quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Coragem...

"Não é obrigatório que só por ver como as características da equipa não favorecerem uma cultura de posse (indo assim passar a maior parte do jogo sem bola) que o treinador deva optar logo por um jogo mais directo, abdicando do que seria o seu modelo, afinal as ideias de jogo que considera a melhor forma de jogar bom futebol."

Luis Freitas Lobo, in "Porque «jogar bem» é específico".


Da mesma maneira que não é fácil educar bem uma criança, colocar uma equipa a jogar futebol de qualidade é uma tarefa que envolve alguma complexidade. Requer tempo, perseverança, disciplina, metodologia, discernimento e coragem, muita coragem. A coragem necessária para impor o modelo que preconizamos, assim como a interpretação do mesmo.

Para alguém que nunca andou em nenhum dos dois, será sempre mais complicado conduzir bem um automóvel que uma parelha de cavalos; no entanto, os benefícios de optar pelo primeiro sobre o segundo (salvo raras excepções) é evidente .

Não é fácil impor um modelo que, por ser mais exigente, vai encontrar mais resistência por parte de uma significativa fatia dos jogadores. Aqui importa realçar a concepção de "exigente": normalmente, quando se fala em exigência e entrega, pondera-se apenas factores físicos, coisa de que discordo totalmente. A exigência não se pode resumir a esforço físico, como se de um cavalo de corrida se tratasse. A exigência terá de passar por uma interpretação correcta, de cada jogador, do que o modelo de jogo escolhido requer. Ou seja, é importante que da parte dos jogadores haja disponibilidade intelectual para compreender o modelo de jogo.

Assim, quanto mais exigente for o nosso modelo, maior será a resistência encontrada pelo treinador. A verdade é esta: é muito mais fácil optar por um estilo directo, que separe sectores, que parta o jogo em dois momentos, que escolha a marcação individual etc., do que escolher um modelo de jogo que, apesar de lhe permitir ser mais forte como equipa, vai dar mais trabalho a criar automatismos.

Uma filosofia de jogo que passe por ter um bom jogo posicional, com uma boa posse e circulação de bola, com as transições defesa/ataque e ataque/defesa bem definidas, que defenda à zona, etc., é algo que requer algum tempo até se atingir os objectivos que se pretendem. Todavia, um modelo desta natureza apresenta um potencial e uma capacidade evolutiva que um modelo como o que foi citado anteriormente não possui. E isto está relacionado com a exigência que um e outro apresentam.

E aqui a obrigação do treinador passa por arranjar estímulos para que os seus "pupilos" interpretem bem o que lhes é pedido. A partir de situações que lhes facilitem a compreensão de todas as virtudes do modelo proposto pelo seu técnico, os jogadores terão de compreender que, apesar de mais exigente, aquela filosofia é a melhor. E não o contrário. Ou seja, não é admissível que a incapacidade inicial de uma parte (seja ela grande ou não) do plantel obrigue o treinador a optar por um modelo mais "pobre", só porque este é mais fácil de interiorizar. Até porque esta opção acaba por ser penalizadora para os jogadores que demonstram competência para colocar o modelo de jogo pretendido em acção. O nivelamento quer-se por cima, nunca por baixo.

A competência de um treinador terá de compreender, sempre, vários elementos: astúcia táctica, capacidade de análise do jogo e dos próprios jogadores, liderança, metodologia de treino, disciplina, carácter e coragem. Mais uma vez, coragem. Coragem para não ser apenas mais um, coragem para não se vender, para não cair no erro de ser mais uma "puta" no futebol, procurando os resultados no imediato a qualquer custo. Porque o futebol, a evolução do mesmo, merece melhor.

4 comentários:

Batalheiro disse...

É muito mais fácil ser uma besta sem cérebro durante 90 minutos (estilo Bynia) do que uma borboleta com ferrão (estilo Nuno Gomes).

Concordo com tudo o que escreveste, Gonçalo, menos com um pormenor que me vem fazendo confusão. A questão dos "automatismos". Eu sei que não empregaste o termo no sentido mais lato, mas não gosto de pensar que um jogador parte com duas ou três ideias formatadas para utilizar numa determinada situação...se calhar é um assunto para todo um post.

PS: empreguei o termo "borboleta" de propósito, para quando chegarem as avalanches de comentários sem sentido terem ainda mais uma razão para se enervarem.

Gonçalo disse...

Eu qd falo em automatismos, é mais no sentido de a equipa ter movimentações colectivas padronizadas que proporcionem aos jogadores um ambiente familiar, isto é, que os jogadores reconheçam na disposição da equipa uma estrutura de apoio nas suas decisões.

É que assim fica muito mais fácil o jogador poder decidir, tendo conhecimento prévio da "rede" que o rodeia.

Qt ao post, o Nuno já demostrou interesse por esse assunto, pode ser que haja novidades em breve.

Um abraço

Anónimo disse...

Primeiro comentário que faço neste blogue, que faz excelentes reflexões, que está ao nível das melhores escritas que lei-o regularmente.

Digo isto porque treinei duas equipas na distrital e uma na 1 divisão nacional feminino do nosso país, e como os jogadores/jogadoras eram razoavelmente nivelados por baixo, o trabalho que tive com eles foi árduo, para que estes não caíssem na tentação do futebol "kick and run".

Ensinei-os a correr,a cordenarem-se no campo, a saber cobrir espaços, correr menos, mas melhor [que na realidade faz com que se corra com inteligência e evite gastos desnecessários fisiológicos], e a pensar melhor o jogo e com as características de cada um, soubessem angariar outras de uma forma mais inteligente e não tão física, algo que por vezes em determinadas mentes, é difícil, porque acham que a melhor característica deles é velocidade, contacto, outros jogo aéreo, outros o músculo e virilidade,etc...enfim, uma serie de barbaridades, mas que compreendia, uma vez que sempre foram educados no futebol assim anteriormente.

Em pouco tempo, não tanto como se possa imaginar, as equipas jogavam um futebol atraente, inteligente e coordenado quando baste, chegando ao ponto dos adversários perguntarem, como a equipa jogava tanto, e não se reflectia na tabela classificativa [resta dizer que apanhei sempre equipas que estavam com a época em curso e mal classificadas].
Os próprios adeptos, falavam que como era possivel passarem do 8 para 80 com este tipo de jogadores.

Eu só respondia que se derem oportunidade a muitos de pensarem o jogo, eles próprios se surpreenderão, e assim foi.

resta dizer que consegui os objectivos de permanecer na divisão que essas se encontravam.
Na distrital ficaram na mesma divisão, no nacional feminino também, sendo que sai sempre no final das épocas porque, não me ofereciam garantias de continuar um trabalho melhor, nem aos atletas que dispunha, sendo que o feminino, um ano depois desistiu, infelizmente nesse clube.

Já li um ou outro post, e concordo com a maioria deles, para um jogador e a maioria dos treinadores, é mais fácil treinar simples, e não pensar muito no que deve treinar, mas sim, simplesmente correr e chutar, tendo como ponto de partida o físico, achando muitos este o mais indispensável.
Errado, a inteligência, vale por muitos físicos, não tivesse o conto do "David que venceu Golias", um grau de verdade nisto que digo.

Só para terminar, gostava de dizer que actualmente estou fora do país, porque o futebol ainda não dava para sustentar a minha família, e por isso estou sem treinar a quase 2 anos, mas convém realçar que só tenho 35 anos, e comecei a carreira aos 31, com o curso actualmente II Nivel Pro-Uefa.

Abraço e continuem, pois quem sabe um dia não estaremos a trabalhar em algum lado juntos...

Gonçalo disse...

Sousa, obrigado pelas palavras. E desejo que possas voltar a treinar o quanto antes.

Qt ao que dizes, realmente é verdade. Maior parte dos treinadores continua a privilegiar os factores fisicos em detrimentos dos intelectuais. Mas o mais grave,na minha opinião, é o facto da grande maioria avaliar o jogador e as respectivas exibições, no plano individual, e não no plano colectivo.
Um jogador pode ganhar imensos duelos individuais, e até nem falhat muitos passes, mas se ele optar por jogar curto, numa equipa que o modelo de jogo pretende exactamente o oposto, jogo directo, acaba por prejudicar o "plano" que a equipa possuí, assim como elimina todos os treinos que foram concebdios em função daquele jogar pretendido( atenção que esta hipotese do jogar directo, em detrimento do jogar apoiado, foi só um exemplo. Pois como já deves ter percebido, eu acredito no futebol apoiado).

E muitas mais coisas poderai dizer do que se apanha nestes campos das distritais, como aliás deves saber. Por isso, parabéns por seres diferente da maioria dos treinadores que anadam por ai, e por teres coragem(pq é preciso!!) de assumires essa distinção através da implementação das tuas ideias, sem que estas sejam "corrompidas" pelo deserto de ideias que geralmente "pauta" estas divisões.

Um abraço