domingo, 27 de dezembro de 2015

O Retrato da Liga Inglesa num só Lance

Há imagens que valem por mil palavras. A Liga Inglesa é, pelo investimento que hoje envolve, a liga com mais potencial no mundo. Não obstante, o futebol praticado continua a ser, em larga medida, deplorável. A minha teoria - há muito que a defendo - é a de que a mentalidade desportiva não tem permitido que o jogo evolua. Apesar de a quantidade de grandes jogadores continuar a aumentar, apesar do investimento estrangeiro ser cada vez mais comum, e apesar de, finalmente, começarem a ser contratados treinadores estrangeiros não apenas para as principais equipas, o futebol inglês continua amarrado a um conceito de desporto que, no limite, é contraproducente. A predilecção pela velocidade ou pelo músculo em detrimento do cérebro, pelas qualidades atléticas dos jogadores e não pelas suas qualidades intelectuais, a insistência absurda em defender que o futebol é um jogo de contacto, cuja principal consequência é um modelo de arbitragem que, grosso modo, beneficia os toscos e prejudica os artistas, e, sobretudo, a cegueira a que a generalidade dos intervenientes são conduzidos pela emoção desmesurada com que o jogo é encarado continua a dificultar a evolução do futebol britânico.

É possível apresentar um bom retrato do que acabo de dizer. Num dos últimos lances do encontro que opôs o Liverpool de Klopp ao sensacional líder do campeonato, o Leicester City de Ranieri, a equipa visitante procura chegar ao empate, e Kasper Schmeichel sobe para a grande área. A bola acaba por ser sacudida pela defensiva do Liverpool e sobra para Kanté, penúltimo defensor do Leicester, que se prepara para a reenviar para a área. Tudo o que acontece de seguida é o espelho de um campeonato da idade da pedra. Embora absurdo, não me interessa muito nem a falta claríssima sobre o jogador do Leicester (um dos muitíssimos contactos faltosos que, ao longo do jogo, não foram punidos pelo árbitro da partida e que, ajudando a criar a ilusão de que o jogo foi muito disputado e intensíssimo de parte a parte, retiraram a meu ver todo o interesse à partida, quer do ponto de vista técnico, quer do ponto de vista táctico), nem o falhanço clamoroso de Benteke, que não soube aproveitar uma situação de clara vantagem numérica. Interessa-me, sim, o que acontece entre esses dois momentos. Refiro-me ao passe que faz a bola entrar em Benteke.



Que nenhum elemento, das três equipas que se encontravam em campo, tenha percebido a irregularidade do lance, nem no momento em que ele decorria, nem depois de ele ter terminado, diz tudo do futebol que se pratica em Inglaterra. Nem o árbitro, nem o fiscal de linha, nem o jogador do Liverpool que faz o passe, nem o jogador do Liverpool que o solicita, nem nenhum outro jogador do Liverpool, nem o defesa do Leicester que ficara para trás com a subida do guarda-redes, nem o guarda-redes que vem a correr desalmadamente, nem qualquer outro jogador do Leicester (ninguém protesta!), percebeu que um passe para um jogador que, estando à frente da linha de meio-campo, tem à sua frente apenas um defensor, é um passe irregular. Consigo admitir que um árbitro interprete mal um lance, sobretudo se esse lance não for muito vulgar (a invulgaridade, aqui, era o último defensor não ser o guarda-redes). Um fiscal de linha, contudo, já não deveria falhar, nesse tipo de coisas, pois tem menos tarefas nas quais se deve concentrar. De qualquer modo, não é do erro da equipa de arbitragem que é importante falar. Que ninguém dentro das quatro linhas (e aposto que nas bancadas também não houve muita gente a aperceber-se da irregularidade do lance) tenha percebido a posição de fora-de-jogo da qual Benteke tira proveito é, a meu ver, o melhor retrato possível do que vai mal no futebol inglês. Nos estádios ingleses, a inteligência fica nos balneários. Enquanto isso não mudar, dificilmente o futebol inglês atingirá o patamar qualitativo a que o potencial económico o promete alçar.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Os Médios de Transporte e o Renato

Ontem, diante do Atlético de Madrid, houve um jogador encarnado que se destacou. Não, não foi Renato Sanches.  Lamento desapontar todos aqueles que aplaudiram de pé a iniciativa esplendorosa do Renato quando, já perto do fim do jogo, decidiu empolgar as bancadas do circo e pegou na bola, passou por cima de meia-dúzia de adversários, aos trambolhões, e, depois de perder a bola, como era natural que acontecesse, mordeu a língua, foi atrás do adversário, recuperou-a, arrancou de novo com ela e... passou a linha lateral. O momento, gravado na emoção das pessoas com carinho, e na História do jogo como o mais ridículo, constitui o exemplo perfeito do quão absurdo é tudo o que se diz e pensa acerca do jogo nos dias que correm. O Benfica empolgou-se depois de reduzir, e o Renato, sentindo que, sendo o momento de fazer das tripas coração, podia deixar de pensar no que estava a fazer, como até então, decidiu que era uma boa altura para começar a correr desalmadamente. Nas bancadas, gosta-se de quem o faz, ainda que o faça sem nexo. As arrancadas de Renato Sanches são, de facto, poderosas. As suas competências atléticas são invejáveis, e consegue ganhar muitas bolas à custa disso. É pena que o futebol não seja nada disso, e que a um jogador de futebol se exijam, sobretudo, competências intelectuais. Sim, é verdade que, em algumas das arrancadas do Renato, deixou dois ou três adversários para trás. Mas, para que isso acontecesse, teve sempre de ganhar no choque e de esticar o drible, o que o obrigava a disputar a bola no limite com o adversário seguinte... até a perder. Sim, é verdade que ganhou dois cartões com base nesse tipo de iniciativas. Mas também perdeu inúmeras bolas que, jogando com a cabecinha e não com o músculo, não perderia. Nas bancadas, isso não interessa. Interessa, sim, que o Renato faça lembrar o Eusébio contra a Coreia, mesmo numa altura em que correr com a bola e passar por vários adversários em força já não traga quaisquer dividendos à equipa. Sim, o Renato é um anacronismo, e o que as bancadas da Luz aplaudiram, sem que o soubessem, foi a História do Clube.

O melhor em campo, ontem, não foi o Renato. Foi o Pizzi. De muito, muito longe. E quantos aplausos mereceu o Pizzi ontem? As pessoas não gostam de futebol. Gostam de circo. De tal maneira que o melhor que o Renato fez em campo foi aquilo em que praticamente ninguém reparou: a simplicidade com que jogou durante os primeiros 60 minutos. Sempre que o Renato decidiu complicar (e a partir dessa altura foi muito)  o seu futebol perdeu qualidade. Aliás, aquilo que mostrou a partir do momento em que se passou a jogar mais com o coração do que com a cabeça parece ser a tendência natural do jogador. Retraído, por estar a dar os primeiros passos na equipa principal, Renato Sanches até tem feito boas coisas. Tem decidido rápido, tem jogado simples, tem limitado o seu jogo a fazer a equipa jogar. Também ajuda o facto de o Benfica jogar em 442 clássico, e de o Renato ser forçado a jogar sistematicamente fora do bloco adversário. Num ou noutro momento, quando em circunstâncias diferentes (em zonas de terreno mais povoadas, com menos soluções de passe fáceis) ou quando o coração dita o ritmo de jogo, vê-se, no entanto, qual é a tendência  natural do Renato: transportar, driblar, ir ao choque. Não há a tendência, por exemplo, para procurar o apoio frontal em progressão, ou para solicitar uma tabela; não há a tendência para progredir com a cabeça levantada, esperando que um colega o ajude a tomar a decisão através de uma desmarcação; não há a tendência para progredir lentamente, acelerando apenas no momento em que o adversário lhe sai ao encalce, jogando assim com a expectativa de quem lhe tenta tirar a bola (veja-se o que o Draxler fez ontem no segundo golo do Wolfsburgo). Isto para não falar do seu posicionamento e da forma como falha sistematicamente em ajustá-lo à rápida alteração das circunstâncias do jogo, como o demonstra, por exemplo, o primeiro golo do Atlético de Madrid ontem. Que ninguém tenha sequer percebido que foi ele que, enquanto segundo médio, falhou em povoar o espaço à frente da defesa, ainda para mais com o deslocamento de Jardel, diz muito acerca da euforia que se gerou à sua volta. É que falhou nesse lance e falhou em muitos outros parecidos. É verdade que o 442 clássico de Rui Vitória torna difícil esse tipo de ajustamento constante, e ontem o Benfica deu sempre espaço nas costas dos dois médios. O próprio Simeone ter-se-á apercebido disso, e foi para aproveitar essa deficiência que Griezman passou a jogar solto no meio a partir dos 20 minutos de jogo, com os benefícios que se viram.

O Renato é um médio de transporte clássico. E, não sei se as pessoas ainda não repararam, mas já há algum tempo que o futebol dispensou esse tipo de médios. Há uns anos, havia um médio em Portugal que se destacava pelas arrancadas com bola, através das quais tirava dois ou três jogadores do caminho. Quase toda a gente garantia que estaria entre os melhores do mundo dentro de poucos anos. Teve a sorte de sair para o único campeonato do mundo que ainda se compadece com médios de transporte, o inglês, e teve a sorte de poder jogar a partir da posição de médio, num 442 clássico, e não como médio ofensivo, entre linhas, posição em que dificilmente as suas qualidades teriam relevância. Em poucos anos, tornou-se num jogador banalíssimo. Chamava-se Anderson. O Renato não é especialmente diferente. Não é tão evoluído tecnicamente, o que talvez obste a que possa fazer carreira numa ala (posição em que Anderson talvez pudesse ter tido mais sucesso), e parece mais forte fisicamente, o que não sei se é uma vantagem. Mais ou menos na mesma altura, havia em Portugal, e no Benfica, um médio que muita gente começou por apreciar e que se destacava precisamente por transportar e ir ao choque. Chamava-se Beto. É verdade que o Renato me parece tecnicamente mais evoluído do que o Beto. Mas lembro-me bem do impacto que o brasileiro teve quando chegou à Luz, do quão empolgadas as pessoas andavam com a forma física, a capacidade de luta e a força natural do Beto. É exactamente isso que apreciam no Renato Sanches. Ainda que o Renato me pareça francamente melhor do que o Beto, aquilo pelo qual tem sido elogiado não é em nada diferente daquilo que levava as pessoas a confundir o Beto com um jogador de futebol. Actualmente, há um jogador em Portugal do estilo do Renato. Chama-se Imbula e custou 20 milhões de euros. Tanto um como outro, tendo obviamente algumas qualidades, me parecem sobrevalorizados. São essencialmente médios de transporte, competentes do ponto de vista técnico e muito fortes fisicamente. O futebol, contudo, joga-se com a cabeça, e não há médio moderno de eleição que não tenha nas competências intelectuais a sua principal virtude.

O futebol moderno requer essencialmente dois tipos de médios: médios que se distinguem pelo posicionamento, pela simplicidade de passe e pelo compromisso que conseguem manter de não forçar a entrada no bloco adversário, e que fazem carreira como médios-defensivos (jogando como pivot defensivo ou de perfil com outro médio); e médios que se distinguem pela criatividade, pela imaginação e pela capacidade de se movimentarem dentro do bloco adversário e de decidirem em espaços curtos. Renato Sanches não parece especialmente vocacionado para nada disto. Pertence a um terceiro tipo de médios, que, em boa verdade, continua a ser apreciado em muitos sítios e por muita gente, mas dos quais dificilmente se destaca um nome, nos dias que correm. A este terceiro grupo pertencem os médios de transporte, como é o caso do Renato, mas também os médios de combate, sobretudo vocacionados para tarefas defensivas, e os chamados "box-to-box", médios que se distinguem especialmente pelas capacidades sem bola, pela forma como recuperam o posicionamento defensivo, como facilitam a transição ofensiva ou como chegam com velocidade à área adversária. É provável que não haja um médio deste terceiro tipo entre os 20 melhores médios do mundo desde Patrick Vieira (talvez tenha havido o Essien, durante duas épocas). Mesmo Yaya Touré, que é vulgarmente tido como médio de transporte, não cinge o seu jogo a isso, sendo muito perspicaz, por exemplo, na maneira como se envolve em triangulações com os colegas. No futebol moderno, os melhores de entre este terceiro tipo de médios estão ao nível dos razoáveis dos outros dois tipos. Do Renato Sanches não espero, por isso, muito mais do que um médio razoável. Toda a euforia em torno dele é profundamente injustificada, e vem apenas confirmar que só por acaso é que o halterofilismo não é o desporto-rei em Portugal.

P.S. Os últimos minutos do jogo deram a impressão de que o Benfica conseguiu discutir o resultado com o Atlético de Madrid, e foi isso que, em larga medida, quase toda a gente disse. Se calhar vi um jogo diferente, mas pareceu-me que o Atlético, sem fazer um jogo extraordinário, podia facilmente ter saído da Luz com uma goleada. Valeu Lisandro, com três ou quatro antecipações providenciais, o facto de a equipa de Simeone não estar entre as melhores do mundo a aproveitar o espaço entre a linha defensiva e a linha de meio-campo e o desinteresse dos espanhóis em ter a bola ao longo de todo o jogo.