quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Os Pequenotes

Num desporto em que cada vez mais as pessoas se apaixonam pelos Raúis Meireles do momento, eis que surgem dois pequenotes, desprovidos de velocidade ou força especialmente distinta, mas extraordinários do ponto de vista técnico e, sobretudo, do ponto de vista intelectual, a fazerem as delícias dos verdadeiros amantes da modalidade.

De um deles, disse há pouco mais de um ano que era o meu maior ídolo na actualidade e que seria um prazer poder vê-lo em Portugal, mas que temia que o seu futebol não fosse apreciado e valorizado no contexto nacional e no contexto particular da equipa para onde vinha. A época transacta deu razão às minhas reservas, mas, felizmente, tudo mudou desde Agosto. Do outro, sempre fui fã incondicional e não tinha dúvidas do seu valor. Como em relação ao primeiro, cheguei a temer que a mentalidade retrógrada do país não soubesse retribuir-lhe a qualidade. Felizmente, uma vez mais, encontrou o espaço ideal e a mentalidade ideal na equipa para a qual veio habitar.

Por esta altura, qualquer pessoa sensata saberá já que estas palavras de apreço não poderiam ser dirigidas senão a Pablo Aimar e a Javier Saviola. Os dois argentinos são, a uma distância que não consigo sequer qualificar, de tão vasta, os melhores jogadores deste campeonato. Com eles, o Benfica não é só um candidato ao título normal; é uma equipa mentalmente saudável, imaginativa como muito poucas no mundo. O futebol encarnado tem, colectivamente, uma qualidade considerável e Jesus está, por isso, de parabéns. Mas a principal virtude deste conjunto são estes dois pequenotes. E não estes dois, cada um por si; estes dois, sim, mas quando relacionados um com o outro. O Benfica torna-se especialmente poderoso quando estes dois conseguem combinar entre si, quando se conseguem entender. A relação entre eles é que é formidável. As suas qualidades mais interessantes, por isso, são aquelas que lhes permitem perceber-se um ao outro e não aquelas através das quais conseguem, ocasionalmente, resolver situações individuais.

O principal mérito de Jorge Jesus, de entre os muitos que tem, é ter confiado incondicionalmente o seu Benfica à arte destes dois enormes jogadores. Ao contrário de Paulo Bento, que parece desenhar a sua equipa sempre em função de Liedson, o mérito de Jesus consistiu em perceber em função de quem é que vale a pena desenhar equipas. Se uma equipa de futebol deve ser pensada em função de alguma coisa, deve sê-lo em função do talento. E é de talento que tem de se falar quando se fala nos nomes de Aimar e de Saviola. Estes dois artistas não têm muitos dos atributos que, hoje em dia, muita gente considera essenciais a um jogador de topo. Não são extraordinariamente velozes, não são agressivos, não são capazes de jogar intensamente durante 90 minutos, não são fortes fisicamente, não são altos. No fundo, são dois pequenotes. Acontece que, ao contrário do que muita gente pensa, o futebol é essencialmente para os pequenotes. E Aimar e Saviola encontraram na Luz quem percebesse isso.

O sintoma que mais fielmente denota a saúde desta equipa não é a capacidade de pressionar alto durante 90 minutos, não é a resistência física dos seus jogadores, não é a organização táctica da equipa, não é a quantidade absurda de golos marcados, não é a capacidade de criar jogadas de perigo a toda a hora. Tudo isto são, de facto, indícios positivos. Mas aquilo que melhor espelha o potencial desta equipa não é nenhuma destas coisas. Aquilo que faz pensar que, de facto, o Benfica poderá fazer uma época extraordinária e medir forças com quase todas as equipas do mundo é um pormenor que tem passado despercebido a quase toda a gente. Falo de Aimar e de Saviola, claro. Mas falo deles não por tudo o que é normal dizer deles, mas por outra coisa. Vejam como trocam a bola entre eles descomplexadamente, como jogam para trás quando podiam progredir, como parecem divertir-se ao mesmo tempo que decorre a competição, como se procuram um ao outro em campo, como tabelam com uma destreza inigualável, como confiam um no outro e endossam a bola ao outro mesmo quando este se encontra rodeado de adversários, como jogam à rabia entre adversários, como iludem tudo e todos negligenciando a ideia de progressão e preferindo repetir o passe para trás. Parecem almas gémeas. Entendem-se na perfeição e podem dar-se ao luxo de levar esse entendimento para patamares de complexidade incompreensíveis para a maior parte dos adversários. Ao fazê-lo, tornam-se muito difíceis de parar. Quando se pensa que Aimar vai definir a jogada, com um passe para as costas da defesa, eis que procura Saviola; quando se pensa que este se vai virar para o adversário e forçar a verticalidade, eis que devolve em Aimar; quando se pensa que, agora sim, Aimar vai dar profundidade, eis um passe para o lado para o amigo Javier; quando se pensa que Saviola, após tanta cerimónia, vai finalmente procurar ser objectivo, eis mais um toque curto para o amigo Pablito. E estão nisto o tempo que for preciso. E os adversários à roda, à procura da bola, com a língua de fora e já sem discernimento para perceber que, com tudo isto, se desorganizaram por completo. A consequência deste tipo de futebol é precisamente esta: desorganizar, pela imprevisibilidade, pela estranheza da coisa, toda uma defesa. O futebol curto de Aimar e Saviola, as tabelas e as contra-tabelas, o exagero de passes e devoluções entre eles, tudo isto corresponde ao maior trunfo deste Benfica. Ser capaz de fazer isto é ser capaz de fazer o que há de mais difícil e eficaz em futebol. Há pouquíssimas duplas que o conseguem. Neste momento, só me ocorrem os nomes de Xavi e Iniesta.

11 comentários:

apenasfutebol disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
apenasfutebol disse...

Sublime a descrição do que é, de facto, uma das maiores forças deste Benfica. Os pequenotes são geniais. E o mais engraçado é que ambos, nas mentezinhas de alguns tótós cá do burgo, estavam acabados...
Por vezes quando assisto a muitos dos números proporcionados por este dois argentinos fabulosos, imagino a cara de muitos desses mentecaptos e dá-me uma vontade de rir monstruosa.

São de outra galáxia.

A ver se ainda os conseguimos ver juntos ao vivo esta época, Nuno.
Estou quase a fazer anos...

Abraço

Pedro disse...

Um post com o qual concordo em absoluto. Falar depois é fácil e tal como tu tb me deliciei com o facto de o Benfica ter contratado Aimar. Ainda antes de ter jogado um jogo pelo SLB já eu dizia q estavamos perante o melhor jogador em solo nacional.

Agora chegou Saviola e, tal como tu, sem nunca colocar em causa a sua qualdiade ficava a dúvida da sua adaptação. Felizmente a qualidade adapta-se facilmente e com Jesus a comandar as hostes as coisas estão a funcionar às maravilhas.

Aimar e Saviola a trocarem a bola é algo de espantoso. Aimar então é daqueles jogadores q tenta sempre meter a bola no buraco da agulha, no sitio onde 90% acha q é impossível meter. Nem sempre corre bem mas qd corre é de levantar o estádio. Depois de ter Rui Costa, ter agora Aimar ...quem vier a seguir tem um fardo enorme para carregar.

Os dois entendem-se às maravilhas e Ramires e Di Maria estão a conseguir acompanhar esta dupla deliciosa.

Nuno já agora o que achas do papel do Cardozo? Eu acho q ele tem sido muito importante para q a dupla argentina consiga mover-se da forma como faz.

Pedro disse...

"Falar depois é fácil "

Não é uma boca para ti. Tu falaste antes, muito antes. Só para ficar claro ok?
:)

MB disse...

Tal como disse no lateral esquerdo. O Aimar e o Saviola não deviam jogar futebol 11. São jogadores de futsal :)

Já disse nalgum lado que são sem dúvida os melhores jogadores do Benfica. Realmente custa a acreditar como é que o campeonato português tem jogadores destes.

Outro jogador que me está a encher as medidas (desde a pré-época) é o Coentrão. Pode parecer uma heresia, mas prefiro o Coentrão ao Di Maria. Este provavelmente é mais habilidoso, mas penso que o Coentrão decide melhor as jogadas.


Seria curioso ver um Benfica-Barça.

Nuno disse...

Paulo, hei-de ir ver alguns jogos ao estádio, esta época. E se der para ir nos teus anos, tanto melhor. :) Será sempre um prazer.

Pedro, eu percebi que não era para mim. Quanto ao Cardozo, acho-o importante, sim. Faz com que Saviola não tenha de se preocupar tanto em atacar zonas de finalização e que tenha mais liberdade para aparecer entre linhas. Acho o Cardozo o típico avançado de área que sabe bem que, enquanto avançado de área, é muito bom, mas que se fica por aí. Não inventa, não tenta ser mais do que isso, não tenta fazer coisas que não são para ele e sempre que é chamado a participar no processo ofensivo tenta ser o mais simples possível. Se o Liedson se limitasse àquilo que tem de bom, poderia ser um jogador do nível do Cardozo. Assim, não é.

MB, também acho o Coentrão mais jogador que o Di Maria e pelas mesmas razões. Acho essencialmente que decide melhor e que percebe melhor o jogo que o argentino. No entanto, o argentino, pela reputação que tem, tem mais confiança, joga mais solto, e procura valorizar mais as suas qualidades individuais. Acho o Di Maria um bom jogador e sempre achei. Excede-se um pouco, às vezes, comete erros na tomada de decisão, sim, mas nada de extraordinariamente grave sobretudo para um extremo. Acho, por isso, que o Di Maria está mais perto do seu potencial, neste momento, do que o Coentrão, que me parece que poderá tornar-se um jogador muito temível.

TAG disse...

Mas o Di Maria está a melhorar, não é o Di Maria do ano passado...

Quanto ao Aimar e ao Saviola é um sonho tornado realidade, para mim há uns anos era impensável imaginar jogadores deste calibre no Benfica, quando o plantel era composto por Leonidas e Bruno Bastos...

Ricardo disse...

Belo texto, está tudo dito.

O primeiro golo do Benfica, agora contra o Nacional, é um bom exemplo do que escreves (embora sem a participação directa do Saviola): o Aimar recebe a bola numa zona de pressão, rodeado de adversários, contorna dois ou três "madeirenses" em direcção à própria baliza, depois, já com a equipa do Nacional desorganizada, procura a tabelinha com o Di Maria. Com este movimento (voltinha para trás), que poderia ser tido por alguns como uma regressão e um jogo de empatas, o Aimar consegue acabar virado para a baliza adversária, tendo desequilibrado o opositor e numa situação propícia a soltar a bola em progressão - desta vez para a baliza que interessa. Depois da tabela, o óbvio: o passe a rasgar a defesa do Nacional e a equipa madeirense toda partida. Meio golo esteve na voltinha em direcção ao próprio meio-campo.

Isto só se faz quando se é um jogador de grande talento. E, no momento, de grande, enorme, confiança nas suas capacidades.

Pedro Veloso disse...

Magnífico post Nuno. Permitia-me só um ligeiro reparo, acho mesmo a velocidade do Saviola uma marca distintiva (se bem que, como dizes correctamente, não é A marca distintiva), sobretudo no arranque que é fortíssimo. Exemplos: jogada antes de assistir Cardozo para o 2º golo contra o Everton; 1º golo no Restelo; 4º golo contra o Nacional. Tudo incluiu excelentes acelerações.

Joao Rodrigues disse...

Normal, dois jogadores muito, mas mesmo muito acima da média, no campeonato fraco acabam-se por destacar, propocionandos de bom futebol.

Já agora o que achas do Ruben Micael?

Guilherme disse...

Viva Nuno. Excelente texto como sempre, muito melhor que os últimos posts, que apesar de pertinentes, são pouco "saudáveis". Muita raiva, pouco futebol se é que me percebes. Já agora, para quando um pequeno comentário ao que se vai passando na Serie A ?

Um abraço