sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Don Andrés

Chegou ao fim, pelo menos ao mais alto nível e nos grandes palcos, a carreira do melhor futebolista espanhol de sempre. O rótulo é ousado, mas inteiramente justo. E o que talvez surpreenda mais é que pouco ou nada, durante todos estes anos, se pensou em Andrés Iniesta como o melhor jogador espanhol de todos os tempos. Estou convencido de que assim foi porque o mais importante no seu futebol não era a superação, os números, as fasquias a transpor. Não só não era um jogador obcecado com isso, como não jogava, de modo nenhum, para a posteridade. E as pessoas pensavam menos em comparações do que se deliciavam com o seu futebol. Tudo o que saía dos seus pés será lembrado no futuro, claro, mas que não se tenha pensado no quão singular a sua carreira foi enquanto ela decorria mostra que aquilo que fazia em campo dava sobretudo prazer. O seu futebol não tinha o alcance longínquo das páginas dos livros por vir; era apenas uma fonte de prazer. Quem quiser falar de Iniesta, daqui para a frente, terá sempre de mostrar como jogava. A sua arte não admite a quantificação dos números, ainda que tenha conquistado inúmeros troféus e esteja ligado a alguns dos momentos mais importantes da História do Barcelona ou da Selecção Espanhola. Iniesta foi o melhor jogador espanhol de sempre, mas aquilo que verdadeiramente importava era aquilo que fazia a cada momento, a sensação de liberdade que transmitia a todos os que o viam jogar, o perfume que aqueles movimentos inexplicavelmente subtis e impossíveis de prever exalavam, a graciosidade e a naturalidade com que se movimentava, escondendo com perfeição o esforço mesmo em situações de aperto. O futebol de Iniesta está nos antípodas da estatística e de tudo aquilo em que os cientistas das tabelas numeradas parecem querer transformar o jogo. Nada do que saía dos seus pés parecia pensado de antemão, ou obedecia a regras de bem jogar. Era tudo incrivelmente intuitivo, natural e belo: a facilidade com que rodava sobre si mesmo, contornando o adversário que lhe obstava a passagem; a capacidade de jogar com a sugestão, fazendo crer a quem tomava a iniciativa de lhe tirar a bola que a tarefa não seria difícil, conduzindo-o exactamente para onde queria para depois se livrar da pressão com leveza; a liberdade, a incrível liberdade com que jogava, como se jogar futebol àquele nível fosse a coisa mais simples do mundo e não acarretasse quaisquer responsabilidades. Em suma, Iniesta era o que o futebol devia ser!

Iniesta era essencialmente um jogador que, não sendo particularmente forte, rápido ou explosivo, se sentia confortável com a proximidade de um opositor e no meio de vários adversários. Essa capacidade de conviver com a proximidade do adversário é talvez o maior recurso num jogador de futebol moderno. Há jogadores extraordinários do ponto de vista técnico, alguns muito admirados por esse mundo fora, que nunca serão capazes de chegar ao nível dos melhores simplesmente porque não conseguem habitar espaços interiores. É muito mais fácil ser Toni Kroos, por exemplo, do que ser Andrés Iniesta. O espanhol nunca foi aquele jogador a quem compete virar flancos, abrir nas alas, jogar por fora e pautar o jogo sem se meter em alhadas. Sempre foi muito mais do que isso. Conseguia, e tinha prazer, em jogar em espaços curtos, dentro do bloco adversário, e percebia que era em espaços curtos, com muitos adversários à ilharga, e onde as opções de passe não são tão óbvias, que podia dar largas à sua criatividade. Os jogadores mais criativos são invariavelmente os que mais à vontade se sentem nessas condições, e os que as procuram para se sentirem bem consigo mesmos. Iniesta adorava conduzir em direcção a vários adversários, para os fixar, e decidir em conformidade; adorava levar a bola para a confusão das pernas adversárias, em vez de a soltar, como mandam os livros, para onde há menos gente; adorava meter-se em apertos, chamar a si os opositores, para lhes perturbar a organização e gerar espaços noutras zonas; e adorava driblar, sem recurso a nada que não a técnica, apenas pelo prazer de sentir o ganho colectivo que advém de tirar um adversário do caminho e provocar a deslocação de outro para lhe fazer as vezes. Havia, aliás, uma finta que o definia (e que define em geral os verdadeiros criativos), que consistia em criar a ilusão do desarme do adversário e, no momento em que esse adversário tomasse a iniciativa, passar a bola de um pé para o outro de modo a contorná-lo. Iniesta fazia-o amiúde, geralmente do pé direito para o pé esquerdo (os destros geralmente usam a finta deste modo porque, sendo destros, criam a ilusão do desarme quando a bola está mais próxima do pé direito), e sempre com uma subtileza notável. Não sei mesmo se alguém alguma vez o terá feito melhor e mais vezes. Essa finta definia-o, em parte, porque exemplifica o futebol de Iniesta. Não é uma finta feita em potência, não carece de velocidade ou explosão, nem é pré-fabricada. É um recurso, que só faz sentido ser utilizado na circunstância de um adversário esboçar uma tentativa de desarme, e que requer destreza técnica, competência a usar o corpo quer para proteger a bola, quer para induzir o adversário em erro, audácia e muita classe.


Agora que a sua carreira chegou ao fim, é tempo de pensar no modo como contribuiu para mudar o jogo. Individualmente, creio que é o melhor exemplo de como o futebol está diferente, para melhor. Há 20 anos, era quase impensável um médio de ataque franzino, pouco veloz e tímido impor-se ao mais alto nível. Os mais dotados, do ponto de vista técnico, tinham sempre de possuir outros atributos que os valorizassem. Zidane marcou dois golos de cabeça numa final do campeonato do mundo, por exemplo. Um jogador como Iniesta, no final dos anos 90, teria poucas possibilidades de se destacar. E, verdade seja dita, não sei se teria tido a notoriedade que acabou por ter se não tivesse tido a sorte de coexistir com Guardiola naqueles quatro anos em Barcelona. Antes disso, era uma jovem promessa do Barça, que não podia jogar no mesmo meio-campo onde já jogava Xavi Hernandez, e que teria de esperar pela sua oportunidade. Mas Guardiola não mostrou apenas que havia espaço para jogadores como Iniesta; mostrou que um jogador como Iniesta é fundamental para que uma equipa possa jogar de um determinado modo. Iniesta é uma possibilidade tornada real. Há 20 anos, ninguém acreditava que o espaço interior, de tão sobrepovoado que estava, era o espaço mais importante para atacar. Quando as equipas se fechavam no meio, todos achavam que era pelas alas que se devia entrar, que era para as faixas que os médios deviam levar o jogo. Não havia espaço, e parecia impossível penetrar pelo meio, por mais dotados que fossem os jogadores que aí se colocassem. E, portanto, achava-se que o futuro do futebol estava nos desequilibradores e nos velocistas, que nessa altura iam sendo transformados em extremos. Ronaldinho Gaúcho, por exemplo, tornou-se um jogador de ala porque era na ala que, na altura, se achava que a sua capacidade técnica podia fazer a diferença. Foi também por isso que se decretou o fim dos números 10. Volvidas duas décadas, tudo mudou. Não só não se extinguiram os números 10, como os grandes jogadores da actualidade, aqueles mais competentes do ponto de vista técnico e mais criativos, são quase todos jogadores de corredor central. Os extremos, tão em voga nessa altura, têm hoje em dia muito menos preponderância. E se a mudança que se registou de então para cá tiver um rosto, esse é o rosto de Iniesta. Num contexto propício, claro, foi ele que mostrou que é possível jogar por dentro, em espaços curtos, e que não é com velocidade, potência física ou números de circo que se supera a organização defensiva do adversário, mas com talento e inteligência. Agora que terminou a sua carreira, vale pois a pena lembrarmo-nos do quanto contribuiu para que o jogo se tornasse melhor. É talvez o melhor tributo que podemos fazer a Don Andrés.

4 comentários:

bio disse...

Qual melhor espanhol, é o melhor médio da história do futebol.

Quando entraram estas picaretas de treinador para o Barcelona, continuei a ver por causa dele, mais até do que Messi.

João disse...

https://youtu.be/TUMZ4MU9jgo

De tempos a tempos volto a este video.

Nuno disse...

bio, é capaz. Não tinha pensado nisso, mas talvez dissesse o mesmo. Seja como for, é mais discutível. Que seja o melhor jogador espanhol nem tem discussão.

João, se pudesse passava a vida a rever os jogos todos do Iniesta.

Luís1904_ disse...

Melhor médio de sempre... Ou no top 3 no mínimo...

Daqueles que nunca tratou mal a bola...Tem um lugar no Olimpo ao lado de Redondo, Pirlo, Maldini, Bergkamp, Zidane....

Um exemplo de humildade e inteligência sem igual...

https://www.youtube.com/watch?v=3yIM0BkGItc