And now for something completely different...
... proponho assim iniciar uma nova rubrica: os Clássicos da História do Futebol. Porque nunca é de mais relembrar o passado, eis a resenha histórica de alguns jogos que jamais deverão ser esquecidos. Como estreia, proponho a análise detalhada, tanto quanto possível, da final do Mundial de Itália, em 1990, que opôs a mítica Argentina de Maradona, campeã do mundo em 1986, e a fria Alemanha, capitaneada por aquele que, após duas finais perdidas, em 82 e 86, haveria finalmente de tirar a barriga de misérias: Lothar Matthaus.
Quatro anos depois da final do México, Argentina e Alemanha voltariam a degladiar-se na final de um mundial, desta feita em terras que Maradona tão bem conhecia, na sua segunda pátria, a Itália. Por ter eliminado a selecção italiana, Maradona e a Argentina haveriam de jogar esta final sob um coro de assobios. Reunindo o apoio do público e uma mentalidade mais ofensiva que a sua congénere das pampas, a selecção germânica dominou praticamente todo o desafio, à excepção dos últimos vinte minutos da primeira parte, altura em que a formação liderada por Carlos Bilardo conseguiu equilibrar a contenda.
A Alemanha dispôs-se num 442 clássico, com Bodo Ilgner na baliza, Thomas Berthold a defesa-direito e Andreas Brehme, aquele que viria a decidir o mundial, como defesa-esquerdo; os centrais eram Klaus Augenthaler e Jurgen Kohler, apoiados nas tarefas defensivas pelo impetuoso médio-defensivo Guido Buchwald; as restantes posições no meio-campo eram ocupadas por Thomas Hassler à direita, Pierre Littbarski à esquerda e Lothar Matthaus ao meio; na frente, jogavam em cunha Rudi Voeller e Jurgen Klinsmann. O estilo rectilíneo e de transições velozes, o futebol objectivo, centrado na baliza, ajudariam ao domínio da partida. Já a Argentina actuou de forma pouco organizada, retraída, raramente avançando as suas linhas e dando a iniciativa de jogo à formação germânica. Com Maradona, o jogador mais imprevisível, preso a posições demasiado avançadas, a formação sul-americana foi totalmente manietada pelo futebol mais adulto dos europeus. Sem organização táctica, com posições pouco definidas e demasiada leviandade permitida aos seus jogadores do meio-campo, a Argentina nunca teve consistência e as oportunidades junto da sua área foram-se acumulando. A equipa apresentou-se com um esquema de três defesas, mas a anarquia do meio-campo suscitou variações. O guarda-redes era Goycochea, os defesas Oscar Ruggeri, Simón e José Serrizuela; no meio-campo, Troglio incumbiu-se do lado direito, permutando não raras vezes com Sensini, que ocupava o centro com Basualdo; na esquerda, posicionou-se Lorenzo, que desceu muitas vezes para a defesa; Burruchaga era o vagabundo, aparecendo ora no centro, ora na esquerda, ora na direita, equanto Maradona fazia companhia no ataque a Dezotti.
O 352 da Argentina, pouco flexível, e com as linhas demasiado baixas, implicava 8 jogadores atrás da linha da bola. Isto deu a iniciativa de jogo à Alemanha, cujos centrais e Buchwald tinham demasiado espaço para manobrar. A pressão alta dos germânicos também foi eficiente e a Argentina raramente conseguiu sair a jogar com qualidade. O destaque, nas primeiras transições, vai para Basualdo, o mais criterioso e elegante dos médios. Burruchaga andou sempre perdido no campo e, apesar de tecnicamente muito dotado, foi sempre pouco lesto a desembaraçar-se da bola. Maradona, na frente, poucas bolas recebeu, apesar de todo o futebol dos argentinos passar por endossar a bola ao seu capitão. Insistindo em lançamentos longos para Maradona, que se encontrava preso entre os centrais e Buchwald, a Argentina raramente conseguiu chegar perto da baliza de Ilgner. Só a partir dos 25 minutos da primeira parte é que a equipa se soltou e Basualdo, juntamente com um ligeiro recuo de Maradona e a participação mais correcta de Burruchaga nos lances, comandaram as ofensivas. A formação alemã, ainda que menos dominadora neste período, continuou a ter um futebol sério, fiel aos seus princípios tácticos, e a sair para o ataque de forma veloz, maior parte das vezes por iniciativas de Hassler ou de Littbarski. Andreas Brehme integrou-se igualmente bem no ataque e, além de bons lances pela esquerda, apareceu em zona de remate, à entrada da área, várias vezes, causando situações de pânico para os sul-americanos.
A segunda parte foi inteiramente dominada pelos germânicos. Bilardo deixou nas cabines Ruggeri e fez avançar o gigante Monzon. O futebol da Argentina, cada vez mais medíocre, permitiu que a Alemanha dominasse o encontro. A segunda parte começou praticamente com um lance individual de Littbarski, que passou por dois argentinos e, à entrada da área, rematou forte a rasar o poste. Surgiu mais em jogo, neste período, o capitão Matthaus que, apesar de ser o maestro da equipa, raramente tinha comandado os ataques na primeira parte. Embora não construindo muitas oportunidades de golo, os germânicos encostavam cada vez mais os argentinos atrás, até que se deu o lance capital do encontro. Numa entrada completamente absurda, Monzon ceifou Klinsmann e o árbitro não hesitou em expulsá-lo. Com menos um elemento, a Argentina baixou ainda mais e Maradona passou a pisar terrenos mais recuados. Por esta altura, já o meio-campo alemão era um imenso deserto. Num lance em que, mais uma vez, o espaço na zona central do terreno era muito, Matthaus faz um passe a rasgar para Voeller, que cai na área em disputa com Sensini. O árbitro aponta para a marca de grande penalidade, mas equivoca-se. Andreas Brehme marca o único golo da partida e a selecção das pampas, se já não conseguia sair para o ataque com nexo, perde todo o norte. Poucos minutos depois, com o jogo interrompido, Dezotti tenta apressar a devolução da bola ao local de uma falta e puxa Kohler, que escondia a bola. O gesto ostensivo do argentino e a simulação do defesa alemão fizeram com que o árbitro expulsasse mais um jogador sul-americano. Irados, os argentinos rodearam o árbitro, empurrando-o e encostando-lhe a cabeça. Vindo por trás, Maradona pareceu, numa primeira instância, ter a mesma vontade que os seus companheiros, mas conteve-se, abriu os braços, afastou os colegas, dizendo que ele é que iria falar com árbitro, protegendo-o, e recebeu, imagine-se, um cartão amarelo. Até final, a Argentina limitou-se a ver os alemães a trocar a bola e a desperdiçar, pateticamente, duas ou três oportunidades de baliza aberta.
Mais tarde, Maradona viria a dizer que lhe tinham roubado o título. Não sei até que ponto o árbitro agiu ou não de má fé, mas a verdade é que a Alemanha foi claramente beneficiada. Sendo, apesar de tudo, a equipa que mais jogou e que mais fez por ganhar, o penalty é inexistente e a segunda expulsão é um equívoco. Mas, creio, o gesto mais suspeito do árbitro, foi aquele cartão amarelo para Maradona, quando o astro argentino fora o único de entre os sul-americanos que defendera a autoridade do árbitro. Além de tudo isto, Buchwald merecia ter sido expulso, pelo menos, três ou quatro vezes. A entrada dura de Monzon era, claramente, para vermelho, mas Buchwald teve entradas idênticas que nem amarelo lhe valeram e ainda deu uma cotovelada sem bola em Maradona. Apesar de todos estes episódios, a vitória ficou com quem praticou melhor futebol e com quem encarou o jogo de forma mais inteligente.
Depois da análise do jogo em si, queria, à laia de nota de rodapé, fazer referência a alguns factos importantes. Comparando o futebol da final daquele que ficou conhecido como o mundial mais mal jogado de sempre com o futebol actual, são evidentes todas as evoluções que a modalidade teve. Os jogadores, de uma forma geral, são mais refinados a nível técnico, são mais inteligentes, são capazes de solucionar problemas mais difíceis. No fundo, estão mais preparados a todos os níveis e foram modelados segundo uma exigência muito maior. Porque tiveram necessidade de se adaptar a um futebol mais "difícil" (o futebol dos dias de hoje), os jogadores actuais são melhores, em termos comparativos: qualquer jogador de nível mediano hoje seria um grande jogador naquela altura. Ainda assim, há os casos extraordinários. Maradona era um fora-de-série, um jogador incomparável, dotado de uma capacidade técnica inigualável e de uma imaginação poderosíssima. Basualdo e Burruchaga são os outros nomes que me apraz salientar na Argentina daquela época. Mas, os restantes eram jogadores medíocres, visivelmente pior preparados do que os jogadores actuais. Na Alemanha, destaque para a maturidade de todo o conjunto e para a qualidade de Matthaus, cerebral e competente, Hassler, velocíssimo e tecnicamente muito forte, Littbarski, poderoso no um para um, e Brehme, um lateral de índole ofensiva com um remate espantosamente certeiro e potente. Destaque, pela negativa, para Voeller e Klinsmann. Muito disponíveis, a aparecerem muito bem em zonas de finalização, rápidos, móveis, mas pouco inteligentes. Eram jogadores unicamente para finalizar e, mesmo nesse capítulo, sobretudo Klinsmann, era pouco frio. Raramente tabelavam com os colegas, eram tecnicamente muito deficientes e tinham pouca imaginação. De salientar ainda, uma substituição francamente incompreensível: com mais um homem e o jogo ainda empatado, com a Argentina completamente remetida para a sua zona defensiva, Franz Beckenbauer substituiu o lateral-direito Berthold por outro lateral-direito, Reuter. Aquilo é que era correr riscos, naquela altura...
Outra coisa da qual gostaria de falar era da possibilidade de se atrasar a bola para o guarda-redes. Só ao rever um jogo desta altura me pude aperceber que consequências trouxe essa regra. Até aqui, pensei sempre que a principal consequência era a impossibilidade de se queimar tempo atrasando a bola para o guarda-redes, mas houve algo muito mais importante que passou a suceder. A pressão alta, feita nos últimos defesas, só ganhou verdadeira expressão após esta regra. Porquê? Porque antes não tinha a mesma eficácia que agora. Podendo o defesa atrasar a bola para o guarda-redes, pressionar alto era quase inútil, uma vez que os defesas, sentindo-se ameaçados, podiam sempre recorrer ao guarda-redes, enviando-lhe a bola. É também por esta regra que se explica que o "catennacio", que o futebol defensivo tenha perdido eficácia. Defender em bloco baixo, na altura, era quase a solução mais prática, pois não havia muito a ganhar em defender mais alto. Hoje em dia, há essa possibilidade e tudo passou a ser diferente.
Como último reparo, gostaria de deixar claro que, ao contrário do que alguns palermas me quiseram fazer crer, Matthaus não passou os 90 minutos a marcar individualmente Maradona. Quando confrontado com essa hipótese, a minha intuição e a minha memória disseram-me que Matthaus era, à época, o médio organizador da selecção, sendo por isso praticamente impossível que fosse sacrificado para marcar o astro argentino. Não tendo a certeza absoluta desta intuição, concedi a razão a quem, com tantas certezas, alardeava o contrário. Após ver o jogo, percebi que todas essas supostas certezas caíam em saco roto e que Maradona, além de não ter sido marcado em cima por Matthaus, não teve qualquer espécie de marcação especial. O jogador com quem mais se cruzou em campo foi o médio-defensivo Buchwald. Com Matthaus, Maradona apenas se cruzou uma vez, numa altura em que a Argentina jogava com menos um e que, por causa disso, recuara ainda mais, dando-se o lance no meio-campo. Matthaus jogou como médio-ofensivo, nunca pisando os mesmos terrenos que Maradona, mas havia quem mo jurasse a pés juntos. Essa pessoa não possuía, afinal, qualquer razão, o que me faz acreditar que vale mais a minha intuição que as certezas absolutas dela. Tendo em conta que se achou no direito de me mandar calar, crendo-se sabida, acho-me no direito, agora que estou ciente de ter razão, de lhe dizer que consulte um oftalmologista, que faça um transplante cerebral ou que resolva o seu problema de outra maneira mais simples: não dar opiniões sobre futebol, uma vez que não percebe nada disto. Da mesma maneira que não escrevo sobre política nem venho para aqui dizer que o Bacalhau à Lagareiro é bom é com alho picado, há pessoas que não deveriam ter opinião sobre futebol, ainda que muitas delas escrevam em locais conceituados e sujeitem aquilo que escrevem a muitos leitores. Essas pessoas, quais personagens flaubertianas, não têm consciência de que as suas opiniões, ou infundadas, ou erradas, ou pura e simplesmente insignificantes, não têm qualquer tipo de validade, e crêem-se dotadas de uma cultura e de uma inteligência superior à que na verdade possuem. Arrogam-se de poder falar de coisas das quais não percebem e não aceitam argumentos que comprovam a falsidade das suas suposições. Pessoas como essas, que não têm capacidade para entender mais do que vislumbram, que não têm uma capacidade de raciocínio suficientemente apurada para entender coisas ligeiramente mais complicadas, mas que pensam que são capazes de falar de tudo, de ter conversas interessantes e de se tornarem sábias a pouco custo, pessoas cujo mais profundo pensamento é a mais frívola e superficial ideia que se pode ter, pessoas que repetem as opiniões do povo e julgam arvorar a mais original das novidades, que falam aborrecidamente mas julgam interessante o discurso, que se enchem de clichés e advogam ideias que não são suas, que concordam com a chusma que balbucia disparates sem pensarem na coerência daquilo que dizem, pessoas como essas reúnem em si os valores burgueses (a pequenez, a insolência e a mediocridade) com que Gustave Flaubert dotou o filisteu Monsieur Homais...
... proponho assim iniciar uma nova rubrica: os Clássicos da História do Futebol. Porque nunca é de mais relembrar o passado, eis a resenha histórica de alguns jogos que jamais deverão ser esquecidos. Como estreia, proponho a análise detalhada, tanto quanto possível, da final do Mundial de Itália, em 1990, que opôs a mítica Argentina de Maradona, campeã do mundo em 1986, e a fria Alemanha, capitaneada por aquele que, após duas finais perdidas, em 82 e 86, haveria finalmente de tirar a barriga de misérias: Lothar Matthaus.
Quatro anos depois da final do México, Argentina e Alemanha voltariam a degladiar-se na final de um mundial, desta feita em terras que Maradona tão bem conhecia, na sua segunda pátria, a Itália. Por ter eliminado a selecção italiana, Maradona e a Argentina haveriam de jogar esta final sob um coro de assobios. Reunindo o apoio do público e uma mentalidade mais ofensiva que a sua congénere das pampas, a selecção germânica dominou praticamente todo o desafio, à excepção dos últimos vinte minutos da primeira parte, altura em que a formação liderada por Carlos Bilardo conseguiu equilibrar a contenda.
A Alemanha dispôs-se num 442 clássico, com Bodo Ilgner na baliza, Thomas Berthold a defesa-direito e Andreas Brehme, aquele que viria a decidir o mundial, como defesa-esquerdo; os centrais eram Klaus Augenthaler e Jurgen Kohler, apoiados nas tarefas defensivas pelo impetuoso médio-defensivo Guido Buchwald; as restantes posições no meio-campo eram ocupadas por Thomas Hassler à direita, Pierre Littbarski à esquerda e Lothar Matthaus ao meio; na frente, jogavam em cunha Rudi Voeller e Jurgen Klinsmann. O estilo rectilíneo e de transições velozes, o futebol objectivo, centrado na baliza, ajudariam ao domínio da partida. Já a Argentina actuou de forma pouco organizada, retraída, raramente avançando as suas linhas e dando a iniciativa de jogo à formação germânica. Com Maradona, o jogador mais imprevisível, preso a posições demasiado avançadas, a formação sul-americana foi totalmente manietada pelo futebol mais adulto dos europeus. Sem organização táctica, com posições pouco definidas e demasiada leviandade permitida aos seus jogadores do meio-campo, a Argentina nunca teve consistência e as oportunidades junto da sua área foram-se acumulando. A equipa apresentou-se com um esquema de três defesas, mas a anarquia do meio-campo suscitou variações. O guarda-redes era Goycochea, os defesas Oscar Ruggeri, Simón e José Serrizuela; no meio-campo, Troglio incumbiu-se do lado direito, permutando não raras vezes com Sensini, que ocupava o centro com Basualdo; na esquerda, posicionou-se Lorenzo, que desceu muitas vezes para a defesa; Burruchaga era o vagabundo, aparecendo ora no centro, ora na esquerda, ora na direita, equanto Maradona fazia companhia no ataque a Dezotti.
O 352 da Argentina, pouco flexível, e com as linhas demasiado baixas, implicava 8 jogadores atrás da linha da bola. Isto deu a iniciativa de jogo à Alemanha, cujos centrais e Buchwald tinham demasiado espaço para manobrar. A pressão alta dos germânicos também foi eficiente e a Argentina raramente conseguiu sair a jogar com qualidade. O destaque, nas primeiras transições, vai para Basualdo, o mais criterioso e elegante dos médios. Burruchaga andou sempre perdido no campo e, apesar de tecnicamente muito dotado, foi sempre pouco lesto a desembaraçar-se da bola. Maradona, na frente, poucas bolas recebeu, apesar de todo o futebol dos argentinos passar por endossar a bola ao seu capitão. Insistindo em lançamentos longos para Maradona, que se encontrava preso entre os centrais e Buchwald, a Argentina raramente conseguiu chegar perto da baliza de Ilgner. Só a partir dos 25 minutos da primeira parte é que a equipa se soltou e Basualdo, juntamente com um ligeiro recuo de Maradona e a participação mais correcta de Burruchaga nos lances, comandaram as ofensivas. A formação alemã, ainda que menos dominadora neste período, continuou a ter um futebol sério, fiel aos seus princípios tácticos, e a sair para o ataque de forma veloz, maior parte das vezes por iniciativas de Hassler ou de Littbarski. Andreas Brehme integrou-se igualmente bem no ataque e, além de bons lances pela esquerda, apareceu em zona de remate, à entrada da área, várias vezes, causando situações de pânico para os sul-americanos.
A segunda parte foi inteiramente dominada pelos germânicos. Bilardo deixou nas cabines Ruggeri e fez avançar o gigante Monzon. O futebol da Argentina, cada vez mais medíocre, permitiu que a Alemanha dominasse o encontro. A segunda parte começou praticamente com um lance individual de Littbarski, que passou por dois argentinos e, à entrada da área, rematou forte a rasar o poste. Surgiu mais em jogo, neste período, o capitão Matthaus que, apesar de ser o maestro da equipa, raramente tinha comandado os ataques na primeira parte. Embora não construindo muitas oportunidades de golo, os germânicos encostavam cada vez mais os argentinos atrás, até que se deu o lance capital do encontro. Numa entrada completamente absurda, Monzon ceifou Klinsmann e o árbitro não hesitou em expulsá-lo. Com menos um elemento, a Argentina baixou ainda mais e Maradona passou a pisar terrenos mais recuados. Por esta altura, já o meio-campo alemão era um imenso deserto. Num lance em que, mais uma vez, o espaço na zona central do terreno era muito, Matthaus faz um passe a rasgar para Voeller, que cai na área em disputa com Sensini. O árbitro aponta para a marca de grande penalidade, mas equivoca-se. Andreas Brehme marca o único golo da partida e a selecção das pampas, se já não conseguia sair para o ataque com nexo, perde todo o norte. Poucos minutos depois, com o jogo interrompido, Dezotti tenta apressar a devolução da bola ao local de uma falta e puxa Kohler, que escondia a bola. O gesto ostensivo do argentino e a simulação do defesa alemão fizeram com que o árbitro expulsasse mais um jogador sul-americano. Irados, os argentinos rodearam o árbitro, empurrando-o e encostando-lhe a cabeça. Vindo por trás, Maradona pareceu, numa primeira instância, ter a mesma vontade que os seus companheiros, mas conteve-se, abriu os braços, afastou os colegas, dizendo que ele é que iria falar com árbitro, protegendo-o, e recebeu, imagine-se, um cartão amarelo. Até final, a Argentina limitou-se a ver os alemães a trocar a bola e a desperdiçar, pateticamente, duas ou três oportunidades de baliza aberta.
Mais tarde, Maradona viria a dizer que lhe tinham roubado o título. Não sei até que ponto o árbitro agiu ou não de má fé, mas a verdade é que a Alemanha foi claramente beneficiada. Sendo, apesar de tudo, a equipa que mais jogou e que mais fez por ganhar, o penalty é inexistente e a segunda expulsão é um equívoco. Mas, creio, o gesto mais suspeito do árbitro, foi aquele cartão amarelo para Maradona, quando o astro argentino fora o único de entre os sul-americanos que defendera a autoridade do árbitro. Além de tudo isto, Buchwald merecia ter sido expulso, pelo menos, três ou quatro vezes. A entrada dura de Monzon era, claramente, para vermelho, mas Buchwald teve entradas idênticas que nem amarelo lhe valeram e ainda deu uma cotovelada sem bola em Maradona. Apesar de todos estes episódios, a vitória ficou com quem praticou melhor futebol e com quem encarou o jogo de forma mais inteligente.
Depois da análise do jogo em si, queria, à laia de nota de rodapé, fazer referência a alguns factos importantes. Comparando o futebol da final daquele que ficou conhecido como o mundial mais mal jogado de sempre com o futebol actual, são evidentes todas as evoluções que a modalidade teve. Os jogadores, de uma forma geral, são mais refinados a nível técnico, são mais inteligentes, são capazes de solucionar problemas mais difíceis. No fundo, estão mais preparados a todos os níveis e foram modelados segundo uma exigência muito maior. Porque tiveram necessidade de se adaptar a um futebol mais "difícil" (o futebol dos dias de hoje), os jogadores actuais são melhores, em termos comparativos: qualquer jogador de nível mediano hoje seria um grande jogador naquela altura. Ainda assim, há os casos extraordinários. Maradona era um fora-de-série, um jogador incomparável, dotado de uma capacidade técnica inigualável e de uma imaginação poderosíssima. Basualdo e Burruchaga são os outros nomes que me apraz salientar na Argentina daquela época. Mas, os restantes eram jogadores medíocres, visivelmente pior preparados do que os jogadores actuais. Na Alemanha, destaque para a maturidade de todo o conjunto e para a qualidade de Matthaus, cerebral e competente, Hassler, velocíssimo e tecnicamente muito forte, Littbarski, poderoso no um para um, e Brehme, um lateral de índole ofensiva com um remate espantosamente certeiro e potente. Destaque, pela negativa, para Voeller e Klinsmann. Muito disponíveis, a aparecerem muito bem em zonas de finalização, rápidos, móveis, mas pouco inteligentes. Eram jogadores unicamente para finalizar e, mesmo nesse capítulo, sobretudo Klinsmann, era pouco frio. Raramente tabelavam com os colegas, eram tecnicamente muito deficientes e tinham pouca imaginação. De salientar ainda, uma substituição francamente incompreensível: com mais um homem e o jogo ainda empatado, com a Argentina completamente remetida para a sua zona defensiva, Franz Beckenbauer substituiu o lateral-direito Berthold por outro lateral-direito, Reuter. Aquilo é que era correr riscos, naquela altura...
Outra coisa da qual gostaria de falar era da possibilidade de se atrasar a bola para o guarda-redes. Só ao rever um jogo desta altura me pude aperceber que consequências trouxe essa regra. Até aqui, pensei sempre que a principal consequência era a impossibilidade de se queimar tempo atrasando a bola para o guarda-redes, mas houve algo muito mais importante que passou a suceder. A pressão alta, feita nos últimos defesas, só ganhou verdadeira expressão após esta regra. Porquê? Porque antes não tinha a mesma eficácia que agora. Podendo o defesa atrasar a bola para o guarda-redes, pressionar alto era quase inútil, uma vez que os defesas, sentindo-se ameaçados, podiam sempre recorrer ao guarda-redes, enviando-lhe a bola. É também por esta regra que se explica que o "catennacio", que o futebol defensivo tenha perdido eficácia. Defender em bloco baixo, na altura, era quase a solução mais prática, pois não havia muito a ganhar em defender mais alto. Hoje em dia, há essa possibilidade e tudo passou a ser diferente.
Como último reparo, gostaria de deixar claro que, ao contrário do que alguns palermas me quiseram fazer crer, Matthaus não passou os 90 minutos a marcar individualmente Maradona. Quando confrontado com essa hipótese, a minha intuição e a minha memória disseram-me que Matthaus era, à época, o médio organizador da selecção, sendo por isso praticamente impossível que fosse sacrificado para marcar o astro argentino. Não tendo a certeza absoluta desta intuição, concedi a razão a quem, com tantas certezas, alardeava o contrário. Após ver o jogo, percebi que todas essas supostas certezas caíam em saco roto e que Maradona, além de não ter sido marcado em cima por Matthaus, não teve qualquer espécie de marcação especial. O jogador com quem mais se cruzou em campo foi o médio-defensivo Buchwald. Com Matthaus, Maradona apenas se cruzou uma vez, numa altura em que a Argentina jogava com menos um e que, por causa disso, recuara ainda mais, dando-se o lance no meio-campo. Matthaus jogou como médio-ofensivo, nunca pisando os mesmos terrenos que Maradona, mas havia quem mo jurasse a pés juntos. Essa pessoa não possuía, afinal, qualquer razão, o que me faz acreditar que vale mais a minha intuição que as certezas absolutas dela. Tendo em conta que se achou no direito de me mandar calar, crendo-se sabida, acho-me no direito, agora que estou ciente de ter razão, de lhe dizer que consulte um oftalmologista, que faça um transplante cerebral ou que resolva o seu problema de outra maneira mais simples: não dar opiniões sobre futebol, uma vez que não percebe nada disto. Da mesma maneira que não escrevo sobre política nem venho para aqui dizer que o Bacalhau à Lagareiro é bom é com alho picado, há pessoas que não deveriam ter opinião sobre futebol, ainda que muitas delas escrevam em locais conceituados e sujeitem aquilo que escrevem a muitos leitores. Essas pessoas, quais personagens flaubertianas, não têm consciência de que as suas opiniões, ou infundadas, ou erradas, ou pura e simplesmente insignificantes, não têm qualquer tipo de validade, e crêem-se dotadas de uma cultura e de uma inteligência superior à que na verdade possuem. Arrogam-se de poder falar de coisas das quais não percebem e não aceitam argumentos que comprovam a falsidade das suas suposições. Pessoas como essas, que não têm capacidade para entender mais do que vislumbram, que não têm uma capacidade de raciocínio suficientemente apurada para entender coisas ligeiramente mais complicadas, mas que pensam que são capazes de falar de tudo, de ter conversas interessantes e de se tornarem sábias a pouco custo, pessoas cujo mais profundo pensamento é a mais frívola e superficial ideia que se pode ter, pessoas que repetem as opiniões do povo e julgam arvorar a mais original das novidades, que falam aborrecidamente mas julgam interessante o discurso, que se enchem de clichés e advogam ideias que não são suas, que concordam com a chusma que balbucia disparates sem pensarem na coerência daquilo que dizem, pessoas como essas reúnem em si os valores burgueses (a pequenez, a insolência e a mediocridade) com que Gustave Flaubert dotou o filisteu Monsieur Homais...
5 comentários:
"É também por esta regra que se explica que o "catennacio", que o futebol defensivo tenha perdido eficácia"
o catennacio já estava enterrado há muito quando se criou esta regra!
cumprimentos
Já? Não percebo como. O final da década de 80 não foi de domínio de clubes italianos? O Milan do Capello, na década de 90, não era moldado nesse estilo? A Juventus do Trap, até 86, jogava como? Sabes quem não tinha lugar naquela equipa, por ele não jogar com médios ofensivos? Olha que o catennacio não estava assim tão enterrado. Podia não ser exactamente como o catennacio original, mas era um futebol essencialmente defensivo.
Não se explica unicamente por isto, como é óbvio, mas ajuda. Outra coisa importante na derrota do futebol defensivo foi a lei Bosman. Antes dela, os grandes jogadores mundiais iam parar invariavelmente a Itália. Jogando à defesa e tendo os melhores na frente para resolver individualmente, é fácil de ter a hegemonia. A partir do momento em que ligas como a inglesa ou a espanhola poderam competir financeiramente com a liga italiana, os clubes italianos perderam poderio e o futebol defensivo foi ficando cada vez mais obsoleto...
Uma coisa é futebol defensivo outra coisa é o catennacio! Esse imperou na década de 60! depois disso nunca mais niguém o utilizou.
Catennacio é o nome duma táctica não de um estilo de jogo!
cumprimentos
Sim, pedro, eu sei. Mas sabes o que é uma metonímia? É a figura de retórica que está ligada à palavra catennacio hoje em dia. Actualmente, por metonímia, Catennacio passou a designar todo o futebol de teor essencialmente defensivo. E não sei até que ponto o Catennacio dos anos 60 era mais defensivo que o modelo do Trap na Juventus e no Inter. Disse-se que Trap, quando iniciou a sua carreira de treinador, foi o primeiro impulsionador de modelos anti-catennacio. Segundo sei, Trap era, para a época, um visionário, um homem de ideias ofensivas. Não sei até que ponto isso era assim. Sei que jogar com 8 homens para defender, como ele jogava na Juve, não abona em favor dessa teoria.
não estarás enganado.... acho que a marcação hxh do Mathaus ao Maradona foi feita no Mundial 86...
4 anos depois a Alemanha aprendeu...
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