostrou que não é excepcionalmente diferente de vários outros treinadores de competências razoáveis. O seu Benfica é competente em muitas coisas em que outras equipas são competentes; o que não tem é aquela genialidade que só poderia ter (e que teve, ainda que acidentalmente, na primeira época) se tivesse em campo, em simultâneo, pelo menos dois ou três jogadores capazes de se entender entre si na perfeição. Ao contrário de outras competências colectivas, a criatividade do colectivo não resulta da soma da criatividade de que é capaz cada um dos seus elementos, mas da forma como eles se relacionam criativamente entre si. Ao ostracizar Saviola, Jesus ostracizou também a criatividade do seu Benfica. E ficou, por isso, à mercê daquilo de que todos os outros treinadores medianos ficam à mercê.

P.S. Não se fique com a impressão de que, por ter sido omitida, a opinião sobre Vítor Pereira e o futebol praticado pelo seu Porto foge ao crivo crítico desta análise. Nem se pense que essa opinião é especialmente mais moderada do que esta que fica. Haverá oportunidade para falar disso noutra altura, mas não é por ter ganho ontem, nem por se preparar para ser campeão, que Vítor Pereira passa a merecer mais que a mediania em que tento inserir Jorge Jesus. Aliás, talvez fosse até excessivamente prestigiante, se aí o inserisse. Aquele futebol chocho e fraco de ideias não merece, pelo menos da minha parte, especial homenagem.