domingo, 30 de dezembro de 2012

Gente Irritante e Coisas Ilógicas

Ser mais irritante do que João Querido Manha, e dizer tantos disparates quantos o do comentador residente da TVI, não é obra ao alcance de qualquer um. Basta, a título de exemplo, lembrar o que disse hoje tal senhor, a respeito do futebol apresentado pelo Sporting. Segundo João Querido Manha, Adrien Silva e os extremos leoninos estavam muito apagados. Tendo em conta que passou o jogo a elogiar Ricardo Esgaio, ou não percebeu que Esgaio era um dos extremos, ou referia-se apenas a Jéffren. E é aqui, precisamente, que está o problema. É que, se o Sporting fez alguma coisa de interessante, sobretudo na primeira parte, fê-lo exactamente por força das acções de Adrien e Jéffren, de longe os únicos jogadores em campo que mostraram algumas ideias. João Querido Manha não viu isso, como não vê, geralmente, grande coisa, e distorceu de tal modo o que se passou que não compreendeu que os jogadores que, na sua opinião, estavam menos inspirados, eram afinal os que estavam mais inspirados. Podia alguém perceber menos de futebol?

Comecei, porém, por falar em irritação, e por dizer que bater João Querido Manha nesse particular não é fácil. Não é fácil, mas é possível, como o deixou bem claro, também hoje, mas umas horas antes, João Gonçalves, comentador da Sporttv, durante o desafio que opôs o Norwich City ao Manchester City. Durante a partida, fui percebendo nos comentários ao jogo uma certa embirração, aparentemente gratuita, com um jogador que não conhecia, o lateral direito do Norwich, Russell Martin, hoje em campo porque o habitual titular se encontrava lesionado. Tantos foram os reparos às acções de Martin em campo, na maioria dos casos quando nada se justificava, que comecei a prestar atenção ao desempenho do jogador. Não me pareceu extraordinário, mas também não me pareceu abaixo do exigível para uma equipa como o Norwich. Aliás, comparado com os dois centrais, era um prodígio. João Gonçalves, porém, insistia. A dada altura, sempre que tocava na bola (acho que às vezes bastava aparecer no ecrã), João Gonçalves dizia que era "fraquinho", que tinha medo de subir, que fazia asneira atrás de asneira. E o jogador, para quem o via sem os óculos especiais ou os estupefacientes de João Gonçalves, não fazia nem mais nem menos do que a maioria dos seus colegas. Percebi, por fim, que era qualquer embirração estúpida, que João Gonçalves tinha acordado de manhã, tinha ido ver a convocatória do Norwich, e tinha decidido, talvez por lotaria, que ia dizer mal daquele jogador em particular. Depois de perceber isto, pensei: "Bonito, bonito, era o rapaz marcar um golo". Só para ver como reagia quem tanto mal dele dizia. E, às vezes, desejar coisas apenas para ver gente estúpida envergonhada com a própria estupidez não é um desporto inútil. Hoje, pelo menos, não foi. É que, passados 5 minutos, Russell Martin marcava mesmo o segundo golo do Norwich na partida. Quando João Gonçalves se apercebeu da coisa, calou-se durante alguns segundos, e depois lembrou-se de se safar dizendo que, às vezes, o futebol tem destas coisas e o improvável acontece. Talvez por ainda me não me ver satisfeito, quem quer que exerça vontades sobre o que se passa no mundo decidiu que João Gonçalves ainda não tinha o que merecia. E eis que, alguns minutos mais tarde, o improvável voltou a acontecer: Russell Martin fazia o terceiro do Norwich e o segundo da conta pessoal. João Gonçalves riu-se, resignado com o que lhe acontecia. E o que lhe aconteceu foi simples: escolheu um jogador que não costuma jogar, ainda por cima um lateral direito, num jogo contra uma equipa bem superior, em que a probabilidade de cometer erros era algo elevada, escolheu um jogador a dedo com quem pudesse embirrar durante todo o jogo, na esperança de que, no final da partida, pudesse dizer que tinha percebido desde o início que o rapaz não era suficientemente bom para o nível que lhe era exigido, passando assim por alguém que percebe muito do que está a dizer. Infelizmente, o tiro saiu pela culatra, e a esperteza de João Gonçalves deixou antes a nu a sua falta de carácter.

Não tanto falta de carácter, mas falta de inteligência é coisa que abunda na arbitragem pelo mundo fora. E não me refiro apenas a árbitros; as próprias leis são, muitas deles, profundamente ilógicas. Por que raio parece indiscutível que agredir seja mais grave do que uma entrada por trás? Não faz sentido. Quando, então, alguém agride um adversário porque este acabou de ter uma entrada violenta e o primeiro é expulso por agressão e o segundo vê apenas um mísero amarelo, não há uma profunda injustiça em causa? Falo disto porque é algo que defendo há já muito tempo e porque, hoje, também no jogo entre o Norwich e Manchester City, voltou a acontecer. Nasri foi atropelado, quando se preparava para receber a bola, por uma entrada de Bassong que o virou ao contrário, mas que o podia ter deixado inutilizado durante muito tempo. Percebendo o que acontecera, e o perigo que acabara de correr, levantou-se irreflectidamente e foi tirar satisfações do adversário. Encostou-lhe a cabeça, e parecia com vontade de ir mais longe. Não chegou propriamente a agredir, mas terá tido vontade, e ainda fez uma meia-tentativa, meio fruste, de dar uma cabeçada. Tal tentativa, ou o que quer que tenha sido, valer-lhe-ia a expulsão. Quanto a Bassong, ficou em campo, como não podia deixar de ser, com apenas um amarelo. Para a esmagadora maioria das pessoas, tal desfecho foi normal e condizente com as acções de cada um dos jogadores: um cometeu uma falta dura; o outro agrediu, ou tentou agredir, sem bola, um adversário. O problema de quem pensa assim é que não pensa assim. Deixem-me explicar: quem pensa assim por eles é o mundo que os rodeia. Acham que tal desfecho é normal porque estão habituados a que seja isso que acontece em situações idênticas. Mas que alguma coisa seja habitual não implica que seja correcta.

Imaginemos que Nasri agrediu mesmo, para facilitar a explicação. Que acção é mais danosa à integridade física do jogador: uma entrada violenta numa jogada, ou uma cabeçada no nariz? Que acção merece maior punição: uma entrada violenta que pode inutilizar um adversário, ou uma agressão que não põe em risco a integridade física de ninguém e não é senão uma reacção perfeitamente compreensível de alguém que acabou de ser vítima de uma entrada que o podia inutilizar? Que pessoa merece maior castigo: quem comete uma entrada dessas, ou quem, por sentir ameaçada a sua integridade, reage intempestivamente a essa entrada? E, já agora, que acção é mais cobarde: aproveitar o pretexto da disputa da bola para aleijar a sério um adversário pelas costas, ou agredi-lo frente a frente, em condições iguais? Como quer que se coloque a pergunta, parece-me óbvio que nada justifica que o segundo agressor mereça maior punição do que o primeiro. Na minha perspectiva, nem sequer merecem punição igual. Nunca compreendi muito bem aqueles jogadores que ficam muito ofendidos quando alguém os agride frontalmente (não falo de pisões, de cuspidelas, nem do que quer que seja feito sorrateiramente). Enquanto jogador, sempre fiquei muito mais ofendido com adversários que tinham entradas violentas, fossem elas deliberadamente maldosas ou simplesmente irresponsáveis, do que com adversários que me tentavam agredir. A menos que fosse alguma coisa muito grave (e a maioria das agressões, em futebol, não são graves), agressões não põem em causa a possibilidade de se continuar a jogar. E esse é que deveria ser o critério. Nasri - deixem-me dizê-lo - tinha toda a legitimidade para agredir o seu adversário. Mais do que isso: tinha legitimidade para agredi-lo e, fosse qual fosse a punição que sofresse, teria de ser menor que a do seu adversário. Lembrando-me de uma situação parecida famosa, num encontro entre o Barcelona e o Athletic de Bilbau, Maradona foi vítima de uma autêntica caça ao homem durante todo o jogo. A caça durou até à altura em que o argentino perdeu a cabeça e respondeu a uma entrada por trás que o poderia ter aleijado gravemente (e ele tinha vindo de uma lesão recentemente) com uma agressão que desencadeou uma batalha campal. De quem foi a culpa daquilo? Dos jogadores do Athletic e do árbitro da partida (ou das próprias leis do jogo, que não protegem quem deviam). A agressão de Maradona, como a de Nasri, é perfeitamente aceitável. E é por isso que não acho que agressões deste tipo (isto é, agressões que sejam consequência ou de outras agressões ou de coisas deste tipo) devam ser punidas do mesmo modo que faltas em jogo. O que estou a dizer pode parecer profundamente radical e ilógico, mas, pensem bem: que razão lógica há para que um jogador mereça a punição de não poder continuar a jogar só porque agrediu alguém que fez algo que poderia ter a consequência de impedir que ele continuasse a jogar? Coisas deste tipo deveriam merecer punições de outro tipo; nunca cartões vermelhos como os que merecem aqueles que motivaram a agressão.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Quiz (2)


1. Qual foi a primeira equipa italiana a marcar presença numa final da Taça dos Campeões Europeus?

2. Nos Jogos Olímpicos de 1996, em Atlanta, Portugal fez uma campanha extraordinária, ficando no 4º lugar, atrás de Nigéria, Argentina e Brasil. Quem compunha a equipa técnica que comandava essa selecção?

3. Em toda a História do Barcelona, qual foi o jogador que mais vezes foi expulso?

sábado, 8 de dezembro de 2012

Górgias

Uma das coisas engraçadas de um ser humano adulto, saudável e que vive em sociedade é o ter com quem falar acerca do que bem lhe apetecer. Acho muito bem que o possa fazer. É pena, porém, que seres humanos adultos, saudáveis e que vivem em sociedade não tenham por hábito falar em São Tomás de Aquino, ou discutir entre si os pressupostos teóricos da Teoria da Relatividade. É verdade que não o fazem ou por não saberem nada do assunto, ou porque, mesmo que calhem a sabê-lo, dificilmente estarão constantemente rodeados de quem também o saiba. Como acham, contudo, que devem conversar sobre alguma coisa, decidem escolher assuntos sobre os quais toda a gente acha que sabe alguma coisa. E, ainda que de Filosofia ou de Física Teórica poucos saibam falar, muitos são os assuntos que, normalmente, se consideram acessíveis a toda a gente. De música, de política e, claro está, de futebol, todos acham que sabem qualquer coisa. Dirá quem assim pensa que é natural que assim seja. Música, política e futebol são coisas simples, para as quais basta ter vista (ou audição, no caso da música). São assuntos que não exigem reflexões profundas, que não exigem conhecimentos abstractos, sobre os quais somos bombardeados todos os dias, e sobre os quais, mesmo que inconscientemente, formamos opiniões. Devo dizer que, obviamente, não concordo com isto. O pressuposto errado é o de que há assuntos cujo conhecimento requer esforços intelectuais profundos e assuntos cujo conhecimento é imediato. E a ideia de que se possa conhecer empiricamente o que quer que seja  é suficientemente absurda para que não mereça reprovação.

Para dizer a verdade, conheço tanta gente que sabe falar de São Tomás de Aquino quanta a que sabe falar de futebol. Não significa isto que conheça muita gente que saiba falar de São Tomás; pelo contrário, conheço é poucas que saibam falar de futebol. A principal diferença é que, embora o número dos que sabem falar de uma coisa e de outra seja sensivelmente o mesmo, o número dos que não sabem falar de futebol mas que, ainda assim, insistem em fazê-lo é bem maior do que o número dos que não sabem falar de São Tomás mas falam. Como referi acima, assim é porque se julga que futebol, ao contrário de São Tomás, é coisa de que se pode saber empiricamente. Como nos conta Platão, dos idiotas que, por saberem uns truques de retórica, julgavam que podiam falar de todos os assuntos melhor até do que os especialistas em tais assuntos, tratou exemplarmente Sócrates quando se encontrou com Górgias. Tipicamente, pessoas como Górgias não sabem nada de nada, não têm qualquer arte; mas, como falam, por exemplo, de medicina para plateias de não-médicos, podem persuadir essa plateia. Para Sócrates, tais pessoas eram nocivas à cidade, e aquilo que faziam, disseminar opiniões, era uma das actividades menos nobres que conhecia. A prática da lisonja, se aplicada aos Górgias que falam hoje sobre futebol, encontraria extraordinária manifestação no blogue 442. Aqui fala-se de futebol como as massas gostam que se fale; é-se clubista, fala-se de escândalos e de controvérsias públicas, dizem-se banalidades e contam-se mentiras acerca de tudo e mais alguma coisa. Tal como Sócrates, acho que pessoas como as que por lá falam fazem mais mal do que bem. Os disparates que dizem e a lisonja que praticam são consequência da sociedade livre em que habitam. Mas a liberdade de que gozam não os isenta de serem estúpidos. Tal estupidez reside (e para isso serviu o primeiro parágrafo) em acharem que percebem de futebol só porque têm olhos e já viram muitos jogos. Aliás, também falam de música, de vez em quando. Acontece, todavia, que perceber de futebol não depende nem do tempo que se despende a ver futebol nem da capacidade de visão de ninguém; depende, sim, de saber pensar, como aliás depende qualquer tipo de conhecimento, a respeito de qualquer outra coisa. O que estou a afirmar, para quem ainda não percebeu, é que os palermas do 442, que a dada altura da vida terão percebido que eram demasiado estúpidos para que pudessem falar de assuntos mais complexos e acharam que se deviam dedicar a assuntos mais simples, não percebem que o assunto de que tratam é tão complexo como aqueles dos quais, por serem estúpidos, decidiram não falar. Perceber de futebol, perceber a sério de futebol, é tão complicado como perceber de Filosofia ou de Física Teórica. E todos aqueles que acham o contrário (e são muitos), como reconhecem que são demasiado estúpidos para falar de coisas complicadas, mas conservam, ainda assim, o desejo de dar à língua, devotam-se a falar de assuntos sobre os quais, no entender deles, é fácil ter opiniões. Tal como, para Sócrates, a sociedade seria melhor se as pessoas passassem mais tempo caladas, o debate sobre futebol seria bem melhor se não existisse.

Vem isto a propósito de uma recente opinião do Master Kodro no seu clube de sofistas da bola, a respeito do jogo que opôs o Barcelona ao Benfica. Diz o seguinte este Górgias de meia-tigela, acerca daquilo a que decidiu chamar "a pureza do sistema":

"o Barcelona, na primeira parte, foi um buraco defensivo. Parece que não é preciso esperar para ver o que será o trabalho de Guardiola noutro lado. Ontem, com muitos outros nomes, já se conseguiu perceber onde é que começa e acaba o peso do sistema e o dos nomes que brilhantemente o interpretam."

Implícita no comentário está a ideia, aliás bem consensual, de que o trabalho de Guardiola dependeu praticamente apenas dos jogadores que interpretavam o seu modelo. Como é sabido, discordo inteiramente disto. E confesso que, pelo contrário, se houve coisa que ficou bem visível no jogo de quarta-feira foi que o modelo catalão tem tanta força que sobrevive à ausência dos seus melhores intérpretes. O nosso Górgias acha que um jogo serve de exemplo para alguma coisa; acha que problemas defensivos, ainda por cima apenas manifestos na primeira parte, permitem fazer inferências gerais; e acha ainda que o trabalho de Guardiola, que já não tem nada a ver com este Barcelona, tem a ver com o que se passou na quarta-feira. Se isto não são três ideias das mais estúpidas que se podem ter, não sei o que serão. Disse-se, acerca do jogo, que o Benfica dispôs de oportunidades suficientes para ganhar o jogo, que o Benfica foi superior ao Barcelona, e que o Barcelona, sem as suas principais pedras, foi uma equipa banal. O que posso dizer disto é que é uma idiotice pegada. Não sei que jogo viram estas pessoas, mas sendo verdade que o Benfica podia ter ganho (houve até quem dissesse que podia ter goleado), não é menos verdade que o Barcelona também o podia (aliás, o Barça teve mais oportunidades claras do que o Benfica). Na segunda parte, o Benfica não existiu. E, mesmo na primeira, as oportunidades que conseguiu criar foram mais a partir de erros catalães do que propriamente depois de jogadas desenhadas com critério. O Barcelona, com dez suplentes em campo e um que costuma ser titular mais vezes do que os outros (David Villa) a fazer um frete, com metade da equipa a rondar os 20 anos, a jogar a feijões, contra uma equipa que pressionou alto, teve 72% de posse de bola (e não foi só na sua defesa, como o disse Jorge Jesus), criou variadíssimas ocasiões, e, não obstante alguns erros defensivos, quase sempre erros individuais (de Montoya e de Adriano, a maioria das vezes), controlou amplamente a partida. Mas, ainda assim, há quem ache que o jogo tornou evidente que o sistema não tem nada a ver com o sucesso de Guardiola. Perdoe-se-lhes a estupidez.

Quanto ao que diz o nosso Górgias, é razoável que se lhe conceda que os suplentes do Barcelona não façam um Barcelona tão forte quanto o fariam os titulares. Mas também não sei em que equipa do mundo é que tal acontece. O que sei é que, mesmo com os suplentes, mesmo com uma base de miúdos, mesmo contra uma das 20 melhores equipas da Europa, o Barcelona impôs o seu estilo. Sim, teve alguns erros defensivos, é verdade. Mas, talvez o Górgias não tenha visto os jogos do Barcelona esta época, erros defensivos (sobretudo quando Piqué e Puyol não são a dupla de centrais) têm sido coisas que têm acontecido muito. Achar que permitir 4 ou 5 oportunidades a um adversário tornam evidente que um modelo de jogo não presta, quando o mesmo modelo lhes permitiu 72% de posse de bola contra uma equipa que pressionou alto (não foi o Celtic, enfiado na toca), ou seja, uma posse de bola sempre dentro do bloco do adversário e não à volta, é francamente estúpido. É evidente que, com estes jogadores, o modelo não é tão forte. Mas isso não invalida que, por si só, o modelo não tenha virtudes que nenhum outro tem. Também concordo com o Górgias: não é preciso esperar pelo próximo trabalho de Guardiola. Mas, ao contrário dele, não acho que seja preciso esperar por tal coisa não porque o jogo desta semana tenha evidenciado alguma coisa, mas porque não preciso de ver outra equipa a jogar à Barcelona para perceber que o que Guardiola fez não foi simplesmente adequar um conjunto de jogadores ao modelo que melhor os servia. Os estúpidos precisam invariavelmente de ver coisas e de verificar hipóteses. E mesmo os estúpidos que dizem que já não precisam de verificar nada dizem-no depois de terem verificado alguma coisa (ou julgam que verificaram). Também assim se distingue quem deveria estar calado.

Antes de terminar, 2 reflexões:

1) Pedro Henriques passou o jogo a dizer que aquele Benfica era mais forte do que aquele Barcelona. O Pedro Henriques, para além de estúpido, também é um bocado Górgias. Há 2 coisas a dizer sobre isto. A primeira é que, ao contrário do que Pedro Henriques pensa, o valor de uma equipa não é simplesmente a soma do valor absoluto de um jogador. Mas também não vou argumentar contra alguém que passou o jogo a dizer que era preciso marcar individualmente no meio-campo, pois o Barcelona tinha superioridade numérica nessa zona. As jaimepachequices não merecem esforços deste tipo. A segunda coisa é que, aceitando ainda assim o argumento de Pedro Henriques de que o valor de uma equipa depende da soma do valor das suas unidades, não é claro que aquele Benfica fosse assim tão superior àquele Barcelona. Disse o antigo defesa-esquerdo de segunda categoria, entretanto promovido a comentador e a macaquinho amestrado, que o único jogador do onze catalão que encaixava no onze benfiquista era David Villa. Será que ele viu Puyol em campo? E Song? E Thiago Alcântara? Será que Melgarejo é melhor do que Planas? E não era o Benfica que andava atrás do Tello? Se calhar ficava por aqui. Não, não fico. O André Gomes até tem qualidade, mas dizer que o Thiago Alcântara, o Rafael Alcântara, e sobretudo o Sergi Roberto não jogavam no seu lugar é no mínimo falta de medicamentos. Pelo contrário, eu é que vejo muito poucos jogadores do Benfica que pudessem tirar o lugar aos que jogaram na quarta-feira pelo Barcelona: Artur, Garay e Nolito seriam os únicos.

2) Há quem critique Rodrigo por não ter passado a bola a Nolito, na primeira grande ocasião do jogo. Gosto muito de gente que gosta de certos jogadores, mas que depois os critica por fazerem aquilo que sempre fizeram, ou seja, tomar más decisões. Se gostam de um tipo que é rápido e tem um bom pé esquerdo, e se o preferem ver em campo a alguém como Saviola, que não parecia fazer a diferença em termos individuais, não podem gostar apenas das coisas boas que ele tem. Têm de gostar de tudo. O Rodrigo sempre foi isto e nunca será outra coisa. Se dão tanta importância aos seus atributos técnicos e físicos, não podem ser incoerentes ao ponto de lhe criticarem aquilo em que nunca foi bom. Se gostam de ananás, não podem criticar um vendedor de ananás por não vender alperces no dia em que há apetite por alperces. Eu, que nunca gostei dele, estou à vontade para dizer mal do rapaz. É um jogador banalíssimo, que tem apenas uma característica interessante: as diagonais nas costas da defesa a solicitar o último passe. Tirando isso (o que dá para aí 99% do jogo), Rodrigo é banal. As suas decisões raramente são boas, e nunca jogaria numa equipa como eu entendo que uma equipa deve ser. O pai de Rodrigo veio defender o filho, tentando isentá-lo com uma frase maravilhosa, dizendo que ele não vira Nolito. Se não fizesse parte de um jogador de futebol ver os colegas, sobretudo em lances como este, tal frase podia ser uma boa desculpa. Como faz, não é desculpa nenhuma; é estupidez. Prova que o pai de Rodrigo não sabe que jogo o filho joga. Tal como o filho, de resto.

domingo, 25 de novembro de 2012

O Talento e os Instintos

No passado, algumas das maiores discussões neste blogue tiveram a ver com a ideia de instintos. Para muitos, o talento de um extraordinário jogador de futebol não se explica; é algo que nasceu com ele, e que, potenciado pela prática, cresceu até se tornar no que é hoje. Por cá, tentámos sempre dissuadir as pessoas deste género de explicação, argumentando que o talento, qualquer que seja, não é inato, mas antes o resultado manifesto de um processo de aprendizagem, muitas vezes inconsciente, que decorre ao longo da vida. Aqueles que acreditam na primeira teoria têm invariavelmente uma crença naquilo que consideram ser "instintos" que nós não temos. É precisamente esta crença que importa, portanto, rebater, agora que me apetece voltar ao assunto. Ora, uma das objecções à ideia de que os seres humanos não têm instintos propriamente ditos (para além, evidentemente, de instintos primitivos como o instinto de sobrevivência) é a observação de comportamentos instintivos em espécies animais. Dirá quem creia em instintos que, se os animais os têm, os seres humanos também os devem ter. O problema é que há pelo menos 150 anos de pensamento filosófico e científico que está a ser ignorado, quando se pensa assim.

De maneira a poder explicar a sua teoria acerca da evolução de todas as espécies, Charles Darwin precisava de mostrar que certos instintos (às vezes extraordinariamente sofisticados) em certos animais não podiam ser características próprias com as quais tinham sido expressamente criados. De acordo com os criacionistas, certos comportamentos de certas espécies, sobretudo comportamentos muito complexos, só podiam ser justificados se se considerasse que tais espécies haviam sido desenhadas originalmente para se comportarem assim, agindo, portanto, por instinto. Como Darwin precisava de refutar a ideia de que as espécies tinham sido criadas tal como, no seu tempo, eram, precisava também de refutar a ideia de que os instintos eram características especiais não adquiridas pela espécie ao longo da sua evolução. Aquilo que, para muitos, eram comportamentos inexplicáveis, teria de ser explicado, por isso, à luz da teoria da Selecção Natural. Todo o comportamento instintivo (ou aquilo a que chamamos comportamento instintivo) era resultado de um longo processo de evolução, sempre a favor do benefício para a espécie. Um dos exemplos mais difíceis de explicar era o das abelhas. Para muita gente, terem as abelhas a habilidade quase matemática de construir uma colmeia de tal modo que esta comportasse a maior quantidade possível de mel com o menor dispêndio de cera possível era sinal de que tinham sido criadas providencialmente. Para Darwin, no entanto, tal habilidade não era resultado de um instinto providencial, mas sim de um processo de selecção que, em cada geração, extinguira as abelhas menos aptas a sobreviver, dando origem a uma espécie com maiores probabilidades de prevalecer:

"(...) as I believe, the most wonderful of all known instinct, that of the hive-bee, can be explained by natural selection having taken advantage of numerous, successive, slight modifications of simpler instincts; natural selection having by slow degrees, more and more perfectly, led the bees to sweep equal spheres at a given distance from each other in a double layer, and to build up and excavate the wax along the planes of intersection. The bees, of course, no more knowing that they swept their spheres at one particular distance from each other, than they know what are the several angles of the hexagonal prisms and of the basal rhombic plates. The motive power of the process of natural selection having been economy of wax; that individual swarm which wasted least honey in the secretion of wax, having succeeded best, and having transmitted by inheritance its newly acquired economical instinct to new swarms, which in their turn will have had the best chance of succeeding in the struggle for existence." (Charles Darwin, On the Origin of Species, ch.VII)

Sendo que, para suportar uma grande quantidade de abelhas durante o inverno, é indispensável uma grande quantidade de mel, e sendo que a segurança de uma colmeia depende de uma grande quantidade de abelhas, fica em posição favorável, na luta pela sobrevivência, a colmeia em que, no processo de construção dos favos que a compõem, se gastar menos mel (a cera da construção resulta da segregação de mel). Diz Darwin, por isso, que é flagrantemente vantajoso que uma abelha, através de uma pequena modificação dos seus instintos, seja levada a construir as células da colmeia o mais próximo possível umas das outras, contribuindo para economizar cera. De um modo, em grande medida, arbitrário, o enxame cujas abelhas precisem, portanto, de segregar menos cera será o mais bem sucedido. Ao fim de algum tempo, será a descendência desse enxame que, por estar assim favorecida, prevalecerá. Assim se foi refinando a espécie, e assim se tornou no que é hoje. Aquilo que a caracteriza, e que temos tendência a chamar "instinto", por não compreendermos de onde vem a sua sofisticação, é afinal tão-somente uma característica que, ao longo da evolução da espécie, foi sendo aprimorada pelas próprias leis da natureza e pela necessidade de sobrevivência a que todas as espécies se vêem sujeitas. Aos poucos, abelhas com "instintos" menos favoráveis foram desaparecendo, sendo por isso natural que as espécies prevalecentes apresentem "instintos" que nos parecem hoje tão aperfeiçoados.

Quando, muito genericamente, se fala em "instinto" animal, esquece-se de que aquilo de que se está a falar é fruto de um longo processo evolutivo, de uma complexa luta pela sobrevivência, e não propriamente uma característica providencial. Por força desse esquecimento, acredita-se muitas vezes que tenham sido igualmente providenciados aos seres humanos certos instintos. Ora, se, tal como nos animais, nenhum ser humano alguma vez nasceu com instintos especiais para o que quer que seja, se todos os seus "instintos" foram adquiridos ao longo da sua evolução enquanto espécie, e sempre em função de necessidades de sobrevivência, e se, por fim, desde que há civilização e, portanto, desde que a luta pela sobrevivência deixou de ser o motor evolutivo da espécie, a tendência evolutiva da humanidade, propriamente dita, já não é a da descendência daqueles que, em cada geração, reúnem o conjunto de características mais favoráveis à sobrevivência, então não há diferença substancial, em termos de "capacidades inatas", entre um etrusco, por exemplo, e um homem do século XXI.

O principal corolário desta demonstração de que, instintivamente, somos substancialmente iguais uns aos outros e iguais, pelo menos, aos nossos antepassados dos últimos 4000 anos, é o de que, a respeito de actividades mais complexas, é essencialmente aquilo que fazemos em vida e não as características especiais com que nascemos que determinam as distinções particulares entre indivíduos. Evidentemente, há dentro da espécie não só grupos étnicos com algumas características bastante distintivas como também, dentro de cada grupo étnico, indivíduos com características específicas que os distinguem uns dos outros. Igualmente evidente é que tais características permitem a certos grupos étnicos que se distingam em certas actividades, assim como permitem a certos indíviduos distinção noutras. Mas em actividades complexas, em actividades cujo desempenho requer muito mais do que o aperfeiçoamento de certas características biológicas (que são distintas de indivíduo para indivíduo), em actividades em que é o intelecto, e o uso que se faz dele, que determina quais os indivíduos que melhor a desempenham, tais distinções dentro da espécie são absolutamente insignificantes. Em actividades a respeito das quais costumamos falar de talento, ou génio, como sejam, por exemplo, actividades artísticas, filosóficas, ou científicas, o que distingue os melhores dos outros é o percurso de vida com que se definem. Mozart não se distingue de Salieri por ter nascido com um dom maior, por os deuses gostarem mais dele, ou por saber mais de música. Distingue-se porque a vida de Mozart (e tudo o que ela inclui) foi diferente da vida de Salieri. Só isto. De igual modo, o talento de um jogador de futebol é o resultado de quem ele é, de tudo o que aprendeu e apreendeu a respeito de futebol, mas também do conjunto de experiências que, para o mal ou para o bem, o modificaram. O talento de Messi não nasceu com ele; começou, sim, a ser desenvolvido bastante cedo (o que, para um jogador de futebol, costuma ser determinante) e foi sendo trabalhado ao longo da sua vida, muitas vezes inconscientemente, através de resposta a estímulos de ordem futebolística ou não. Os instintos de Messi são, por assim dizer, a face visível desse talento; são as respostas que dá consoante aquilo que foi apreendendo ao longo da vida, dentro e fora do campo. E, embora praticamente instantâneas e embora aparentemente irreflectidas, essas respostas são o culminar de tudo o que viveu, de tudo o que experimentou, dos erros que cometeu, das coisas que descobriu, etc.. O talento não é senão uma construção altamente complexa, e os mais talentosos são não os que gozam de qualquer coisa indefinida com a qual nasceram providencialmente, mas aqueles cujas respostas melhor evidenciam a solidez de tal construção.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Sem palavras

O que é ser jogador de futebol? É isto:

sábado, 3 de novembro de 2012

Elasticidade

Não é escassa a discussão, um pouco por todo o lado, em torno de sistemas tácticos. Para muitos, o sistema táctico é apenas um pormenor, e o desempenho de uma equipa depende muito mais das dinâmicas a que ela obedece; para outros, pelo contrário, o sistema táctico é absolutamente determinante. Confesso que ambas as hipóteses me parecem redutoras. Como é evidente, o 433 de José Mota é muito diferente do 433 de Guardiola, embora o desenho táctico seja igual. Daí não se segue, todavia, que a essência do Barcelona de Guardiola não esteja intimamente ligada ao desenho do 433. Aquilo que estou a querer insinuar é que, sem esse desenho, nada daquilo seria assim, ou seja, que embora o desenho táctico não seja suficiente para que uma equipa tenha qualidade, é-lhe necessário.

Um 433 rígido não é bom só porque é um 433. Se há coisa que caracterizou o 433 de Guardiola foi a sua absoluta elasticidade. Os extremos não eram extremos. Raramente eram eles quem dava profundidade e raramente tinham movimentos verticais. Muitas vezes, eram até médios por vocação quem jogava na posição de extremo, precisamente por causa dos movimentos interiores. O avançado também não era avançado, e, se quisermos, os médios não eram médios. Do meio-campo para a frente, havendo referências para cobertura e apoios, havia uma elasticidade tal que a equipa não obedecia a padrões de comportamento convencionais. Por elasticidade não se deve entender, no entanto, liberdade. Os jogadores, não estando presos a posições rígidas, não tinham também liberdade para tudo e mais alguma coisa. Aquilo que tinham era liberdade para esticar o desenho, para lhe conferir elasticidade e imprevisibilidade. Se há coisa que Tito Vilanova flagrantemente decidiu não continuar foi essa elasticidade. Daí a sua recusa, por exemplo, em adoptar o 343 de Guardiola (um sistema ainda mais elástico que usou, até agora, apenas uma vez, se não estou em erro, durante 15 minutos, e que não retomou, apesar do sucesso que teve), e em jogar com médios na posição de extremos. O seu 433 é muitíssimo mais rígido do que era o de Guardiola, e ainda que os jogadores mantenham hábitos de apoios e coberturas semelhantes, a equipa funciona ligeiramente pior precisamente porque não parece existir vontade de forçar a sua elasticidade. Com Vilanova, Messi manteve a sua liberdade. Mas isso talvez apenas porque é Messi. Os extremos são mais extremos do que nunca (tanto ou mais do que na primeira época de Guardiola), e foi-lhes retirada a iniciativa de virem para dentro. A equipa é mais previsível por ser menos elástica, por fomentar menos as combinações interiores e por deixar menos a cargo dos laterais a profundidade de que precisa.

Um dos principais méritos de Guardiola foi precisamente ter conseguido, de ano para ano, aumentar o nível de elasticidade da equipa (culminando com aquele extraordinário 343), sem que se rompesse o seu tecido táctico. Nesse aspecto, superou amplamente dois dos seus mestres, Louis Van Gaal (sobretudo pelo seu 343 losango no Ajax) e Marcelo Bielsa, cujas equipas são, sem dúvida, das mais tacticamente elásticas da História do jogo. Outros há, mais conservadores, que preferem não arriscar tanta elasticidade, temendo rupturas em tal tecido. É o caso de Vilanova, que tem a sorte, porém, de ter herdado uma equipa com processos formidáveis. Um terceiro grupo de treinadores existe para quem a elasticidade parece ser importante, mas que não sabem de que modo a podem fomentar sem que arrisquem descompensações. São os casos, a meu ver, de Jorge Jesus e de Wenger. Se Wenger tem o problema de, pretendendo uma elasticidade acima de tudo horizontal, muito parecida com a do Barcelona, com as movimentações a serem essencialmente do exterior para o interior, e de dentro para fora, não perceber como é que tal ideia se deve suportar em termos de coberturas, apoios e compensações, Jesus tem o defeito de gostar de uma elasticidade de tipo diferente, mais vertical, de permutas entre jogadores de sectores diferentes, com movimentos essencialmente de trás para a frente, o que provoca uma vertigem difícil de controlar e buracos tácticos difíceis de preencher. Bielsa, por sua vez, é um misto dos dois, virtuoso como ambos, mas com os defeitos, não tão acentuados, é certo, e muitas vezes potenciados por alguma falta de qualidade individual dos seus jogadores, de ambos.

Ora, dificilmente Guardiola conseguiria a agilidade táctica que conseguiu se não a tivesse fundado num sistema táctico como o 433 (ou mais tarde como o 343). Em 442 clássico, por exemplo, jamais conseguiria o jogo entre linhas que conseguiu, jamais conseguiria a quantidade de apoios centrais que conseguiu, jamais conseguiria ter sempre os jogadores juntos uns dos outros e juntos do local onde a bola está. O 433 permite, por definição, maior elasticidade do que um 442 clássico, embora haja equipas mais elásticas em 442 clássico do que em 433. O problema não está, pois, apenas nas dinâmicas da equipa, mas também, e muito significativamente, no sistema táctico que se adopta. Se o sistema de Wenger fosse o 433 (e não o 4231), se calhar não teria metade dos problemas que tem. Se Mourinho preferisse jogar com Modric ao lado de Kaká ou Ozil, e não ao lado de Xabi Alonso, se calhar o seu Real daria o salto qualitativo de que precisava. Em sentido contrário, parece-me ser, por exemplo, a grande mais-valia de Vítor Pereira. A elasticidade táctica de uma equipa depende muito das ideias do treinador, daquilo que é pedido aos jogadores, das características dos jogadores, e das dinâmicas treinadas. Mas, no limite, sistemas tácticos diferentes permitem níveis de elasticidade diferentes. Na minha opinião, o 433 (com um só médio-defensivo) e o 442 losango são das tácticas cujo potencial de elasticidade é maior, embora nenhuma delas supere o 343 losango. A equipa que não jogue em nenhum destes sistemas poderá ter processos de jogo interessantes (como a de Jorge Jesus ou de Arséne Wenger), poderá estar optimamente mecanizada (como o Real Madrid de Mourinho), poderá até ser extraordinariamente competitiva (como o Atlético de Madrid de Simeone), mas dificilmente atingirá a excelência. A consequência mais relevante dessa caraceterística a que estou a chamar "elasticidade" é a imprevisibilidade da equipa. Como é óbvio, elasticidade a mais pode provocar, para além de imprevisibilidade, caos e desorganização, pelo que o truque é perceber de que modo, em que condições, e em que medidas, deve ser desejada. Alguns sabem-no. E nenhum desses joga em 4231 ou em 442 clássico.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Kyle Walker e o que Não é um Lateral

A primeira vez que vi Kyle Walker a jogar, pela selecção sub-21 inglesa, pensei imediatamente: "este tipo, em poucos anos, vai ser adorado por uma grande falange de mentecaptos, e vai ser considerado dos melhores laterais da Europa". É claro que Kyle Walker, na minha opinião, não é nada disto. Mas não me enganei. Em pouco tempo, começavam a babar-se por ele aqui, e hoje ninguém lhe discute a qualidade, como por exemplo aqui. A razão pela qual adivinhei a reputação futura de Kyle Walker é a mesma razão pela qual ninguém lhe discute o valor: a grande maioria das pessoas acha que o lateral é uma coisa que facilmente se percebia que Kyle Walker viria a ser. A saber, o jovem inglês é um prodígio em termos de força, é rápido, é muitíssimo agressivo, compenetrado, e tem técnica suficiente para fazer o corredor sem problemas. Além disso, tem uma mentalidade competitiva invejável. Este conjunto de atributos, num lateral, é hoje em dia inquestionável. Noutras posições do terreno, é mais difícil adivinhar quando um jogador vai ser apreciado ou não, mas um lateral com estas características não podia dar errado. E é este o problema. Como estas pessoas acham que um lateral tem um conjunto de tarefas para desempenhar, aquele que tiver este tipo de atributos será sempre preferido a outro tipo de jogador. Sabem que, aconteça o que acontecer, seja contra quem for, Kyle Walker vai conseguir sempre fazer o corredor com a mesma pujança, entregar-se-á sempre de maneira total ao jogo, e perderá poucos duelos individuais. Esquecem-se do principal, de que um jogador de futebol, seja lateral ou não, não é nada disto.

Para a grande maioria das pessoas, um lateral, nos dias que correm, tem de ser alguém que, para além de competente defensivamente, tem de ser capaz de fazer o corredor todo. De acordo com isto, avaliam a qualidade de um lateral recorrendo apenas a duas análises: se é forte nos duelos defensivos, e se é capaz de subir, combinar, e cruzar para área. Sem grandes rodeios, nada disto é importante num lateral, a meu ver. As competências defensivas vão muito para além da competência nos duelos de um para um, e as competências ofensivas são muito mais do que simples movimentos verticais e qualidade técnica no cruzamento. Um lateral que não se saiba relacionar com os seus colegas da defesa, que não saiba o que é uma cobertura, que não saiba fazer contenção, que pareça uma barata-tonta atrás do atacante que lhe aparecer por perto, que não saiba tomar uma boa decisão sem bola, pode ser um prodígio em termos de força, pode nunca ser ultrapassado em velocidade, pode ganhar muitas bolas divididas, mas não será um bom lateral em termos defensivos. Do mesmo modo, um lateral que não saiba jogar para dentro, que não saiba dar um apoio no momento certo, que não seja capaz de escolher a melhor opção de passe, que não tenha critério no momento de tomar uma decisão, pode ter um pulmão invejável, pode fazer o corredor milhares de vezes por jogo, e pode ser tecnicamente exemplar a cruzar, que não será um bom lateral em termos ofensivos. Sem cérebro, confesso que não consigo perceber como é que alguém possa ser jogador de futebol. Mas a grande maioria das pessoas continua a negligenciar os atributos intelectuais de um jogador, e é por isso que Kyle Walker tem o estatuto que tem, estatuto esse que há-de até tornar-se maior.


Para exemplificar o que digo, podia trazer lances de Cédric Soares. Felizmente, o próprio Kyle Walker poupa-me a ter de usar o jovem leão, cujo estatuto adquirido é em tudo idêntico ao caso do inglês, embora seja um jogador com características diferentes. Apesar de o inglês ter acumulado variadíssimas asneiras, só consegui encontrar o lance do segundo golo do Manchester, na vitória suadíssima dos pupilos de Villas-Boas em Old Trafford no passado sábado, e é dele apenas que falarei. Ainda a bola vem no meio-campo e já se percebe, embora a imagem não abra, que o posicionamento do lateral direito é já defeituoso: parando-se o filme no sétimo segundo, vêem-se 3 defesas em linha, do lado da bola, e um lateral direito que não está onde devia, que nem sequer aparece, que está demasiado aberto, porventura colado ao extremo que lá anda. Mas é quando Van Persie vem para a esquerda, com a bola controlada, e Kagawa flecte para o meio, que o comportamento inacreditável do lateral do Tottenham mais deve ser destacado. Kagawa invade precisamente o espaço entre Walker e o central do seu lado, aproveitando o erro inicial, e o lateral vai atrás dele, até ficar vários metros atrás da linha defensiva. No momento em que Van Persie dribla o seu opositor, Walker perde a fixação pelo japonês, mas mantém o seu posicionamento atrás da linha defensiva, e longe do central. Como se não bastasse, e apesar de o holandês conduzir agora a bola para a zona central, Kyle Walker abre na direita, cavando um fosso ainda maior entre o central e ele próprio. Kagawa não precisa agora sequer de se desmarcar para receber um passe pelo meio e ficar isolado frente ao guarda-redes dos londrinos: um golo fácil, resultante de um erro primário. Ao longo deste jogo, e ao longo de outros jogos, Kyle Walker cometeu vários erros básicos deste tipo. Está preocupado com as coisas erradas, não tem capacidade para perceber e ler o jogo, momento a momento, não é capaz de decidir bem, e não percebe sequer o que faz em campo, a maioria das vezes. A incapacidade para reajustar o seu posicionamento consoante as coordenadas do ataque adversário mudam é assustadora. Mas como tem pulmão, é forte fisicamente, e até dá uns toques, fizeram-no acreditar que podia ser jogador. E pode, de facto. Isto porque no futebol há mediocridade suficiente para que alguém assim possa chegar a ser um jogador de topo.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

A Cabecinha de Mascherano e o Treino de Certas Habilidades

O jogo é o Barcelona-Granada, da última jornada da Liga Espanhola, e o lance ocorre já no final da partida, antes, porém, de o Barcelona chegar à vantagem. O Barcelona não fez um jogo extraordinário, denotando uma vez mais pouca elasticidade, coisa que Tito Vilanova parece não compreender, ao não abdicar do seu 433 rígido, com extremos que servem praticamente apenas para dar profundidade à equipa. Os seus pupilos dominaram a partida, criaram algumas ocasiões de golo, mas não conseguiram desmanchar a defesa do adversário como tão bem o faziam no passado. Tudo melhorou quando Xavi entrou e, sobretudo, quando Tito Vilanova, ao trocar Adriano por Tello, experimentou, pela primeira vez desde que está ao comando da equipa, o 343 losango de Guardiola. Para bem do futebol, seria bom que Tito tivesse percebido aquilo que conseguiu, ao mexer assim no jogo. A partir desse momento, sobretudo, o jogo desenrolou-se praticamente apenas dentro da área do Granada e à saída dela, com o Barça a conseguir muitas combinações curtas em zonas bastante avançadas e a conseguir pressionar muito mais alto. Os últimos 15 minutos foram os únicos que valeram mesmo a pena, e, aí sim, voltou a pairar sobre Camp Nou a aura de Pep Guardiola.

A vitória acabaria por chegar, muito naturalmente, mas não sem que antes a equipa passasse por um susto, no único lance, em todo o jogo, em que, de facto, o Granada podia ter facilmente chegado ao golo. Tito Vilanova e os mais conservadores até poderão concluir que tal ocasião, por ter acontecido precisamente numa altura em que havia menos homens atrás, é consequência do risco que o 343 representa. Estão enganados. Trata-se de um lance de vantagem numérica defensiva, que só por força de um erro individual pôde ter expressão. E erros individuais tanto acontecem em defesas a 3 como em defesas a 4, sobretudo se Mascherano estiver em campo. Confesso que não consigo compreender a admiração que se sente por este argentino, nem o entusiasmo que continua a gerar nalgumas franjas de adeptos, principalmente depois de errar tão flagrantemente e com tanta regularidade. Enfim, continua a haver muita coisa para mudar no jogo. Falemos do lance.


O filme não mostra o que antecede o passe que isola o avançado do Granada, nem permite perceber os comportamentos de Song e de Mascherano, pelo que tenho de descrevê-los. O Granada sai em contra-ataque, com a bola a cair junto à linha, do lado direito. Song, muito bem, acompanha o lance, não caindo no erro de tentar o desarme, até porque o adversário estava praticamente isolado. Mascherano acompanha a jogada de perto, e atrás dele vem um segundo atacante do Granada. Do outro lado, um terceiro defesa do Barça fecha o meio, garantindo a superioridade numérica. Não querendo forçar o desarme, Song obriga o portador da bola a recuar, permitindo a recolocação de Mascherano ao meio, em cobertura, mas o argentino, por qualquer paragem cerebral que me custa a compreender, abranda o passo, esquece a necessidade de ir fazer a cobertura a Song, e permite que o segundo atacante lhe passe nas costas, abrindo a possibilidade ao portador da bola de fazer o passe entre Song e Mascherano. É precisamente aí que o filme começa, e quem o veja pode até pensar que Mascherano chega atrasado para cortar essa linha de passe. Não é verdade. Mascherano pensou foi noutra coisa, e não compreendeu o que o lance exigia dele, permitindo que uma jogada completamente controlada, de 2 atacantes para 3 defesas, se transformasse de repente numa jogada de 1 para 0.

Que Mascherano tem dificuldades a interpretar lances de futebol já não deve ser novidade para ninguém. Aquilo de que me apetece falar, contudo, é de uma ideia geral de treino segundo a qual se acredita que os jogadores aprendem pelo treino a corrigir as suas capacidades interpretativas. Acredito que o treino pode melhorar muita coisa (capacidades técnicas, físicas, tácticas, etc.), mas sempre duvidei da capacidade do treino para melhorar um certo tipo de capacidades muito específicas, e que tem sobretudo a ver com a leitura de lances não-padronizados. Ou melhor, até posso aceitar que o treino possibilite essa melhoria, mas nunca a curto ou médio prazo, e somente mediante um tipo de treino muito diferente daquele em que a esmagadora maioria dos treinadores acredita. Quando digo a esmagadora maioria, não estou a exagerar; é mesmo a esmagadora maioria. Os defensores daquilo a que se convencionou chamar "periodização táctica", por exemplo, gostam de acreditar que são a vanguarda do treino, que são aqueles cuja metodologia é a mais moderna possível. Mas qual é a grande mais-valia da periodização táctica? A capacidade de mecanizar comportamentos colectivos contextualizados, mediante uma ideia de treino por tentativa e erro. O problema é que isso, não obstante a diferença para outras metodologias mais antigas, não contempla nem um décimo das situações de jogo que um jogador encontra. Por tentativa e erro pode-se ensinar um jogador a comportar-se em muitas situações típicas, mas não se pode ensinar um jogador a interpretar situações atípicas. E o problema é que o futebol é um jogo essencialmente de situações atípicas. É sobre isto que falta reflectir. De que modo poderia um treinador ensinar a Mascherano que, naquela situação, deveria ter ido proteger rapidamente as costas de Song, garantindo a permuta de funções, e inviabilizando um passe para as costas da linha defensiva? Com que exercícios de treino é que, repetindo-os muitas vezes, o argentino ficaria preparado para responder melhor a esta situação? A resposta é fácil: com nenhuns! A interpretação não é uma habilidade como as outras, e não pode ser cultivada do mesmo modo que as outras o são. Nenhuma metodologia convencional de treino (e, sim, a periodização táctica, não obstante as diferenças significativas para modelos de treino mais primitivos, é uma metodologia convencial, pela simples razão de entender o jogo exactamente do mesmo modo que os outros modelos o entendem, ou seja, como um jogo de situações típicas como o basquetebol, o voleibol, o andebol, ou o futsal) é capaz de trabalhar, a breve ou a longo prazo, as habilidades interpretativas. Para que um jogador melhore as suas habilidades interpretativas (isto é, no fundo, a sua decisão em lances para os quais o treino não o mecanizou, ou seja, lances que não exigem respostas tipificadas), tem primeiro de compreender o jogo, de compreender aquilo que a cada momento é o melhor a fazer. Só um tipo de treino centrado num certo culto da decisão, um tipo de treino não-especializado, cuja preocupação central seja não a criação de padrões de comportamentos, rotinas colectivas e especialistas para cada posição, mas sim a compreensão daquilo que é o jogo a cada momento, só um tipo de treino assim é capaz de melhorar este tipo de habilidades. Um tipo de treino assim não tem propriamente uma metodologia própria, à qual vem filiado; tem, isso sim, uma concepção do jogo de espécie diferente, uma concepção do jogo que nenhum dos outros tipos de treino, sejam os mais tradicionais, seja os mais modernos, tem, e que consiste em entender o jogo, em termos teóricos, de modo completamente distinto e inovador.  

domingo, 19 de agosto de 2012

Benzema, os Avançados, e a Ilusão dos Números

Não foi sem controvérsia que, após o desafio que opôs espanhóis a italianos, a contar para a primeira jornada da fase de grupos do europeu deste ano, José Mourinho declarou que a Espanha, jogando sem um avançado de raiz, tinha sido praticamente inofensiva. Tive oportunidade de dizer que as declarações de Mourinho não faziam muito sentido, sobretudo tendo em conta que o avançado, no seu Real Madrid, funciona de modo muito pouco convencional, e que tal parecia muito mais uma bicada a Guardiola do que propriamente algo em que acreditasse. Entretanto, a Espanha sagrou-se campeã europeia, e realmente só foi inofensiva quando jogou com um avançado. O equívoco de Mourinho é, porém, pouco pertinente, para o assunto deste texto, embora sirva para lançá-lo.

Quando Mourinho chegou a Madrid, Gonzalo Higuain foi a sua primeira escolha. O argentino garantia velocidade de execução, profundidade nas costas das defesas adversárias, e bastantes golos. Quando se lesionou, o francês Karim Benzema, até então suplente e pouco utilizado, assumiu a posição. O jejum de golos, e as críticas de que foi alvo, fizeram com que Mourinho fosse ao mercado, em Janeiro, e trouxesse Adebayor. Felizmente para Benzema, Adebayor não pareceu conseguir dar à equipa o que Higuaín dava, e foi então que se começou a perceber que Benzema, mesmo não marcando, permitia coisas ao Real Madrid que o avançado togolês não permitia. Mesmo sem os golos do francês, Mourinho apostou nele e o rendimento colectivo não se ressentiu. Por linhas tortas, percebeu o técnico português a dada altura, por exemplo, que, com Benzema em campo, o rendimento de Ronaldo era muitíssimo superior. Quando Higuaín voltou, esta variável tinha adquirido uma importância de tal modo extrema que o francês, mesmo não marcando tantos golos quantos o argentino, mesmo parecendo passar ao lado do jogo muitas vezes, nunca mais voltou a sentar-se no banco. Benzema, ao contrário de Higuaín, garante movimentos de aproximação, linhas de passe, qualidade técnica em espaços reduzidos. Isto permite ao Real um jogo mais apoiado numa fase adiantada no terreno, uma muito melhor competência entre linhas, e, acima de tudo, a desocupação da profundidade que permite a Ronaldo todas aquelas diagonais da esquerda para o meio. Por força da lesão do seu avançado de eleição, descobriu Mourinho que a sua equipa funcionava melhor com um avançado de características diferentes, um avançado que, acima de tudo, não fosse rigorosamente, no verdadeiro sentido da palavra, e em cada momento do jogo, um avançado.

Se houve coisa em que o Real Madrid melhorou, nesta segunda época, foi na competência em ataque organizado, no último terço do terreno. Ao contrário do que se passou na primeira época, em que a equipa apenas conseguia romper blocos defensivos densos através de lançamentos para as costas da defesa ou através de desequilíbrios individuais, o Real passou a conseguir fazer a bola entrar entre a linha defensiva e a linha média dos seus adversários, passou a conseguir atrair momentaneamente defesas para perto dos médios, quebrando as linhas defensivas com maior frequência, e passou a conseguir complementar isso com as entradas de terceiros (normalmente os extremos, e principalmente Ronaldo) nas costas das defesas. Tal competência só foi possível porque o avançado da equipa, o jogador responsável por jogar na jurisdição dos defesas centrais, não era um avançado cujas movimentações típicas pediam a profundidade, mas um avançado com características diferentes, capaz de vir dentro, de combinar com maior qualidade com os médios, e com maior apetência para segurar e tabelar do que para aproveitar as costas das defesas. Por ser o avançado que é, Benzema permitiu ao Real, enquanto equipa, que fosse mais competente. Com isso, não se terá notabilizado individualmente, em termos de golos, como naturalmente um avançado como Higuain se notabilizaria. Enquanto equipa, o Real Madrid de Mourinho melhorou, de uma época para a outra, principalmente porque passou a jogar com um avançado que não se comporta como a maioria das pessoas acha que os avançados se devem comportar.

De certo modo, portanto, a ligeira melhoria da equipa deveu-se à utilização de uma estratégia absolutamente idêntica àquela que o Barcelona de Guardiola, de forma provavelmente mais enfática, preconizou no ano anterior, uma estratégia que, para muitos, é o calcanhar de Aquiles dos catalães, e que, para muitos também, incluindo o próprio Mourinho, a fazer fé nas suas palavras, era o grande problema da selecção espanhola neste europeu. É verdade que Benzema é um avançado de raiz. Mas não foram os seus comportamentos de avançado típico que permitiram à equipa tal salto evolutivo; foram antes os mesmos comportamentos que qualquer médio, ou qualquer jogador que não jogue habitualmente como avançado, naturalmente exibe quando posicionado na frente de ataque. Apesar de ser avançado, foi por Benzema ter qualquer coisa de médio (se é possível falar assim) que o Real Madrid se tornou melhor equipa. Mourinho, mesmo que o não saiba, mesmo que o critique por naturalmente lhe lembrar o estilo do rival, deve boa parte do seu sucesso em Espanha a algo que, embora de modo mais radical e mais conscientemente, o Barcelona de Guardiola desde há muito procura idealizar.

Antes de terminar, queria desviar-me ainda do assunto principal deste texto, e reflectir um pouco sobre números. Como é sabido, acho que as estatísticas, em futebol, não só não valem nada como são, muitas vezes, enganadoras. No final da época passada, tentei argumentar que a semelhança entre os golos marcados por Real Madrid e por Barcelona não implicava competências ofensivas semelhantes, e tentei demonstrar que essa semelhança de golos se deveu a um final de época em que, sem a pressão de títulos que já não se podiam conquistar, havia objectivos individuais a atingir. Do mesmo modo, fui dizendo ao longo desta época que, apesar de ser o Barcelona, pelos pontos que ia perdendo, quem parecia estar menos consistente, era o Real quem, na verdade, tinha mais dificuldades para vencer os seus jogos. Obviamente, mantenho essa teoria. Para muita gente, não só o campeonato como os números apresentados no final da prova são testemunhos inequívocos do meu engano. Foi por isso que comecei este parágrafo por dizer que os números, além de não valerem nada, costumam enganar. Quem olhar para eles em bruto, naturalmente verificará que a equipa comandada por José Mourinho, além de ter tido mais 4 vitórias que o Barcelona, marcou também mais 7 golos (121 contra 114). Para esses, o Real é talvez mais competente, em termos ofensivos, do que o Barcelona. A minha opinião é de que essas pessoas estão enganadas. É que, apesar de ter marcado mais golos, e apesar de ter obtido mais vitórias, o Real Madrid teve mais dificuldades do que o Barcelona em vencer os seus jogos. Como é isto possível? É o que pretendo demonstrar de seguida.

 Ora, comecemos pelas vitórias. O Real Madrid somou 32 vitórias, contra 28 do Barcelona. Das 28 vitórias dos catalães, 22 começaram a ser construídas na primeira parte. Ou seja, a vantagem obtida na primeira parte não mais voltou a ser anulada. Significa isto que 79% dos jogos ganhos pela equipa de Guardiola começaram a ser ganhos logo de início. Dos restantes 6 jogos, 2 foram resolvidos antes dos 70 minutos, 3 entre o minuto 70 e o minuto 80, e 1 apenas depois dos 80, mais concretamente o jogo contra o Atlético de Madrid, em que os madrilenos anularam a vantagem dos catalães a meio da segunda parte e obrigaram a um segundo golo aos 81 minutos. Quanto ao Real Madrid, das 32 vitórias, apenas 21 começaram a ser construídas na primeira parte. Significa isto que, ao contrário dos 79% dos catalães, só 66% dos jogos ganhos pela equipa de José Mourinho começaram a ser ganhos logo de início. Dos restantes 11, 6 foram resolvidos antes dos 70 minutos, 3 entre o minuto 70 e o minuto 80, e 2 depois dos 80. Embora não totalmente claros, até porque uma vantagem de 1-0 desde o primeiro minuto não é bem uma vantagem segura, estes dados permitem desde logo perceber uma tendência: a equipa catalã teve menos dificuldades em resolver os seus desafios, e teve por isso menos necessidade de acelerar para marcar mais golos. Mas passemos agora aos períodos de tempo em que os golos foram marcados. A consistência do Barcelona de que falava anteriormente não poderia ficar melhor espelhada do que na consistência com que os marcou em todos os períodos de tempo. Dos 114 golos, marcou 58 (51%) na primeira parte e 56 na segunda. Na segunda parte, marcou 21 entre o minuto 45 e o minuto 70, 19 entre o minuto 70 e o minuto 80, e 16 depois dos 80. Ou seja, o Barcelona não teve períodos mais fortes e períodos mais fracos. Foi uma equipa consistente, com o mesmo grau de eficácia em todos os períodos das partidas, quer os adversários estivessem mais frescos ou mais cansados, quer o cronómetro se aproximasse do fim ou não. Já dos 121 golos do Real Madrid, marcou 51 (42%) na primeira parte e 70 na segunda. Na segunda parte, marcou 37 entre o minuto 45 e o minuto 70, 13 entre o minuto 70 e o minuto 80, e 20 depois dos 80. Ou seja, o Real Madrid foi claramente mais concretizador nas segundas partes dos jogos, tendo especial apetência por marcar ora no reatamento da partida, ora nos últimos 10 minutos. Como comprova a análise destes números, a equipa de José Mourinho foi muito menos consistente do que o Barcelona, e, apesar de mais golos e mais vitórias, teve maiores dificuldades em superar os seus desafios. Podíamos ainda fazer outro tipo de análises. Dos 79 golos que o Barcelona marcou antes dos 70 minutos, só 27% foram marcados entre os 45 minutos e os 70. Já dos 88 do Real, 42% foram marcados nesse período. Dos 35 golos que o Barcelona marcou depois dos 70, 46% foram marcados depois dos 80. Já dos 33 do Real, 61% foram marcados nesse período.

Dividi a segunda parte em três períodos de tempo desiguais propositadamente, porque tinha a impressão de que era nos últimos vinte minutos que o Real Madrid mais marcava. De facto, assim não é, e a equipa marcou tanto como no resto da segunda parte. Apesar disso, marca muito mais nos últimos dez minutos do que nos penúltimos, e isso deve ser levado em conta. No fim-de-semana em que recomeça a Liga Espanhola, é bom que se tenha consciência destas diferenças. O título da época passada, muito mais do que da qualidade apresentada, dependeu essencialmente do sacrifício e da força de vontade. Naqueles jogos em que a qualidade não chegou, foram esses os factores desequilibradores. Foi isso que fez a diferença, e foi por isso que o Real marcou mais e resolveu mais jogos na segunda metade das partidas do que o Barcelona. Ao contrário dos catalães, cuja qualidade ímpar lhes permitiu serem consistentes ao longo da época, o Real de Mourinho teve, muitas vezes, de fazer das tripas coração para vencer os seus desafios. Para compensar a menor qualidade, teve de sustentar as suas vitórias no desgaste dos adversários, na força de vontade da própria equipa, e em índices de concentração muito difíceis de manter sem motivações extraordinárias. De certo modo, a equipa excedeu-se nas segundas partes dos jogos porque a motivação de vencer um campeonato a este Barcelona era altíssima. Foi esse o factor decisivo. Para isso contribuiu também o facto de Mourinho raramente ter rodado a equipa, de ter apresentado quase sempre o seu melhor onze, e de ter contado com pouco mais do que 15 ou 16 jogadores. Numa época com mais lesões, tal seria impossível de realizar. Na época que agora começa, nem a motivação deverá ser a mesma, nem a improbabilidade de realizar uma época com tão poucas lesões se deve repetir. Embora o Real Madrid tenha melhorado, da primeira para a segunda época, no aspecto particular a que me referi acima, a qualidade geral do seu jogo continua a léguas da qualidade geral do jogo catalão. Uma série de factores, alguns deles difíceis de controlar, contribuíram para que pudesse sagrar-se campeão. Veremos de que modo se regenera agora.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Um Problema de Sol

Como é Verão, vamos falar de sol e de coisas que pessoas não fazem por estar muito sol. Devo dizer que este texto, pelo menos em parte, estava escrito já há vários meses, e que apenas por desmazelo não foi publicado mais cedo. Reporta-se a uma partida do campeonato espanhol, que opôs o Málaga ao Real Madrid de Mourinho. Diamantino Miranda, esse arauto do disparate, foi o comentador de serviço do desafio, e disse, entre outros disparates certamente merecedores de referência, que as equipas do sul de Espanha eram, por norma, menos agressivas que as do norte. A razão pela qual Diamantino pensa assim, disse-o depois, prende-se com as diferenças climatéricas. Segundo o astuto comentador, equipas que estejam sediadas em regiões com climas mais quentes, com praias, sol e, provavelmente, raparigas de biquini, são compostas por jogadores mais tecnicistas, mas menos disponíveis para ajudar a defender. Por si só, a ideia de que o clima define características de um atleta é suficientemente estúpida para que lhe fique indiferente, e é disso que vou falar em seguida. Antes, porém, quero falar do argumento particular de Diamantino. Muito rapidamente, e até porque estendeu a ideia a outros países, a Portugal, por exemplo, o argumento faz depender a pouca agressividade defensiva de onze atletas da localização geográfica de uma cidade. Do que Diamantino se terá esquecido é que os onze jogadores que, segundo ele, eram pouco agressivos, não eram naturais de Málaga, nem tão-pouco de cidades do sul de Espanha. A menos que, a juntar ao primeiro argumento, mais geral, defenda Diamantino também que estes jogadores perdem agressividade de acordo com o sítio onde vivem, e que, por exemplo, Toulalan, que jogou toda a vida em Lyon, era agressivo até se ter mudado para Málaga, não percebo muito bem como é que pode defender o que defendeu.

Enfim, não quero perder muito tempo a discutir o raciocínio de Diamantino Miranda, pois não me parece fácil tentar perceber lógica onde ela não existe. Mas a ideia de que o clima influencia as características de um atleta merece algum debate, e sobre isso gostaria de dizer algumas coisas. Há coisa de dois anos, lançou o Filipe no Jogo Directo uma discussão parecida, defendendo que "há indícios claros de que a temperatura mexe, e bem, com o calor do jogo". Tive a oportunidade de comentar esse texto, e de participar na discussão. Ainda hoje penso do mesmo modo, e o comentário de Diamantino Miranda veio apenas tornar presente algo que me faz de facto bastante confusão. Como é que alguém pode sequer conceber que o clima tem influência directa no tipo de futebol que se pratica em determinado sítio? Na verdade, talvez sem se aperceber, o Filipe defendia duas coisas diferentes: primeiro, que uma equipa não se consegue comportar como se comporta habitualmente, se a temperatura for consideravelmente mais alta; em segundo, que os brasileiros jogam de modo mais "acalorado" porque o clima assim o propicia. O primeiro caso não se insere sequer no mesmo tipo de discussão: qualquer equipa europeia que vá jogar a 2000 metros de altitude, com baixas concentrações de oxigénio, tem desempenhos inferiores, e não consegue manter o ritmo habitual. Não é propriamente a temperatura, mas sim qualquer condicionante externa que modifica o comportamento habitual dos jogadores, que estão preparados para responder em determinadas condições e têm dificuldades imediatas em adaptar-se a condições novas. O "calor" do jogo, nesse primeiro caso, é determinado pela habituação, ou falta dela, e não porque a temperatura desempenhe um papel providencial. Mas é o segundo caso que mais interessa, pois é sobre ele que as pessoas mais opiniões engraçadas têm.

Existe, aliás, a tendência para achar que não é só o futebol, mas todo o tecido social, que é reflectido pelo clima de um país. Acho tal conclusão, como deverão calcular, um profundo disparate. Para muita gente, os países mediterrânicos são menos produtivos, em geral, porque são países com climas temperados, e é o clima que se regista nesses países que faz com que as pessoas sejam mais preguiçosas, mais irresponsáveis, mais inconstantes, e mais emocionais. O raciocínio de quem pensa assim é mais ou menos o seguinte: as pessoas vivem debaixo de temperaturas altas toda a vida, e isso frita-lhes as ideias. Enfim, achar que a temperatura é responsável pela definição do carácter de um povo é tão ridículo que chega a ser difícil falar sobre isso. As características gerais de um povo - se é possível, de facto, traçá-las - são definidas ao longo de séculos de História, e influirá mais no tipo de pessoas que os portugueses são, para usar o exemplo de Portugal, o facto de termos uma tradição católica profundamente enraízada, ou o facto de termos sofrido certos acidentes históricos, do que o facto de vivermos à beira-mar, com um clima ameno. O ser humano é uma criatura de hábitos, e as pessoas comportam-se como vêem os outros comportar-se. Se o clima em Portugal mudasse subitamente, e passássemos a ter um clima nórdico, a geração seguinte seria exactamente igual à geração seguinte que viria, caso isso não acontecesse. Quem fala em portugueses, fala noutros povos quaisquer. Se a temperatura, ou a latitude, fossem determinantes, ingleses e irlandeses seriam praticamente iguais.

A ter alguma influência no carácter de um povo, o clima tem uma influência reduzidíssima. Se assim é, menor será ainda essa influência em qualquer manifestação cultural desse povo. O futebol, enquanto manifestação cultural, não foge à regra. O futebol praticado numa determinada região do globo difere do futebol praticado noutra região por várias razões. Primeiro, porque são manifestações culturais de povos diferentes, com culturas diferentes, com preocupações diferentes, com legados históricos diferentes, com estruturas morais diferentes. Depois, e sobretudo por isso, porque o próprio futebol cria uma determinada tradição. Por que é que os italianos são mais defensivos? Porque, enquanto povo, são mais conservadores, mais reservados, mais precavidos? Obviamente que não. Porque, a dada altura, os modelos defensivos italianos começaram a ter sucesso, e criaram escola. A tradição futebolística de um país é talvez o factor mais relevante na definição do tipo de futebol que se pratica num país. Que causa está por trás do futebol de toque da Espanha, nos últimos anos? Um trabalho de fundo que modificou radicalmente a identidade do futebol espanhol, o privilégio pela inteligência e pelo talento. E no Brasil, por que é que no Brasil o jogo é tão "acalorado", há tanta irresponsabilidade táctica, e há tanto jogador talentoso? Não é por causa do calor, que faz com que os jogadores tenham as emoções à flor da pele, assim como é o calor que leva os miúdos para a praia e para as ruas, onde aprendem a jogar? Claro que não. São as condições sociais, a cultura do país, o fundo católico, etc.. Será a irresponsabilidade táctica característica do futebol brasileiro assim tão diferente da irresponsabilidade táctica de outros países sul-americanos? Não é. E o que dizer da irresponsabilidade táctica dos britânicos? É uma irresponsabilidade diferente da dos brasileiros, mas ainda assim é irresponsabilidade. Como explicá-la, se o clima não é "acalorado"? Essencialmente, porque a tradição futebolística na Grã-Bretanha não conheceu praticamente evoluções, nos últimos 50 anos, e porque no futebol (e no desporto, em geral) britânico se tendem a privilegiar atributos atléticos.

Acreditar que a temperatura (e o sol, em particular) determina o tipo de futebol que se pratica num certo país é não perceber nada de futebol, e é não perceber nada de seres humanos. O futebol, como todas as expressões de um povo, reflectem em parte o tecido histórico, cultural, religioso, e social desse povo. Mas, em si, é uma prática isolada, que pode, a qualquer altura, seguir um trajecto completamente distinto, sem qualquer relação directa com esse tecido. Estes dois tipos de factores são aqueles que, a meu ver, melhor explicam as distinções entre os vários tipos de futebol que se praticam pelo mundo. O clima, ou qualquer factor ambiental, não entra em nenhum deles. Não é sequer um factor secundário; não influi sequer na personalidade dos indivíduos que compõem esse povo, quanto mais nas suas práticas. Pode, quando muito, num passado muito remoto, ter ajudado a que determinados povos se dedicassem mais a umas actividades do que a outras, optassem por um determinado estilo de vida e não por outro, e que a personalidade desse povo - que foi sendo criada paulatinamente, ao longo dos tempos - tenha então sofrido inflexões decisivas em determinado período da sua formação por força do clima em que se vivia. Mas isso nem uma influência indirecta é. Se, a partir de agora, começasse a nevar durante todo o ano na península ibérica, e fizesse sol na Islândia, seriam preciso inúmeras gerações, e vários séculos para que os islandeses passassem a ter tradição futebolística, e os portugueses e os espanhóis perdessem a deles. A influência dos factores ambientais é, na melhor das hipóteses, uma influência remota, e só com muita boa vontade é que se consegue aceitar que Diamantino Miranda e outros que, como ele, acreditam em tais disparates, não estejam ainda hospitalizados.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Hegemonia e Geração Espontânea

Falar em hegemonia a respeito do futebol espanhol pode parecer, nos dias que correm, profundamente redundante. Depois da conquista de mais um campeonato europeu, poucos se atreverão a não conceder à Espanha esse estatuto. Há 4 anos, porém, quando tudo isto começou, poucos, como nós, arriscavam em votar no favoritismo espanhol. Entretanto, e reagindo ao futebol espanhol como se tem reagido ao Barcelona de Guardiola, insiste-se que qualquer adversário poderoso vencerá esta equipa, e que outros tempos se sucederão aos actuais. Não tenho dúvidas de que a selecção espanhola não ganhará tudo o que há para ganhar, nos próximos anos. Do que tenho dúvidas é de que, tão depressa, apareça um futebol capaz de se sobrepor a este, e de que a Espanha deixe de estar no lote dos grandes favoritos à vitória nas competições em que participar nos próximos... 20 anos. Para muitos, estes três títulos representam uma fase, uma hegemonia temporária, como tantas outras no passado, protagonizadas por outras selecções, que necessariamente será interrompida. Para mim, aquilo a que se assiste agora não tem paralelo na História do Futebol, precisamente porque não se pode medir-lhe a manifestação apenas pelos troféus que tem amealhado. Por trás das vitórias há um modelo fortemente enraízado, um estilo de jogo que é dominador, que condiciona irremediavelmente qualquer que seja o adversário, e que faz daqueles que o põem em prática mentalmente superiores. O jogador espanhol é hoje, pelo próprio estilo de jogo que pratica, superior, em termos de mentalidade, aos seus adversários, como em tempos os germânicos o eram. Para que a Espanha deixe de ser a principal favorita à vitória em cada prova que participar, não basta esperar que esta geração acabe, até porque esta geração tem bem mais do que onze jogadores competentes, e a esta geração, já se percebeu, sucederão outras igualmente talentosas. Também não bastará que seja derrotada na próxima grande competição, porque sabe-se que voltarão a ser favoritos na seguinte, apesar da derrota. Não bastará, ainda, que uma selecção qualquer, muitíssimo talentosa, apareça nos próximos anos, pois essa selecção, pelo carácter extraordinário do seu surgimento, desaparecerá sem deixar legado, enquanto os espanhóis, com novas gerações, continuarão a reinar. Para que a Espanha venha a ter quem lhe discuta a hegemonia, há que iniciar um trabalho a nível de formação, que não está iniciado em lugar algum, tanto quanto sei, muitíssimo parecido com aquele que foi iniciado há duas ou três décadas no país vizinho, e que agora está finalmente a dar os seus frutos. Daí dizer que a hegemonia espanhola terá ainda, pelo menos, 20 anos de vida.

Vem isto a propósito não do recente campeonato europeu ganho pelos espanhóis, mas pelo recente campeonato europeu de sub-19 ganho - imagine-se - pelos espanhóis. Que eu saiba, não há memória de haver uma selecção que dominasse tanto o panorama futebolístico como esta Espanha na última década, ganhando tudo o que havia para ganhar nos últimos 4 anos, a nível sénior, e ganhando quase tudo (quando não ganha, fica perto, e é sempre favorita) nos escalões mais jovens. Permitam-me a comparação com o hóquei em patins. Desde que me lembro de ver hóquei, havia apenas 4 selecções capazes de discutir títulos: Argentina, Itália, Portugal e Espanha. Explica-se isto de forma relativamente simples, pois eram países com tradição na modalidade, que iam formando, geração após geração, jogadores de qualidade em quantidades suficientes para poderem manter equipas competitivas. No caso do hóquei, que é um jogo muito mais simples que o futebol, a excelência colectiva terá sido atingida muito mais rapidamente do que no futebol, e depressa se formaram 4 selecções hegemónicas. Nenhuma outra selecção, a menos que inicie um trabalho de formação de fundo, consegue competir, de forma consistente, ao longo de muitos anos, com estas selecções. Em futebol, pelo contrário, até praticamente ao fim do século passado, faltava muito para que a excelência colectiva fosse atingida, e nações com bases de recrutamento muito grandes podiam ser consideradas favoritas, mesmo apresentando um futebol fraco, em termos colectivos. Hoje em dia já não é assim. E não voltará a ser assim. Arrisco mesmo a dizer que o Brasil, a menos que revolucione o seu futebol, não voltará a ser verdadeiramente favorito à vitória numa grande competição. Claro que poderá ganhar um campeonato ou outro, mas dificilmente voltará a ser a potência que foi se não modificar as suas prioridades. O que se fez em Espanha, nas últimas décadas, foi compreender o jogo, compreender aquilo que o jogo exigia, e formatar os seus praticantes para fazerem face a essas exigências. Hoje olha-se para uma competição de sub-19, por exemplo, e no lugar de miúdos imberbes, alguns com potencial, outros nem tanto, e uns mais afoitos que outros, vêem-se jogadores de futebol. Compara-se a selecção espanhola com as outras e, em vez de se conseguir isolar um ou outro miúdo com capacidades acima da média, capta-se um colectivo completamente distinto, em que todos os elementos possuem uma maturidade táctica acima do normal. Isso só é possível porque o futebol espanhol, em vez de tentar lapidar cada um dos diamantes que, por sorte, iam aparecendo, como se acredita, ainda hoje, que deve ser o trabalho de formação, passou a criar, através de uma concepção do jogo mais elevada, os seus próprios diamantes. Aquilo que distingue este futebol espanhol, cuja hegemonia actual não encontra paralelo em toda a História do jogo, é precisamente a compreensão de que, num jogo colectivo, como o é o futebol, a formação serve para criar talentos, no sentido literal da palavra "criar", e não apenas para permitir que certos talentos brutos, que existem antes de passarem pela fase de formação, adquiram competências que lhes permitam jogar ao mais alto nível. Em Espanha, não se acredita em geração espontânea, e isso faz toda a diferença.

A respeito, mais concretamente, deste europeu de sub-19, tenho várias coisas a dizer. Em primeiro lugar, que são treinadores como Edgar Borges que explicam por que razão Portugal nunca poderá chegar aos calcanhares do que se faz em Espanha. É verdade que ao seleccionador nacional só se lhe deu para as mãos um conjunto de jogadores, com a qualidade duvidosa que têm (ainda estou para perceber por que é que João Carlos, jogador do Liverpool, não foi chamado), a maior parte deles, mas optar, como o fez contra a Espanha, por uma marcação individual aos homens do meio-campo espanhol diz tudo sobre Edgar Borges. Na minha opinião, quem escolhe jogar assim, seja contra quem for, não merece uma segunda oportunidade. Poderia dizer muito mais, mas esta decisão táctica diz praticamente tudo. Quanto a valores individuais, aproveitar-se-ão, entre os portugueses, dois ou três. O melhor deles, o avançado Betinho, praticamente nem se viu, tal foi a pobreza, em termos de construção de jogo, da equipa. Ricardo Esgaio talvez tenha futuro, mas só como lateral-direito, como joga no Sporting. Como extremo, é banalíssimo. Tiago Ilori, se bem trabalhado, e se se modificarem certos preconceitos a respeito de defesas centrais, também dará jogador. Daniel Martins, o lateral-esquerdo do Benfica, também tem algumas características interessantes. Sobre Rafael Veloso, o guarda-redes, é preciso saber como evoluirá, em termos de mentalidade. Quanto aos restantes, sinceramente, não lhes auguro futuros espantosos. A excepção poderá ser o capitão João Mário, de quem não sou particularmente adepto, mas a quem reconheço alguns atributos importantes. João Mário não tem classe; tem tiques de quem tem classe. Se um dia esses tiques derem lugar a um jogador que compreenda quando os deve ter e quando os não deve, talvez venha a poder ser jogador. Para já, é apenas irritante. André Gomes, médio do Benfica, sabe jogar, mas tem contra si o tamanho exagerado, a pouca agilidade, e algumas deficiências técnicas, sobretudo resultantes desses atributos físicos indesejados. Quanto a Bruma, não dará em nada, ainda que, nos últimos anos, tenham chegado a Alvalade propostas milionárias para o levar. Ivan Cavaleiro é idêntico, mas com menos propostas milionárias. Sobre Agostinho Cá, não vou falar porque ainda estou a tentar compreender por que razão é que o Barcelona contratou, para jogar na sua equipa B, alguém que não é, nunca foi, nem nunca será jogador de futebol.

Sobre a Espanha, que é realmente a selecção sobre a qual se deve falar, tal foi o abismo que a separou das restantes, devo dizer que continuam a ser feitas observações precipitadas. Embora os espanhóis tenham mostrado ao mundo que o futebol é um jogo colectivo, e embora todos se apressem a enaltecer as virtudes colectivas desta equipa, quando chega a hora de falar em individualidades, fala-se sempre daquelas que menos atributos colectivos manifestaram. Para a grande maioria das pessoas, as duas principais figuras do torneio foram o goleador máximo da prova, Jesé Rodriguez, e aquele que é considerado o maior talento desta geração, Gerard Delofeu. Não porque é costume ser do contra, mas porque dou mais importância a aspectos colectivos, não foram estes os jogadores que mais me impressionaram. Aliás, não acredito mesmo que Jesé Rodriguez, por exemplo, venha a ter um futuro invejável. É um jogador habilidoso, mas fraco em termos de decisões. Delofeu, por sua vez, é parecido, embora mais rápido, mais forte no um para um, e, sobretudo, joga no Barcelona. Estando no Barcelona, pode aprender o que ainda não sabe. Se o conseguir, saberá como temperar as suas iniciativas um pouco melhor. É que, para já, é apenas um jogador muito forte em termos individuais. O seu principal problema, a meu ver, é não saber decidir quando deve ou não deve apostar em acções individuais. Sempre que Guardiola o colocou em campo, este ano, evidenciou precisamente isso. Na altura, pensei que fosse nervosismo. Depois deste Campeonato da Europa, percebi que era feitio. Gerard Delofeu esteve endiabrado, sim, mas porque apanhou defesas que lhe permitiram as diabruras. Daqui a uns anos deixará de o conseguir fazer com a facilidade com que o fez, e nessa altura terá de apresentar argumentos que não apresentou neste campeonato. Como disse, outros foram os jogadores que me impressionaram. Desde logo, o defesa-esquerdo do Barcelona, Grimaldo. Não é um jogador com grandes valências atléticas, mas sabe sempre o que fazer com bola, jogando invariavelmente no apoio, e, sem grandes correrias, nem um pulmão invejável, dá a profundidade certa à equipa no momento certo. De resto, podia falar em qualquer um dos do meio-campo (o capitão Campaña, médio-defensivo elegante; Suso, médio do Liverpool com um pé esquerdo notável; ou mesmo Ñiguez, igualmente esquerdino, e muitíssimo inteligente em todas as suas acções com bola), todos eles fortíssimos no que toca a decisões, e todos eles bons de bola, mas vou isolar dois, porventura os dois mais pequenos: Oliver Torres, do Atlético de Madrid, e Denis Suárez, do Manchester City. Esqueçam tudo o que acham que sabem sobre futebol, e ponham os olhos nestes dois pequenos jogadores. A forma como tratam a bola, a agilidade, a competência técnica, a facilidade no drible: é isto que distingue o actual futebol espanhol. Pouco jogaram juntos, é verdade (Denis Suárez foi quase sempre suplente), mas os adeptos mereciam que tal tivesse acontecido. Sem bola, procuram dar sempre um apoio vertical ao médio-defensivo, ou uma linha de passe ao lateral. Movimentam-se entre linhas como ninguém, tabelam, tiram adversários da frente com facilidade. Duas pequenas maravilhas! Continuo sem perceber como é que, dando a Espanha tamanho exemplo de competência em todos os escalões, se insiste em não povoar o meio-campo com jogadores com estas características. Oliver Torres e Denis Suárez são o paradigma do médio-ofensivo do futuro, um paradigma que demorou a chegar, mas que Xavi e Iniesta trataram de deixar claro que tinha mesmo de chegar. Se há uns anos se desconfiava que mais do que um jogador com estas características era prejudicial a uma equipa, os dois catalães ensinaram ao mundo de que era com dois assim, se não mesmo com mais, que tinha de se jogar futebol. Estes dois são herdeiros de Xavi e Iniesta, e seria natural que, ainda que não sejam actualmente aqueles de quem mais se fala, daqui a uns anos estivessem na ribalta do futebol europeu. 

terça-feira, 10 de julho de 2012

Egoísmo e estética na evolução do jogo.

Na verdade, a essência deste texto louva o estilo. Frivolidade, que para alguns se desmascara no seu significado; porém, não aqui, não no que se procura defender neste texto. Ignoremos o fenómeno Guardiola; tiranizados que estamos sob o jugo desse alto olhar sobre o jogo, não se apresentará fácil o exercício, mas só assim poderemos compreender a extensão do que nestas linhas é proposto. O mais curioso é que, até ao advento “Guardiola”, nenhum dos bastiões deste jogar, que tamanha admiração nos inspira, se podia comparar a qualquer um dos anteriores estetas que, em si mesmos, de forma marginal, inscreviam os valores que agora ressoam na elegância do jogo catalão. Xavi, Busquets e Iniesta, jogadores que encerram em si uma qualidade excepcional, não encontrariam o reconhecimento que os consagra agora, não lhes fosse oferecida a oportunidade de fazerem parte de um ideal que, sendo também o deles, não encontrava neles a sua maior expressão. E é na plasticidade da palavra “expressão” que sustento esta ideia; existe um certo “altruísmo” a que o seu jogo se entrega, empalidecendo-os. A minha atenção vira-se, como facilmente se deduz, para aqueles que, demasiados centrados sobre si, procuram em cada momento não o que é melhor para a equipa, não tomar a mais oportunista das decisões, mas antes ataviar-se de um brilho e romance que, aos seus próprios olhos, os distingam dos demais. Encontrei esta ideia pouco depois de ler um texto do Jorge D., no Centro de Jogo, sobre um jogador que também eu admirei, e admiro, tendo também feito questão de escrever, há uns anos, um texto sobre ele neste blogue: Pedro Barbosa. Na altura, senti que não se explicava todo o seu encanto apenas com aquele estilo blasé com que desfilava no campo, ou com a inteligência com que abordava as situações com que o lado caótico do jogo o brindava. Barbosa era mais como Zidane ou Pirlo. Não reconheço que estes jogadores se tenham destacado “apenas” pelas características acima enumeradas, apesar destas serem inequívocas; acredito, porém, que outra afinidade os transcendia: a necessidade a que se atavam de, independentemente do que o jogo lhes oferecia, se projectarem num patamar superior. Aqui descobrem-se, por certo, algumas resistências: encontramos um rebanho de jogadores que, acima do que podem oferecer à equipa, pensam no que podem oferecer a eles próprios perante o jogo, tão obcecados que estão em alcançar o reconhecimento dos demais. Vou dar um exemplo, que me é tão querido, de imediato saltando à vista: Liedson. Mais do que aquilo que podia oferecer à equipa, este jogador procurava a mais pequena ocasião para se emancipar. Aqui retorno, todavia, às qualidades indissociáveis dos três primeiros (Barbosa, Zidane e Pirlo ) para concluir que os valores sobre os quais se dobra a necessidade de privilegiar a equipa resultam de diferenças abismais - para com jogadores como Liedson, por exemplo - nas suas preocupações durante o jogo. Ao brasileiro pouco lhe diziam os meios com que alcançava a notoriedade no jogo; conquanto no final de contas ele fosse o jogador que mais golos fizesse ou mais quilómetros arasse, pouco lhe importava o carácter das soluções encontradas; não encontrávamos nos outros três a mesma disposição, a mesma ligeireza nos seus processos. A atracção recaía sobretudo na elegância das soluções, cunhando-as de uma graça circunscrita ao seu próprio cânone, imunes a perversões de circunstância ou ambiente. Assisti a todos os jogos da Itália neste europeu, e, mais do que observar em Pirlo a necessidade de ajudar a equipa, encontrei nele o imperativo de jogar bonito, embora não aquele bonito envolto em acrobacias de circo, espalhafatoso no seu grito por atenção; a elegância do seu jogo, fatalidade de um vício do belo, manifestava-se na tranquilidade com que desenhava cada lance; e, no entanto, a grande maioria das suas soluções não se esgotavam no sentido estético do seu jogar, catapultando a Itália para uma qualidade de jogo nunca vista. E aqui, por fim, chega o essencial do meu argumento: não se escondam jogadores como Pirlo em sociedades tacanhas, ainda que democráticas, todos participando com a sua visão na regulação das suas leis e costumes; atribuam-lhe, sim, o título de déspota, e o brilho do seu jogo, libertando-os das suas próprias limitações, a um nível apenas ficcionado os sublimará. Em jogadores como Pirlo, cuja principal preocupação é fornecer elegância ao jogo, a única maneira de o fazer é numa abordagem superior ao mesmo, desprezando os pergaminhos da equipa onde se inserem. Concedam-lhe as rédeas da equipa e talvez encontremos naquele conjunto um vislumbre do que o conjunto blaugrana nos ofereceu constantemente. Acredito que este Europeu a Pirlo deve muito do seu encanto, e talvez este encanto torne merecedor um agradecimento a Prandelli; contudo, é na incapacidade de Pirlo de se furtar aos sacrifícios do Belo que se funda todo o futebol da Itália, e o seu reconhecimento pelo seleccionador italiano no Europeu de 2012. Na final, não escondi a minha predilecção pela Itália. Minto. Não pela Itália, mas por Pirlo, desejoso que o ego de um só jogador se superiorizasse a toda uma ideia de jogo que, afinal de contas, também era a dele, apenas mais simples e humilde. Venceu um conjunto de jogadores, habituados que estavam partilhar entre si um ideal que os elevava, perante um homem só, cujo sentido estético o entrelaça nas raízes de tão avançado conceito.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Euro 2012 - A Sobrevivência do Mais Forte

Terminado o torneio, não ficam muitas dúvidas: a prova foi eliminando os menos capazes, quer individualmente, quer colectivamente, e foi preservando os mais aptos. Espanha, Itália, e Alemanha foram as equipas mais fortes do torneio, e Portugal a mais competente das restantes. Mas tanto a Itália como a Espanha, por serem superiores, mereciam esta final, e a Espanha, tanto pela superioridade que já demonstrara no primeiro jogo, apesar do empate, como por ser, de facto, melhor equipa, não podia deixar de se sagrar vencedora. Findos 6 anos de conquistas, é talvez tempo para reflectir. Mais do que dizer disparates, do que torcer contra eles, porque nos eliminaram, do que desejar-lhes a queda, por incompreensão do fenómeno, há que reconhecer-lhes a superioridade, tentar perceber as causas dessa superioridade, elogiá-las, e tentar reproduzi-las. A Espanha é o que é por várias razões. A primeira chama-se obviamente Guardiola. Sem o modelo catalão, sem o perfil de decisão que os jogadores catalães trouxeram para a selecção, esta Espanha seria muito diferente. Não seria de todo injusto se aos 14 títulos no currículo de Guardiola se juntassem os títulos espanhóis. Mas outra causa, menos recente, e mais ampla, explica este sucesso. A Espanha começou há mais de 20 anos a investir no futebol (e no desporto, em geral), em formação, numa identidade, num perfil de jogador muito próprio, alicerçado no talento e na inteligência, e prova agora que os grandes jogadores do futebol moderno, ao contrário do que muitos defendem, têm origem nas academias e não na rua. Não fosse assim, e as ruas da Catalunha teriam de ter qualquer coisa de especial, para que aparecessem tantos craques catalães. Aquele argumento de que um país com poucas pessoas dificilmente é capaz de competir com um país com muitas pessoas, pois a base de recrutamento é incomparavelmente menor, é um disparate. É evidente que em países como o Brasil ou a Argentina, em que o futebol de rua ainda tem força, é menos importante ter projectos de formação competentes para que apareçam muitos bons jogadores. Mas se há coisa que esta selecção espanhola veio mostrar é que um projecto de formação competente, pensado a longo prazo, não só permite anular a diferença entre bases de recrutamento maiores e menores, como deixa claro que, actualmente, os jogadores de topo são jogadores que adquirem habilidades que não podem, de modo nenhum, adquirir na rua.

Há palermas que acham, pelo menos desde o mundial de 2010, que esta Espanha é uma selecção defensiva. São palermas que, por exemplo, consideram o estilo de jogo espanhol aborrecido, sonolento, que acham que a equipa usa a bola para adormecer adversários, e para defender. Claro que a Espanha usa a bola para defender, mas esse uso não é exclusivo. Acima de tudo, esta Espanha sabe uma coisa que estes palermas não sabem: quem ataca é quem tem a bola. A Espanha é uma equipa ofensiva, nem que seja pelo simples facto de ter mais tempo em seu poder, por norma, o instrumento que permitiria que o adversário, se o tivesse, pudesse atacar. Mas a Espanha não é só isso. É uma equipa que assenta o seu modelo na posse de bola, e faz uso dela para tudo: para defender, claro, mas para irritar o adversário, para descansar, para desposicionar as linhas adversárias, para se recrear, e claro, para atacar. Esta Espanha, pelo simples facto de ser, em toda a História, a selecção que melhor ataca, que mais conscientemente percebe por onde deve entrar, quando deve forçar e quando deve manter a bola, é a equipa mais ofensiva da História. Os palermas, por serem palermas, acham que ser ofensivo é jogar com muitos avançados, ter um modelo vertical, jogar sempre para a frente, etc.. Essas equipas são ofensivas, sim, mas também são irresponsáveis, e incompetentes. Para os palermas, ser ofensivo é simplesmente o contrário de ser defensivo. O corolário da tese dos palermas é o de que as equipas ofensivas não podem ser defensivas. É um corolário estúpido, mas é o corolário de um raciocínio deste tipo. Eu, por acaso, acho o contrário: acho que a melhor equipa, em termos ofensivos, será necessariamente a melhor equipa, em termos defensivos. Quando, por isso, os palermas dizem que a Espanha é defensiva, estão no fundo a dizer que é ofensiva, sem o saberem. De facto, em futebol não é difícil de saber o que é atacar e o que é defender: quem tem bola, ataca; quem não tem, defende. Depois, há quem ataque bem, há quem ataque mal, há quem ataque de forma mais rápida, há quem ataque de forma mais lenta, há quem ataque de forma mais racional, e quem ataque de forma mais irracional. Mas, no fundo, ataca quem tem bola, e defende quem não a tem. Ao contrário do que pensam os palermas, que pensam que esta Espanha ensinou o mundo a defender com bola, o que esta Espanha fez foi ensinar que é possível atacar defendendo e defender atacando. Há uma diferença monstruosa entre atacar porque sim e atacar racionalmente, e essa diferença consiste em saber os usos certos a dar à bola. Os palermas que acham que o futebol da Espanha é aborrecido não percebem isso. Como não percebem a racionalidade do futebol espanhol, e no fundo defendem a irracionalidade, são estúpidos. São estúpidos, e um futebol inteligente como o da Espanha, dá-lhes sono. Os palermas, tal como preferem fogo-de-artifício a um livro, preferem uma equipa inglesa (e o futebol electrizante praticado em terras de Sua Majestade) ao futebol mais bem praticado de sempre. A conclusão de tudo isto é que os palermas não gostam de futebol. Gostam das sensações que se habituaram a ter ao ver futebol. E isso é diferente. Aborrecida, esta Espanha? Aborrecida uma equipa em que todos os jogadores estão a pensar ao mesmo tempo? Aborrecido um futebol em que, de minuto a minuto, os jogadores nos mostram habilidades dificílimas e fazem coisas que só estão ao alcance de muito poucos? Aborrecido é ver um jogo com quarenta oportunidades de golo, mas que resultam de choques no ar, de erros infantis dos defesas, de remates violentos, de jogadas com 2 passes, do aproveitamento do muito espaço que existe, etc.. Aborrecido é ver um jogo que só se joga ao pé das balizas, em que ninguém faz nada de extraordinário, para além de pôr a plateia ao rubro, com a eminência do golo. Os palermas não sabem o que é a excelência. Gostam de futebol porque lhes dá comichão, não porque reconheçam o que é excelente.

O contrário de um jogo aborrecido, para quem não é palerma, foi a primeira parte desta final. Os comentadores de serviço, como não podia deixar de ser, reproduzem ideias consoante a marcha do marcador. Como o resultado final foi uma vitória esmagadora dos espanhóis, acham que o jogo só teve um sentido, e que a Espanha foi muitíssimo superior. A verdade é que não foi. Aliás, a Itália, na primeira parte, voltou a mostrar de que modo se deve jogar contra esta Espanha, ou seja, com bola. Ao intervalo, já os comentadores diziam que a Espanha estava a ser superior. Diziam-no porque olhavam para o resultado, não porque estivesse, de facto, a ser. A Itália, na primeira parte, criou tantas ou mais oportunidades que os espanhóis, teve mais posse de bola (o que é um feito enormíssimo), mas acabou por ter o azar de encontrar uma equipa inspiradíssima, a quem as coisas foram correndo cada vez melhor. A primeira parte do jogo foi um exemplo daquilo que, na minha opinião, vai ser o futebol daqui a uns anos, um futebol jogado sobretudo no meio-campo, com uma percentagem de passes acertados muito boa, apesar da competência da pressão adversária, um futebol bastante rendilhado, com muitas combinações colectivas, passe e devolução constante, de um lado e do outro, com muitas tabelas, com as equipas a progredirem no terreno de forma apoiada, sustentando os seus ataques através de movimentações interiores, de aproveitamento de espaços entre as linhas defensivas adversárias. Não fossem as vicissitudes da segunda parte, e teria sido o melhor jogo do europeu (o primeiro jogo entre estas duas equipas já estava entre os três melhores), com duas equipas interessadas em ganhar, e sem medo nenhum uma da outra. Aliás, o comportamento da Itália, com bola, foi qualquer coisa de espantoso. Nunca caíram na tentação de jogar longo, procuraram sair sempre a jogar, apesar da excelente pressão espanhola, e a verdade é que foram compensados por essa estratégia conseguindo sair das zonas de pressão várias vezes, e conseguindo chegar à área espanhola em boas condições, e de maneira a criar boas situações de golo. No final, a Itália foi goleada, mas foi a equipa que mais problemas conseguiu criar à defesa espanhola (tanto num jogo como noutro, criaram várias oportunidades de golo). A primeira parte foi equilibradíssima, e a segunda equilibrada começou, com ambas as equipas a criarem oportunidades. Prandelli errou, quando tirou aquele que estava a ser o melhor em campo, Riccardo Montolivo (já havia errado, ao tirar Cassano ao intervalo), e acabou por ter azar, porque Thiago Motta, cinco minutos depois, se lesionou, o que fez com que a contenda terminasse. Mas, ainda assim, está de parabéns. Fatalmente, a Espanha é melhor. Num jogo em que falhou muito menos passes do que em jogos como o das meias-finais, e num jogo em que até teve muito menos espaço no centro do terreno, os seus jogadores acabaram por se mostrar muito inspirados. Quando se elogia tanto Portugal, por ter conseguido anular as ofensivas espanholas, devia-se reflectir um bocado. Portugal teve o mérito de não deixar a Espanha construir na primeira fase, onde eles não são fortes, como o é, por exemplo, o Barcelona, mas nem sequer impôs os mesmos constrangimentos no centro do terreno que os italianos. Simplesmente, as combinações entre os médios espanhóis, a movimentação entre linhas, o jogo sem bola das diferentes unidades espanholas, e as decisões de quem tinha a bola foram muito melhores. Ajudou a isso, entre outras coisas, o estado do relvado, muito melhor que o da meia-final, e o menor cansaço dos espanhóis. Por fim, a questão do avançado. Para os palermas, o golo de Fernando Torres fecha o debate sobre os avançados. Mas é preciso ser palerma para dizer tal coisa. Primeiro, porque foi o único golo espanhol, nesta final, que resultou de uma recuperação alta da equipa. Ou seja, o avançado concluiu um lance que não é típico desta selecção. Segundo, uma das principais razões para que a Espanha estivesse mais inspirada foi a inclusão de Fabregas no onze, em detrimento de Negredo. Aliás, a Espanha fez apenas dois jogos fracos, neste europeu, e em nenhum deles Fabregas foi a opção de ataque. Sempre que a Espanha jogou sem avançado, foi superior, criou mais oportunidades, e não deu quaisquer hipóteses ao adversário. Se provas ainda fossem precisas, o que esta final demonstrou (já que o empate do primeiro jogo tinha levantado essa dúvida) é que o estilo de jogo espanhol exige um avançado que não o seja. Para que este estilo seja eficaz, é preciso quem saiba aproximar, dar apoio vertical, jogar entre linhas, tabelar. Um médio habilidoso, por norma, sabe-o muito melhor do que um avançado de área. É por isso que esta Espanha funciona melhor sem avançados.

 Melhor Equipa, em 433:

Guarda-Redes: Buffon
Defesa Direito: Debuchy
Defesa Esquerdo: Philip Lahm
Defesas Centrais: Piqué e Hummels
Médio Defensivo: Andrea Pirlo
Médios Ofensivos: Luka Modric e Xavi
Extremos: Andrés Iniesta e Cristiano Ronaldo
Avançado: Cesc Fàbregas

Treinador: Cesare Prandelli

Suplentes:

Guarda-Redes: Iker Casillas
Defesa Direito: Arbeloa
Defesa Esquerdo: Jordi Alba
Defesas Centrais: Chiellini e Lescott
Médio Defensivo: Sergio Busquets
Médios Ofensivos: Marchisio e Montolivo
Extremos: David Silva e Mesut Özil
Avançado: Ibrahimovic

Treinador: Michal Bilek
  
Melhores Jogadores: 1º: Andrea Pirlo; 2º Andrés Iniesta; 3º Luka Modric