quarta-feira, 17 de junho de 2009

Barcelona: a invulgaridade de um jogar

Como sempre aqui se disse, o futebol do Barcelona de Guardiola, esta temporada, foi mais do que um futebol bonito, agradável, bem jogado; foi algo profundamente diferente de tudo o que era costume ver-se num campo de futebol. As diferenças desta equipa para o resto das equipas europeias já foram aqui expostas, mas ainda assim queria, através do exemplo de três jogadas diferentes, apontar para três particularidades evidentes desta equipa. As jogadas apresentadas, na minha opinião, são uma ilustração perfeita de algumas das características que estão subjacentes à invulgaridade deste Barcelona. É sobre elas que me irei deter.





1. No primeiro lance, num desafio que o Barcelona até perdeu, frente ao Osasuna de Camacho, queria chamar a atenção para três momentos diferentes da jogada, todos eles relacionados com o momento defensivo. Em primeiro lugar, quando a jogada ainda se desenrola no lado esquerdo do ataque do Osasuna, repare-se no posicionamento de toda a equipa do Barcelona, em processo defensivo, bem metida para dentro, com o lateral esquerdo, Sylvinho, a deixar praticamente metade da largura do campo sem estar preenchida. De seguida, a jogada vem para o lado esquerdo. Uma vez mais, a equipa movimenta-se toda em função da bola, reduzindo espaços perto do local onde esta se encontra e deixando vazios os espaços que estão longe dela. Repare-se que a equipa, em acção defensiva, procura fazer "campo pequeno" de uma forma quase extrema. Poucas equipas no mundo reduzem tanto os espaços e unem tanto os seus jogadores como este Barcelona; poucas equipas, quando a jogada se desenrola de um lado, deixam tanto espaço livre do lado contrário. Se se traçar uma linha vertical em todo o comprimento do campo, dividindo-o em dois, vemos que em processo defensivo, quando a jogada se desenrola de um lado, os 11 jogadores do Barcelona estão praticamente enfiados na metade onde se desenrola a jogada. O exagero desta basculação não é ocasional e poucas equipas há que levem isto tão longe. Finalmente, gostaria de apontar para o movimento pressionante de Gudjohnsen, quando a jogada está no lado direito do ataque do Osasuna. Quando Bojan pressiona o portador da bola, é imediatamente evidente que a bola vai entrar no extremo, à frente, que tem nas costas Sylvinho. Gudjohnsen, tendo nas costas Busquets a fechar o espaço central, avança alguns metros rapidamente, não para ir marcar individualmente o médio do Osasuna que sobrava, mas sim para fechar a única linha de passe que poderia ser usada pelo Osasuna para continuar a progredir, ficando a equipa adversária obrigada a recuar o jogo, como aconteceu. Este movimento de Gudjohnsen não é apenas dele; é um movimento colectivo que representa na perfeição a forma de defender desta equipa, o privilégio dado ao espaço, à bola, às linhas de passe, às coberturas sucessivas, ao pressing zonal, etc.

2. Na segunda jogada, num jogo frente ao Valência, que acabou empatado a 2, o Barcelona adiantou-se no marcador com uma jogada que ilustra todo o processo ofensivo da equipa de Guardiola. Após uma tabela perfeita entre Iniesta e Messi, a deixar Iniesta na cara do guarda-redes, o médio espanhol, em vez de chutar à baliza, pára e senta o guarda-redes, servindo novamente o astro argentino, que chuta sem oposição. O desenlace do lance evidencia a prioridade desta equipa em trocar a bola, mesmo quando em condições privilegiadas para chutar à baliza. Tendo o guarda-redes pela frente, Iniesta surpreende ao não chutar, preferindo esperar pelo tempo correcto para que um colega se posicionasse em melhores condições para fazer golo. Não chutar, naquelas condições, é ilustrativo da diferença óbvia que existe nos processos ofensivos desta equipa. É evidente ainda que os jogadores do Valência ficam a reclamar fora-de-jogo de Iniesta, mas por momentos dá a impressão de que os defesas valencianos parecem queixar-se, isso sim, da sua própria impotência perante tamanha qualidade.

3. Na terceira jogada, recupero um lance da primeira mão das meias-finais da Liga dos Campeões, frente ao Chelsea. É o lance que antecede a única jogada de perigo que o Chelsea criou ao longo dos 90 minutos. Nesse lance, o Barcelona encontra-se encurralado junto à linha, pressionado agressivamente pelo meio-campo do Chelsea, mas consegue sair da situação com uma simplicidade que não está ao alcance de todos. Dani Alves dá em Touré, que está apertado; este joga de primeira em Messi, que tem também um adversário em cima; este devolve a Touré, que se mantém vigiado de muito perto; e finalmente a bola chega a Iniesta, no meio, ficando a situação resolvida. Ao contrário de praticamente todas as outras equipas no mundo, o Barcelona resolveu uma situação aproximando jogadores, de modo a formar muitos apoios próximos. Ao contrário do que dizem os livros, o Barcelona saiu de uma situação de pressing não afastando as suas linhas, mantendo jogadores bem perto uns dos outros de modo a conseguir trocar rapidamente a bola até haver condições ideais para a tirar dali. Ao contrário também do que fazem quase todas as equipas do mundo, o Barcelona utilizou passes curtos e trocas de bola entre jogadores que estavam marcados em cima. O penúltimo passe do lance, o passe recuado de Messi para Touré, então, é digno de referência. Touré estava marcado em cima, estorvado até, mas Messi não hesitou em colocar-lhe a bola. Porquê? Porque existe da parte de cada um dos elementos do colectivo uma confiança no poder de decisão dos colegas que não existe em mais lado nenhum; porque as condições que Touré tinha para soltar depois em Iniesta eram melhores que as condições que Messi tinha para dar de imediato em Iniesta; porque, embora menos objectivo, era mais seguro; porque, de tão arriscado, era mais imprevisível. E o Barcelona é isto: confiança nos colegas, busca das melhores condições de passe, inteligência, fuga ao excesso de objectividade, imprevisibilidade, criatividade.

8 comentários:

Ricardo disse...

Excelente, Nuno. Este espaço é único na análise e discussão futebolísticas.

Gostaria de abordar um dos temas de que falas aqui: a opção de, em frente ao GR, não rematar e procurar a melhor opção. É um tema pelo qual me bato em várias discussões com amigos mas que raramente recebe acolhimento. Para mim é óbvio que a frase feita, muito na moda entre comentadores portugueses, que se define pela imbecil teoria do "em frente à baliza é para rematar!" ou a insuportável frase "não se pode culpar um avançado por rematar à baliza", é das coisas mais aberrantes na análise ao jogo.
Um jogador em frente ao GR deve, como em qualquer outro momento, optar pela melhor solução; esta tanto pode ser o remate, a finta ou o passe para um colega em melhor posição. Isto é uma coisa básica mas que não merece grande aceitação por parte de 99 por cento dos analistas. Um jogador em frente ao GR, tendo um colega ao lado isolado, deve SEMPRE passar a bola. Isto por uma razão muito simples: se a passar, é golo; se rematar pode não ser.

Mas continuem, comentadores, com esses conceitos bacocos e que nada ajudam ao debate futebolístico.

E ainda deve haver jogadores que ouvem isto e vão para o campo rematar sempre que isolados!

Como conceito, é dos que mais me irrita.

Quanto ao Iniesta e à opção que teve, digo apenas isto: para mim é o Melhor do Mundo.

Abraço!

Batalheiro disse...

Esse golo do Iniesta á paradigmático da forma de atacar do Barcelona. Gostei da explicação dos processos defensivos também, ficaram bem ilustrados com o teu exemplo.

O esmagador dominio do Barça este ano teve a minha admiração em vários campos. Em primeiro lugar, é claro, pela forma inovadora de jogar, que tem sido muito bem explicada aqui no entre dez. Curiosamente nos meios de comunicação "tradicionais" ainda não vi nenhuma análise que chegue aos calcanhares da profundidade e rigor dos textos do entre dez...mais uma vez, muitos parabéns por isso.

Em segundo lugar, gostei de ver uma equipa construida sem recorrer a fortunas de Sheiks das Arábias ou magnatas (mafiosos?) do petroleo russo. Valdes, Iniesta, Xavi, Busquets, Messi, Puyol passaram todos pela cantera do Barça e os reforços foram contratados sem ser preciso gastar somas obscenas de dinheiro. Assistir ao triunfo desta filosofia foi para mim tão importante como o próprio estilo de jogo.

Espero que o Barcelona não altere a sua filosofa para fazer frente ao Real este ano...seria andar para trás.

Batalheiro disse...

o golo foi do Messi, e não do Iniesta...

desculpem o post duplo.

Nuno disse...

Ricardo, sim, essa ideia de que não se pode condenar um jogador por chutar à baliza é ridícula. Sempre achei que o remate deveria ser usado em circunstâncias ideais, sobretudo porque é sempre uma bola que se perde. Se a probabilidade de sucesso de um remate não for alta, é uma jogada de ataque que termina, é a posse de bola que passa para o adversário, etc. Enquanto jogador, uma das coisas que mais me criticavam era que, tendo um remate acima da média para o nível em que estava, devia rematar mais. Mas sempre me pareceu errado usar uma característica individual apenas porque era boa e sobretudo em situações em que era evidente que uma assistência traria maiores probabilidades de êxito ou um drible permitiria que ficasse com mais espaço para decidir melhor o que fazer. Como tal, sempre percebi que rematar por rematar não era, por si, uma virtude. Assim como não é virtude jogar de primeira por jogar. As coisas têm de fazer sentido. E, se em determinado lance é necessário segurar a bola em vez de jogá-la de primeira, de forma a esperar que haja melhores linhas de passe, também em outros lances o melhor é assistir, ou contemporizar, ou jogar para o lado, ou driblar, em vez de rematar. Isso deveria ser óbvio. Tive, esta época, uma discussão sobre um lance no Porto-Rio Ave, em que o Hulk tem uma jogada magnífica, passando por 3 defesas, mas em que depois borra a pintura porque remata à entrada da área, quando tinha dois colegas a quem passar. Praticamente toda a gente defendeu o Hulk, sobretudo porque a bola foi à barra, mas também porque - reza o argumento - dali, com o remate que possui, é sempre para chutar à baliza. É evidente que as possibilidades do Hulk fazer golo naquelas condições são melhores que a de maior parte dos jogadores, pois ele possui, de facto, um grande pontapé. Mas o problema não é esse. O problema é que ele, ao armar o remate, chamou a si o Miguel Lopes e o Mariano ficou isolado. Havia uma linha de passe clara, o passe não era de difícil execução e o Mariano iria receber a bola em melhores condições para marcar do que aquelas em que o Hulk se encontrava no momento em que decidiu disparar. Logo, a opção do Hulk, nesse lance, não foi a melhor, mesmo que a bola tivesse entrado.

Batalheiro, obrigado uma vez mais pelos elogios. Acho que o Barcelona não vai mudar de filosofia. Só estou a vê-los a comprarem um avançado. E se tudo correr bem serão novamente campeões.

João Castro disse...

Boas, Nuno

Este Barcelona é, de facto, uma equipa extraordinária e sem comparação na História do Futebol, diria eu. É impressionante a tranquilidade, a inteligência, a classe, a aparente facilidade com que jogam, com que humilham qualquer adversário.

Quanto às jogadas, são elucidativas da extraordinária capacidade colectiva deste Barça.

No primeiro lance, eu já tinha reparado nessa característica da forma de defender do Barça; fazem "campo curto" a defender de uma maneira invulgar, com um pressing puramente zonal e uma grande concentração de jogadores em poucos metros. Depois, são extremamente rápidos a reagir à mudança de flanco, basculando com extrema facilidade (este é um dos problemas recorrentes na definição da zona defensiva).

No segundo lance, concordo em absoluto com a tua opinião e a do Ricardo. Também nunca fui a favor dos adágios do "avançado que se preze deve ser egoísta" ou "o importante é rematar". Isso é absurdo: o avançado, ou o jogador que está em posição de remate, deve fazer aquilo que impõe na altura, quer seja rematar, fintar ou passar. Iniesta tomou a opção certa (já é habitual, diga-se) e foi golo. Se tivesse rematado, a probabilidade de acertar na baliza não seria propriamente reduzida, mas não seria tão alta como a que se registou no momento da assistência.

Sobre o terceiro lance, não é novidade que uma das grandes virtudes desta equipa é a facilidade com que saem de zonas de pressão, geralmente ao primeiro toque e, como dizes, com grande confiança na capacidade de decisão do colega. Mas o que é mais impressionante é o facto dos jogadores envolvidos não serem extraordinários na competência cognitiva; falo do Touré e do Dani Alves, por exemplo. É mais um exemplo do sucesso da Periodização Táctica e uma prova do mérito incondicional de Guardiola.

Que esta equipa se mantenha na alta-roda do futebol durante muitos anos, de preferência com Zlatan Ibrahimovic no eixo do ataque...

Só uma sugestão: sendo o Entredez um fiel defensor da inteligência futebolística, porque não uma votação respeitante ao jogador mais inteligente da Liga? Pensem nisso, acho que os resultados poderiam ser interessantes.

Saudações desportivas e continuação do excelente trabalho.

Nuno disse...

Refutador, sobre a sugestão, é uma boa ideia, mas estranhamente o blogger deixou de me permitir colocar sondagens, pelo que deixei de o fazer. Se entretanto o problema não subsistir, terei em conta essa sugestão.

Batalheiro disse...

Nuno e Gonçalo

Odeio encher assim a vossa caixa de comentários, mas como não têm nenhum email do blog para onde escrever...é que às vezes venho aqui ler o último post ou comentário e depois fico a pensar e é inevitável ficar com algumas dúvidas.

Tenho andado a ver um blog chamado "paradigma guardiola" que tem imensos videos sobre a época passada do Barça.

E tenho reparado numa coisa: O Barcelona, como já foi explicado aqui, tenta fazer "campo curto" a maior parte do tempo, com os jogadores muito próximos, sempre a oferecerem apoios e linhas de passe. No entanto, e já observei isto em vários videos, no último terço do campo, os extremos estão quase sempre abertos juntos à linha, mesmo quando a jogada se processa do lado direito o extremo esquerdo está aberto. Se calhar estou a ser induzido em erro por não estar a observar o jogo mesmo no estádio mas...

Perante defesas fechadas esta "abertura" parece afastar os defesas e criar aquele espaço todo à frente da área onde surgem as triangulações pelo meio. Observei isto muitas vezes durante o Barcelona vs Al-Ahly...

Tendo em conta que todo o jogo do Barça é pensado ao milimetro, isto parece-me mais estratégia do que situações circunstanciais do próprio jogo. Ou não? É que por outro lado, isto deveria alhear os extremos do jogo colectivo, mas não é isto que acontece, os extremos estão tão em jogo como o restantes 9 jogadores...

O que acham? Já tinham observado este detalhe? Estou completamente errado?

Mais uma vez desculpem lá vir p´raqui entupir os comentários.

Abraço

Nuno disse...

Batalheiro, não te preocupes em encher as caixas de comentários. É para isso que elas servem. :)

Sim, o blogue é óptimo. Pelos vídeos, pelas ideias, pela longevidade. E tem algumas ideias muito parecidas com as que fomos defendendo aqui ao longo da época transacta, o que me satisfaz muitíssimo.

Há, no entanto, uma ou outra coisa com as quais não concordo. Por exemplo, defendem que o Guardiola deseja centrais com boa qualidade de passe longo e capazes de sair a jogar conduzindo a bola e imaginam que Bruno Alves é um desses centrais. Evidentemente, estão equivocados. Mas há mais. Salvo erro, defendem que Guardiola pede aos seus extremos que estejam sempre abertos. Isso não é verdade. Há, é verdade, muitos momentos na construção de jogo em que os extremos abrem o mais possível, mas não só isso não acontece "sempre" como varia de acordo com quem lá jogar. Por exemplo, o Iniesta, quando jogava a extremo, só estava encostado à linha quando a jogada corria por aquele lado. De resto, vinha para o meio criar superioridade e para permitir as entradas do lateral. Eu não defendo que se deve fazer "campo curto", porque isso implicaria juntar todos os jogadores em espaços curtos. Defendo é que o Barcelona faz "campo largo" de outra maneira, sendo muitas vezes os laterais a darem largura e amplitude ao modelo e não os extremos, que vêm para dentro criar superioridade numérica e fornecer apoios próximos. O que defendo é que, para progredir em posse é necessário aglomerar um número considerável de jogadores junto à bola e não espalhá-los o melhor possível pelo campo. Depois, varia muito de jogador para jogador. O Henry só vem para o meio em diagonais para a área. Já o Messi vem para o meio horizontalmente, criar apoios entre linhas e permitindo ao Daniel Alves ficar com o corredor livre.

Resumindo, o Barcelona joga com extremos, o que faz com que, em diversas fases do jogo sejam eles a abrir. Mas isso não acontece sempre. A palavra-chave aqui é "sempre". Muitas vezes, e dependendo da posição da bola e da fase da construção ofensiva, o extremo vem para o meio para criar superioridade numérica. Ao criar mais apoios no meio, não significa que a equipa fique "curta", pois é da responsabilidade do lateral aproveitar o espaço deixado livre pelo extremo. Assim, integra-se mais um elemento no ataque, a equipa não fica estática, mantém os seus elementos bem juntos, o que facilita aquela circulação de bola curta, etc...