quarta-feira, 25 de março de 2009

Podias ser mais atrasado, Professor? Não, não podias...

Pereirinha e Rui Pedro, na sequência do penalty não convertido contra a selecção de Cabo Verde, foram suspensos pelo Professor Carlos Queiroz.

Este capricho do principal responsável técnico das selecções nacionais, aliado às declarações de Rui Caçador, poderá ter repercussões a todos os níveis nefastas. E isto não se aplica só aos dois jogadores que foram castigados.

A opção por crucificar dois jogadores que "ousaram" fazer algo de diferente não se esgota no castigo "concedido". Quando se condena um acto destes, desta natureza, está a circunscrever-se a irreverência, a originalidade, a coragem de num dado momento surpreender, mas, acima de tudo, está a condenar-se os que pretendem algo mais. O mais fácil naquela situação seria apontar a grande penalidade de forma vulgar. E isto só não aconteceu porque um jogador, num dado momento, sentiu que poderia fazer mais, porque ousou tentar algo de diferente. E tentar algo de diferente nada tem a ver com desrespeito, ou leviandade.

Mas não deixa de ser engraçado atentar nas declarações de Rui Caçador: "se eles tivessem feito aquilo num jogo com uma selecção mais forte, com o resultado 0-0 e num jogo a doer, aí, talvez até aceitasse a classe e a coragem dos jogadores. Assim, não". Peço desculpa, mas quem é que faltou ao respeito a quem? Quem é que está a tratar os cabo-verdianos como uns coitadinhos? O jogador que achou que devia "caprichar"? Ou o treinador que acha que contra estes "pobres coitados" qualquer um pode fazer algo do género?

E que dizer do seleccionador principal? É para isto que pretende participar mais nas selecções jovens? Para poder mostrar serviço, já que na selecção principal é a miséria que se vê? Cuidado com os "banhos de humildade" professor, não vá ter um tipo alto e loiro a escovar-lhe as costas no próximo sábado.

Depois há uma questão que não podemos ignorar: cada jogador é um caso! Não conheço muito bem o Rui Pedro, mas se há coisa que se não pode apontar ao Pereirinha é tiques de vedeta. Aliás, quem o conhece bem até admite que uma das razões de ele ainda não se ter imposto de forma categórica é a maneira demasiado "correcta" e "certinha" com que tem pautado as suas exibições, não se vislumbrando a coragem e a irreverência que sempre demonstrou, quer nas camadas jovens, quer na liga de Honra, ao serviço do Olivais e Moscavide (na altura ainda com idade de júnior). Não me parece, portanto, que esta opção em retrair a irreverência deste jogador se possa revelar positiva no futuro do mesmo, temendo até que possa suceder exactamente o oposto no desenvolvimento de Bruno Pereirinha.

domingo, 22 de março de 2009

Cruyff contra a Intensidade

Para muitos, a característica mais importante de uma equipa de futebol que queira ser bem sucedida tem de ser a intensidade de jogo. Por intensidade de jogo entende-se capacidade de jogar a um ritmo elevado durante os noventa minutos, índices de concentração e agressividade máximos, capacidade de pressionar activamente em todo o campo, etc. E diz-se que hoje em dia as melhores equipas são aquelas que conseguem ser intensas a este nível. Esta é - dizem as mesmas pessoas - a arma dos colossos ingleses. Concordo que muito do potencial de Manchester e Liverpool, por exemplo, tenha a ver com isto. Afinal, são duas equipas que raramente impõem ritmos baixos aos jogos e que têm na velocidade de processos a principal arma. De formas diferentes, é verdade, serão talvez as equipas com maior intensidade de jogo na Europa. Aquilo com que não concordo é que essa seja a característica fundamental para o sucesso. Ou pelo menos - acredito - há armas com que combatê-la.

Reconheço que Manchester e Liverpool têm as equipas atleticamente mais aptas a vencer a Champions. Mas, como sempre defendi, o futebol tem muito mais de intelectual do que de atlético. Não acredito, por isso, que o empenho físico que subjaz à capacidade de ser intenso, que a simplicidade, a velocidade, a objectividade e a agressividade sejam imbatíveis. Contra equipas que fazem da intensidade a sua arma, que têm um poderio atlético superior, como são o caso do Manchester e do Liverpool, o segredo residirá em possuir a bola, em trocá-la entre os seus jogadores o mais rapidamente possível, em criar sucessivas linhas de passe e assinaláveis redes de apoios. Se há equipa com a qual me identifico é o Barcelona de Guardiola. E é precisamente o futebol do Barcelona que serve de ilustração àquilo que defendo. Cruyff dizia, há dias, nesta entrevista, que não se importava que o Barcelona jogasse já com uma destas duas equipas, para muitos as duas grandes favoritas à vitória final. A razão era simples: não há razão nenhuma para temer qualquer adversário. O futebol do Barcelona é que é difícil de anular, não o contrário. De forma a contrariar a capacidade atlética destes dois adversários, Cruyff sugere o seguinte:

"Por más que te salgan a toda pastilla, por más que te vayan a buscar arriba, por más presión que te den, tú tienes la forma de salvarlo. Y esta pasa con la técnica, el juego de posición y la velocidad que le imprimas al balón. Un pase rápido y bien dirigido a un compañero que se ofrezca en las ayudas es la única forma de hacer que ellos lleguen tarde y que tú ganes ese medio metro para salir de la presión."

Nem mais. Se o Barcelona jogar à Barcelona, o Manchester e o Liverpool é que devem temê-los. Isto porque contra a intensidade há uma arma óbvia: ter a bola. E se há equipa temível nesse aspecto do jogo é o Barcelona. E o que pode fazer uma equipa contra um adversário que tenha a bola? Tentar tirá-la, através da capacidade de pressão, através da entrega, do esforço físico. Será sempre uma disputa entre a competência de ser intenso e a competência de ter bola. O problema é que, se os dois forem competentes naquilo que se lhes impõe, será sempre quem tem bola que estará por cima. É por isso que o Barcelona só deve temer-se a si próprio. Se conseguir impor o seu futebol, a intensidade dos outros não será suficiente para pará-los.

Os quartos-de-final estão aí e, contra os desejos de Cruyff, nem Liverpool nem Manchester se atravessaram no caminho do Barcelona. O adversário será o Bayern de Munique. A diferença será, no entanto, apenas qualitativa, pois os germânicos constituem igualmente uma equipa que vive da intensidade de jogo. Perderá, para os ingleses (sobretudo para o Liverpool), em organização defensiva, mas de resto é uma equipa em tudo idêntica às outras duas. Será, por isso mesmo, um excelente ensaio para o Barcelona e uma primeira ordália às verdadeiras capacidades da única equipa europeia (com qualidade suficiente para jogar a este nível) que joga um futebol verdadeiramente apoiado. Depois do duplo desafio com o Bayern, ficará muito mais claro que espécie de resposta pode dar, nos dias de hoje, um futebol mais elaborado, mais requintado, mais inteligente, face ao músculo e ao suor em que a esmagadora maioria das filosofias hodiernas se baseiam. Tal como Cruyff, acredito que o jogo posicional, a capacidade de criar apoios ao portador da bola, a velocidade com que se circula a bola, a técnica e a inteligência podem fazer frente à capacidade atlética, por mais perfeita que esta seja. Acredito, portanto, que o Barcelona não só tem francas possibilidades de vencer a Liga dos Campeões este ano, como se constituirá, caso o consiga, como um exemplo de como a elegância, a classe e as ideias se podem superiorizar à força, à vontade e ao espírito de sacrifício.

sábado, 14 de março de 2009

O desinteresse kantiano aplicado ao futebol

É usual relacionar-se o futebol com emoções e não é novidade ouvir falar do desporto-rei como um jogo de paixões. Para grande parte das pessoas, assistir a um jogo de futebol é mais do que assistir a um jogo de futebol: é partilhar sentimentos, é libertar ânimos, é fazer parte de um espírito colectivo, é emocionar-se, etc. O futebol, como aliás outras actividades próprias do Homem, serve desta forma ao Homem como fonte de prazer.

Há essencialmente - do meu ponto de vista - duas formas de um desafio de futebol constituir fonte de prazer. Para aqueles que vêem um jogo do seu clube e que são afectados pelo sucesso ou pelo insucesso do seu clube, as peculiaridades de uma partida transformam-se em prazer, pela positiva ou pela negativa, com base num critério puramente arbitrário e que releva de um gosto ou de uma apetência unicamente individual que normalmente não se explica. Tentando transpor este tipo de leitura para o campo das artes, teríamos coisas absolutamente ridículas. Não faz qualquer sentido dizer que se prefere a arte de José Malhoa à de Caravaggio ou a música de Marco Paulo à de Mozart apenas porque somos portugueses. Em arte, não faz qualquer sentido haver avaliações com base em critérios de identificação pessoal. Ora, por que razão haveria então de o futebol ser diferente? Poder-se-á dizer que o futebol tem uma dimensão competitiva que justifica esse tipo de critério. Compreendo e aceito. Mas jamais a avaliação qualitativa de um jogo de futebol pode estar afectada por isso. Onde quero eu chegar? Ao cerne da questão. Ao valor de uma partida de futebol. Haver quem sofra com as vitórias do seu clube ou quem exulte com os êxitos da sua selecção é apenas uma consequência do facto de o futebol ser um fenómeno sócio-cultural. Enquanto fenómeno sócio-cultural, é aceitável que haja quem o veja desse modo. Mas o futebol é mais que isso. O futebol é arte.

Boa parte de quem vê futebol não vê no jogo mais do que um fenómeno desse tipo e um golo da sua equipa é igual a uma vitória política do partido que apoia ou produz uma satisfação parecida com aquela que produz a ingestão de um pedaço da sua fruta preferida. Ora, gostar de futebol não é o mesmo que gostar de maracujá. Há, contudo, um segundo tipo de pessoas que, embora nutra afeição por um determinado clube e vá ao estádio pela euforia da vitória e pela simpatia para com o clube, sabe que o jogo em si é muito mais do que um fenómeno sócio-cultural. Estas pessoas têm a percepção de que a avaliação da qualidade de uma partida não pode ser medida pelo grau de satisfação que o clube do seu coração lhes proporciona e têm até, por vezes, a consciência de que essa relação com esse clube influencia a sua capacidade de tecer considerações objectivas sobre um determinado jogo. Este é o segundo tipo de pessoas para quem o futebol constitui uma fonte de prazer. A diferença essencial tem a ver com o tipo de prazer. Ao contrário do primeiro tipo, para quem o prazer é directamente proporcional à taxa de sucesso do clube apoiado, para este tipo de pessoas o prazer de um jogo residirá noutra coisa. Que coisa será essa? É o que vamos tentar perceber de seguida.

Estas pessoas, ainda que saibam distinguir as emoções proporcionadas pelas vitórias ou derrotas do seu clube do coração das emoções proporcionadas pela qualidade do próprio jogo, continuam a incorrer num erro que consiste em presumir que a qualidade tem a ver com a emoção que propicia. Para estas pessoas, portanto, um bom jogo de futebol é aquele que confere maior satisfação, sendo essa satisfação medida pela carga emocional que o mesmo conseguir transmitir. Desta forma, avaliam a qualidade de um jogo pelo número de golos ou pela intensidade do próprio jogo, pelo ritmo a que os eventos se dão ou pela incerteza no marcador, pela quantidade de oportunidades de golos ou pela quantidade de suor deixada em campo. Todas estas coisas são incidências do jogo que podem ou não significar que o jogo foi bom. Haver muitas oportunidades de golo pode tanto significar que se assistiu a um bom jogo como pode significar que se assistiu a um número elevado de disparates das defesas. Nada destas coisas implica necessariamente que o jogo tenha sido bom. E isto por uma razão simples. Porque a qualidade do jogo não tem nada a ver com o grau de prazer que proporciona.

Há, neste momento, um comparação interessante a fazer. Quando uma pessoa vai a um concerto, ou quando ouve música em casa ou no carro, essa pessoa não está, verdadeiramente, a ouvir música. Isto é, a razão pela qual se vai a um concerto não é a música, do mesmo modo que a razão pela qual se vai ao futebol não é o futebol. Aquilo que uma pessoa vai fazer a um concerto é estabelecer um comunhão entre ela e o músico, entre aquilo que o músico transmite e aquilo que se está a passar dentro dela. Se entendermos a música como arte, um concerto é uma aberração. Aquilo que se passa num concerto é que as pessoas querem assimilar a música e aquele que a interpreta, sendo que a fruição de um concerto consiste nessa capacidade de partilha de sensações. A música em si, num concerto, tem um papel secundário; o que importa é a conformidade entre espectador e artista. Ora, isto não tem nada a ver com arte. Qualquer participação emotiva da parte do espectador é sintoma de que não se está a assistir a arte, mas sim ao interesse que o objecto que se tem pela frente nos provoca. Num jogo de futebol não é diferente. Todo aquele que estiver a assistir a um jogo centrado no interesse que esse jogo lhe provoca, seja esse interesse motivado pelo facto de o seu clube do coração estar em campo ou pela emoção que o jogo em si propicia, não está a assistir a futebol. E, de maneira geral, todo aquele que estiver interessado em fruir com a experiência de ver um jogo não tem, de facto, capacidade para compreender objectivamente o mesmo. Isto só é possível entendendo o jogo como uma obra de arte, como uma experiência estética. A qualidade de algo só pode ser avaliada tendo em conta apenas as propriedades próprias desse algo. Não faz sentido, portanto, avaliar a qualidade dessa coisa através daquilo que provoca em quem a vê, pois essa avaliação estará sempre dependente da pessoa em causa, ou seja, será sempre subjectiva. Neste sentido, a qualidade de um jogo só pode ter a ver com as suas propriedades estéticas.

É aqui que entra Kant e a sua noção de desinteresse. Na Crítica da Faculdade do Juízo, o filósofo alemão diz o seguinte:

"Para distinguir se algo é belo ou não, referimos a representação, não pelo entendimento ao objecto com vista ao conhecimento, mas pela faculdade da imaginação (talvez ligada ao entendimento) ao sujeito e ao seu sentimento de prazer ou desprazer. O juízo de gosto não é, pois, nenhum juízo de conhecimento, por conseguinte não é lógico e sim estético, pelo qual se entende aquilo cujo fundamento de determinação não pode ser senão subjectivo. Toda a referência das representações, mesmo a das sensações, pode porém ser objectiva (e ela significa então o real de uma representação empírica); somente não pode sê-lo a referência ao sentimento de prazer e desprazer, pelo qual não é designado absolutamente nada no objecto, mas no qual o sujeito se sente a si próprio do modo como ele é afectado pela sensação.
Apreender pela sua faculdade de conhecimento (seja num modo de representação claro ou confuso) um edifício regular e conforme a fins, é algo totalmente diverso do que ser consciente desta representação com a sensação de comprazimento . Aqui a representação é referida inteiramente ao sujeito e na verdade ao seu sentimento de vida, sob o nome de sentimento de prazer ou desprazer; o qual funda uma faculdade de distinção e julgamento inteiramente peculiar, que em nada contribui para o conhecimento, mas somente mantém a representação dada no sujeito em relação com a inteira faculdade de representações, da qual o ânimo se torna consciente no sentimento do seu estado."

(Immanuel Kant, Crítica da Faculdade do Juízo, §1)

Por outras palavras, o que diz Kant aqui é que o juízo de gosto deve estar orientado unicamente para o objecto e não para o modo como esse objecto afecta o sujeito, sendo que formar representações com base na sensação de comprazimento institui julgamentos peculiares, relacionados unicamente com a pessoa que os forma e incapazes, portanto, de conferir qualquer espécie de conhecimento. Continua Kant:

"Chama-se interesse ao comprazimento que ligamos à representação da existência de um objecto. Por isso um tal interesse sempre envolve ao mesmo tempo referência à faculdade da apetição, quer como seu fundamento de determinação, quer como vinculando-se necessariamente ao seu fundamento de determinação. Agora, se a questão é saber se algo é belo, então não se quer saber se a nós ou a qualquer um importa ou sequer possa importar algo da existência da coisa, mas sim como a ajuízamos na simples contemplação (intuição ou reflexão). [...] Cada um tem que reconhecer que aquele juízo sobre a beleza, ao qual se mescla o mínimo interesse é muito faccioso e não é nenhum juízo de gosto puro. Não se tem que simpatizar minimamente com a existência da coisa, mas pelo contrário ser a esse respeito completamente indiferente, para em matéria de gosto desempenhar o papel de juiz."

(Immanuel Kant, Crítica da Faculdade do Juízo, §2)

Avaliar uma obra tem de ser um acto puramente desinteressado aquando do qual não está em actividade qualquer espécie de afinidade entre o sujeito que avalia e a obra em causa. "Ser completamente indiferente" a um jogo de futebol é ser capaz de se distanciar o suficiente do jogo para que o mesmo não produza qualquer espécie de efeito em si. Só com esta distanciação e com este desinteresse se está apto a avaliar esteticamente uma partida de futebol.

"Onde pois não é porventura pensado simplesmente o conhecimento de um objecto mas o próprio objecto (a forma ou existência do mesmo) como efeito, enquanto possível somente mediante um conceito do último, aí se pensa um fim. A representação do efeito é aqui o fundamento determinante da sua causa e precede-a. A consciência da causalidade de uma representação com vista ao estado do sujeito para o conservar nele pode aqui de modo geral designar aquilo que se chama prazer."

(Immanuel Kant, Crítica da Faculdade do Juízo, §10)

Todo o juízo estético deve ter por fim o conhecimento do objecto e não o efeito que o próprio objecto produz. Avaliar, portanto, uma partida de futebol com base no prazer que esta possa produzir no sujeito é, pois, estar concentrado no objecto em si e não no seu conhecimento, que é o que importa.

"Todo o fim, se é considerado como fundamento do comprazimento, traz sempre consigo um interesse como fundamento de determinação do juízo sobre o objecto do prazer. Logo, nenhum fim subjectivo pode situar-se no fundamento do juízo de gosto. [...] nem um agrado que acompanha a representação, nem a representação da perfeição do objecto e o conceito de bom podem conter esse fundamento de determinação."

(Immanuel Kant, Crítica da Faculdade do Juízo, §11)

O juízo de gosto não deve, pois, ser influenciado por aquilo que o objecto em causa proporciona, nem fundamentado por conceitos a priori daquilo que é bom. Uma partida de futebol deve ser analisada sem o espectro do prazer que causa e sem qualquer conceito formado previamente que defina em que parâmetros a mesma possa ser assinalada positiva ou negativamente. Só deste modo é possível ver futebol com um desinteresse perfeito e ser capaz de se inferir objectivamente acerca disso. O que sobra, pois, são as propriedades intrínsecas do objecto, propriedades que não tenham qualquer relação connosco mas apenas umas com as outras. No caso de uma partida de futebol, essas propriedades não serão, portanto, a emotividade, a intensidade, a quantidade de golos, etc. Isso são propriedades manifestadas pelos efeitos que uma partida produz. Aquilo que é verdadeiramente relevante é a qualidade intrínseca do jogo, a qualidade que dependa unicamente da funcionalidade do jogo. Essa qualidade, para quem assiste desinteressadamente ao jogo, só pode estar contida na própria essência do jogo. E a essência do jogo define-se por critérios de utilidade. Por outras palavras, a intensidade só será positiva enquanto útil; chutar à baliza só será positivo enquanto constituir a coisa mais útil a fazer naquele momento, etc. A qualidade de um jogo e, por conseguinte, a qualidade do futebol praticado por cada uma das equipas depende das acções colectivas, das decisões individuais, da reacção entre cada um dos elementos das equipas, da fricção entre dois blocos adversários, enfim, da utilidade de cada pormenor enquanto finalidade particular naquele instante.

Sintetizando, a qualidade de um jogo de futebol não tem a ver com a emoção, não tem a ver com golos, não tem a ver com vitórias, não tem a ver com malabarismos, não tem a ver com nada que não se cinja à utilidade de cada detalhe. A qualidade só pode ser interpretada de acordo com a utilidade daquilo que se faz a cada momento. E aquilo que é útil a cada momento varia, de acordo com a situação, não havendo por isso um critério universal estipulado a priori para defini-lo. O que é bom é-o mediante as circunstâncias da altura e o nível de qualidade de um jogo está ligado à quantidade de situações resolvidas adequadamente.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Hulk: um estudo

O jogo em questão foi o Atlético de Madrid - F.C. Porto; em análise, o avançado brasileiro Hulk. Esta análise não vem no imediato seguimento do jogo, o que acaba por ser interessante, visto que houve muitas opiniões favoráveis à exibição de Hulk, nomeadamente em Espanha.

1 mins: Cruzamento. (Arrancada pela direita; passa por dois adversários e cruza para Christian Rodriguez, que remata à meia-volta contra o guarda-redes adversário.)

8 mins: Boa opção. (Ganha o lance e dá em Raúl Meireles.)

8 mins: Remate. (Recebe de Raúl Meireles, vai à linha, tem tempo para assistir Lisandro, mas pára e opta por rematar por cima.)

10 minutos: Má opção. (Ganha o lance e finta; perde e ganha lançamento.)

12 minutos: Boa opção. (Recebe um passe vertical de Fernando e dá de frente em Lucho.)

14 minutos: Perda de bola. (Toque de calcanhar inconsequente e respectiva perda de bola.)

15 minutos: Faz falta. (Comete falta na frente.)

19 minutos: Cabeceamento. (Ganha lance de cabeça.)

20 minutos: Mau passe. (Ganha a bola no meio, roda para a esquerda e executa um passe que é interceptado; apesar disso, a bola sobe e acaba por chegar a Rodriguez.)

21 minutos: Boa opção. (Dá de frente em Raúl Meireles.)

21 minutos: Boa opção. (Dá de frente em Rodriguez.)

23 minutos: Mau tempo de salto. (Faz-se ao lance, mas calcula mal o tempo de salto e a bola passa-lhe por cima.)

27 minutos: Perda de bola. (Passa em velocidade por Paulo Assunção, mas insiste na jogada individual, tentando furar entre dois adversários e fica sem a bola.)

28 minutos: Golo falhado. (Boa desmarcação; fica isolado, mas tenta picar a bola e falha.)

30 minutos: Perda de bola. (Recebe de costas e perde a bola.)

33 minutos: Faz falta. (Comete falta no ataque.)

34 minutos: Má opção. (Recebe a bola, demora a soltá-la e acaba por entregá-la mal.)

35 minutos: Boa opção. (Ganha uma bola no meio-campo em falta, levando os jogadores do Atlético a parar; como o árbitro não apita, solicita Lisandro, que é desarmado.)

38 minutos: Faz falta. (Recebe a bola com a ajuda do braço.)

40 minutos: Faz falta. (Empurra, alegadamente, o defensor junto à linha de fundo.)

42 minutos: Remate. (Com espaço na esquerda, dribla Seitaridis e remata cruzado ao lado.)

42 minutos: Perda de bola. (Tenta fintar no meio de muita gente e perde a bola.)

45 minutos: Perda de bola. (Recebe e tenta rodar e ir em velocidade, mas é desarmado.)

47 minutos: Boa opção. (Recebe na esquerda e dá em Lisandro, que passa junto à linha.)

50 minutos: Sofre falta. (Tenta fintar no meio-campo e acaba por sofrer falta.)

51 minutos: Má opção. (Tenta fintar e ganha lançamento.)

53 minutos: Cruzamento. (Recebe a bola na direita e cruza, sem consequências.)

53 minutos: Faz falta. (Comete falta no ataque.)

58 minutos: Faz falta. (Recebe a bola, mas faz falta ao tentar protegê-la.)

58 minutos: Perda de bola. (Recebe a bola, vira-se, tenta o drible e perde.)

59 minutos: Sofre falta. (Recebe, segura e sofre falta.)

60 minutos: Cruzamento. (Recebe a bola, roda e cruza contra um defesa.)

63 minutos: Faz falta. (Comete falta sobre Paulo Assunção.)

64 minutos: Remate. (Responde a um cruzamento de Lucho, mas acerta com o ombro na bola.)

68 minutos: Má opção. (Recebe a bola, roda e perde; a bola sobra, porém, para Sapunaru.)

68 minutos: Má opção. (Recebe, roda e perde; ganha o lançamento.)

70 minutos: Perda de bola. (Recebe, tira um adversário do caminho e faz um passe em esforço, que é interceptado.)

71 minutos: Boa opção. (Recebe a bola, roda para a esquerda e dá na linha em Christian Rodriguez; na sequência da jogada, Lisandro faz golo.)

73 minutos: Má opção. (Recebe no meio-campo, vira-se e dá vertical em Lisandro, não respeitando o movimento do colega; a bola acaba no entanto por passar e Lucho vai apanhá-la.)

74 minutos: Boa opção. (Recebe a bola vinda de um ressalto, demora demasiado tempo a fazer malabarismos, mas acaba por decidir bem e dar recuado em Raúl Meireles que cruza.)

80 minutos: Perda de bola. (Recebe e tenta virar o flanco sem necessidade. O passe acaba por sair mal e é interceptado.)

80 minutos: Boa opção. (Dá a bola de frente.)

81 minutos: Perda de bola. (Recebe na linha, tenta vir para o meio e perde; ganha o primeiro ressalto, insiste no drible e volta a perder; ganha ainda mais dois ressaltos, mas acaba por perder a bola.)

87 minutos: Má opção. (Ganha o lance em falta, tenta o drible no meio de três adversários; é desarmado, mas ganha um canto.)

87 minutos: Má opção. (Bate o canto curto e recebe novamente a bola, entregando-a a Lisandro, que vem numa diagonal, no meio de dois adversários, num local onde não iria tirar qualquer proveito.)

90 minutos: Cabeceamento. (Ganha de cabeça para Lucho, desmarca-se para receber a bola à frente, mas não aguenta o ombro a ombro com o defesa espanhol.)

Coloquei em negrito aquilo que de positivo Hulk fez ao longo da partida. Vamos às conclusões:

1) 46 acções durante todo o jogo; 17 acções positivas; 37% de acções positivas.
2) Em 35 lances com a bola nos pés e com condições para fazer algo (exclui-se, portanto, os lances de bola parada ou as disputas de bola, ou os lances em que procura recuperar a bola, ou os lances em que não tem a bola totalmente dominada), teve 13 boas opções contra 22 más opções; 37% de boas opções.
3) Destas 22 más opções resultaram 14 perdas de bola para a sua equipa.
4) Fez 7 faltas (sendo que apenas numa se pode dizer que é duvidosa) e sofreu 2.
5) Fez 3 cruzamentos, sendo que apenas 1 deles levou perigo.
5) Fez 4 remates, sendo que apenas dois deles constituíram verdadeiro perigo.
6) Apostou em 16 acções individuais, sendo que foi mal sucedido por 12 vezes. Das 4 vezes em que conseguiu tirar alguma coisa desses lances, em 2 deles sofreu faltas, ambos estando muito recuado no terreno, e em apenas 2 lances a sua capacidade individual teve consequências positivas. As suas acções individuais tiveram, portanto, um aproveitamento de 12,5% e todas elas ocorreram junto às faixas.
7) Recebeu 15 bolas estando de costas e entregou apenas 4 de frente; em 73% das vezes, optou pelo mais difícil. Optando pelo mais difícil, perdeu 3 bolas na recepção, perdeu 7 ao tentar virar-se para o adversário, e apenas ganhou 1 apostando em rodar sobre si; teve 12,5% de sucesso em lances em que se tentou virar para o adversário.

Comentários: Já aqui o disse e reafirmo-o: Hulk tem capacidades individuais fantásticas. Mas tê-las, por si só, não é nada. Há que saber aproveitá-las e que saber pô-las ao serviço do colectivo. E Hulk não faz nenhuma das duas coisas. A sua capacidade de decisão, como se comprova, é bastante baixa. Deste modo, a sua colaboração, em termos colectivos, deixa muito a desejar e Hulk é, não raras vezes, prejudicial ao processo ofensivo da sua equipa. Aproximadamente, duas em cada três bolas que lhe chegam não têm o melhor destino. É muito. Deste modo, e reconhecendo que as capacidades individuais de Hulk podem ajudar o colectivo, há que tentar explorá-las o melhor possível e de forma a que essas capacidades prejudiquem o menos possível o colectivo. Como se comprova também pelo estudo, a sua capacidade de desequilibrar é especialmente útil nas faixas, com espaço, e quando não tem de rodar sobre si próprio para progredir. As duas vezes em que o seu poder de arranque conseguiu criar estragos na defesa contrária foi junto às linhas (se exceptuarmos o lance do golo falhado, em que há uma clara desatenção da defesa adversária e em que Hulk é lançado em profundidade). Deste modo, vemos que não só as suas qualidades são potenciadas junto às linhas como é nesse local que a sua fraca capacidade de decisão poderá prejudicar menos a equipa. Se há coisa que este estudo veio demonstrar é que Hulk deve participar o menos possível na manobra ofensiva da equipa, procurando isolar-se do colectivo o mais possível de modo a ter, quando receber a bola, espaço e margem de erro para tentar desequilíbrios individuais. Era isto que, por exemplo, fazia Quaresma, em tudo idêntico ao brasileiro (ainda que menos mau a decidir), quando ficava aparentemente perdido encostado a um flanco. Às vezes, podia passar ao lado do jogo, mas não só não era um elemento nocivo no ataque da equipa como também constituía uma opção constante para as transições ofensivas da mesma. Ora, um jogador deste tipo não pode jogar enfiado entre os centrais; um jogador que em 73% das bolas que recebe de costas não a dá de frente não pode jogar como ponta-de-lança, sob pena de a equipa não poder contar com o apoio vertical que um jogador na sua posição normalmente oferece. Outra coisa que o estudo vem comprovar é que Hulk não está, como se vinha dizendo, melhor em termos de compreensão de jogo. A insistência em virar-se para a baliza adversária, sempre que recebe a bola de costas, sabendo que a probabilidade de ter um adversário à ilharga é grande, chega a ser de principiante; a quantidade de bolas que perde é assustadora; a quantidade de faltas desnecessárias um abuso. Hulk não melhorou em nada desde que chegou ao nosso campeonato a não ser em confiança. Está hoje um jogador mais confiante e com muito mais liberdade para errar. Mas a sua capacidade de decisão permanece imutável. E permanecerá sempre, ao contrário do que se pensa. Isto porque uma coisa é melhorar a nível táctico, em termos de compreensão de jogo, de experiência, de confiança, outra coisa muito diferente é melhorar em termos intelectuais. E essa mudança é tão lenta quanto uma mudança ao nível técnico, por exemplo. E a razão é simples. São coisas que se aprendem vagarosamente, com o decorrer dos anos. Hulk é isto e será só isto. Agora, é possível retirar algum proveito disto, reconhecendo-se as limitações que isto tem. Hulk está longe de ser o melhor jogador do campeonato, como parecem querer fazer dele, à força, porque embora, de facto, seja fortíssimo quando arranca com a bola, não só não executa estas iniciativas com conta, peso e medida, como, na grande maioria das vezes as mesmas acabam por significar perdas de bola ou ataques inconsequentes. Correndo o risco de tecer uma afirmação aparentemente paradoxal, para que Hulk seja o mais útil possível ao colectivo tem de colaborar o menos possível com ele, ocupando uma posição expectante na grande maioria do tempo. Nessa altura, poder-se-á tirar todo o proveito dele e, aí sim, falar dele como um jogador ao nível de Lucho ou Lisandro.