Serve o presente texto de argumento contra a ideia de que é possível perder técnicas. Nele tentarei expor aquilo que entendo por técnica e rebater a ideia, aparentemente querida de muita gente, de que Cristiano Ronaldo, ao modificar o seu corpo, perdeu atributos técnicos. A extensão do mesmo resulta da complexidade do assunto e da dimensão filosófica pela qual decidi enveredar.
Coisas que não se esquecem
Por que razão, depois de aprendermos a andar de bicicleta, nunca mais desaprendemos? Por que é que, depois de se aprender a fazer malabarismo com três bolas, nunca mais se desaprende? Como é que conseguimos falar ao telefone e conduzir ao mesmo tempo? Por que é um canhoto consegue escrever tão bem com a mão esquerda e parece um deficiente mental com a direita? A resposta a estas perguntas tem um denominador comum: a técnica. Aprendemos uma técnica e, ao contrário do que querem crer algumas pessoas, nunca mais a voltamos a perder. Ter uma técnica ou ser capaz de uma habilidade consiste num processo de aprendizagem mental, processo esse que, uma vez concluído, fica "gravado" em nós, muito possivelmente na parte subconsciente do nosso cérebro. O acesso a essa "gravação", nestes casos, será imediato e instintivo. Executamos todas estas técnicas sem raciocinar, sem pensar se o estamos a fazer bem, mas de uma maneira natural. Isto ainda que, numa determinada altura da vida, não fôssemos capazes de fazê-lo. Noutros casos mais complexos, o acesso à "gravação" pode ser mais demorado e pode requerer, por falta de prática, uma determinada afinação.
No caso do futebol, a aquisição da técnica é um processo gradual, de constante modificação e aperfeiçoamento da relação entre indivíduo e bola, que é obviamente influenciado pelo crescimento do corpo. Durante o crescimento, a relação com os objectos tem de ser constantemente reavivada, pois o corpo, conforme vai crescendo, vai alterando a forma como reage aos estímulos. Ao contrário do que muita gente pensa, ser alto não é sinónimo de ser tosco. É verdade que o facto de ter um centro de gravidade mais baixo permite outras coisas aos jogadores, mas permite sobretudo agilidade, velocidade de reacção. É perfeitamente possível que um jogador alto seja tão dotado tecnicamente quanto um jogador baixo e há inúmeros casos de jogadores prodigiosos a nível técnico que não tinham um centro de gravidade baixo: Zidane, Riquelme, Ibrahimovic. Assim, a técnica não depende de uma certa estrutura morfológica, mas sim de um processo aquisicional. O facto de os jogadores altos, de uma maneira geral, terem menores competências técnicas não se explica pelo seu corpo, mas sim pela forma como o seu corpo cresceu. É portanto uma questão do foro da história do crescimento e da relação que se mantém, ao longo do crescimento, com o corpo. Maior parte dos jogadores grandes que são toscos terão tido, por certo, um crescimento gradual. Uma vez que o seu corpo cresceu de forma progressiva, não se estabelecia durante muito tempo de maneira a que desse tempo ao atleta para perceber exactamente como o seu corpo funcionava, o que, por fim, gerou um futebolista com competências técnicas abaixo do desejado. Por outro lado, os atletas cujo crescimento foi mais abrupto, tiveram mais tempo, em cada uma das fases de crescimento, para se relacionar com o seu corpo e para adquirir uma técnica aceitável. Por exemplo, dificilmente o crescimento de Ibrahimovic terá sido uma coisa gradual. O mais certo é ter crescido por etapas, muito de cada vez, o que lhe deu tempo para se aperceber das faculdades motoras ao seu dispor e para desenvolver uma competência técnica que, de outro modo, não poderia desenvolver.
Ter técnica é, pois, ter adquirido uma determinada competência mental. Aceder a essa competência mental, porém, não é um processo automático e depende muito da natureza da própria competência. No caso de andar de bicicleta, provavelmente porque envolve menos coisas e porque o aperfeiçoamento é menos exigente, temos poucos problemas, mesmo que o nosso corpo sofra modificações significativas. No caso do futebol, porque envolve muito mais coisas, porque implica não só a relação com o próprio corpo como a relação com uma bola e com um jogo muito específico e complexo, o acesso à técnica pode ser mais complicado. Mas detenhamo-nos, para já, em dois exemplos: bater livres e fazer truques com a bola. Estes dois exemplos são peculiares porque eliminam boa parte das variáveis que tornam o futebol um jogo cuja competência técnica depende de muita coisa. No caso dos livres, um jogador aperfeiçoa a sua técnica ao longo da carreira. Aperfeiçoar a técnica de bater livres é aperceber-se, gradualmente, das melhores condições para ter êxito nessa actividade. Ao longo do processo de aprendizagem, o jogador vai retendo as condições ideais de equilíbrio, a posição do corpo no momento de tocar na bola, o ponto específico da bola no qual deve acertar, a potência que deve dar ao remate, etc. Essa retenção nunca mais desaparece, embora o seu acesso possa não ser imediato. A interrupção da prática constante de bater livres pode tornar o acesso às condições ideais para o fazer mais complicado. Mas, nesse caso, é uma questão de retomar a prática constante, que "aviva" de certo modo a "gravação" do processo técnico. É por isso que, mesmo em idades avançadas, em idades em que já perderam grande parte das faculdades físicas, maior parte dos exímios marcadores de livres continuam exímios marcadores de livres. Lembremo-nos de André Cruz, por exemplo. Não passa pela cabeça de ninguém, certamente, que David Beckham algum dia deixe de ser periogoso a bater livres, sofra o seu corpo as alterações que sofrer (desde que essas alterações não impeçam que continue apto para praticar futebol ao mais alto nível). De igual modo, fazer truques com uma bola depende de uma aquisição técnica que não se volta a perder. Fazer a chamada "volta ao mundo" só custa antes de sabermos fazê-la. Depois de aprendermos a técnica, sai naturalmente, porque "gravamos" as condições ideais para a sua execução. Nestes dois casos específicos, a execução perfeita pode ser afectada pela ausência de prática, mas nunca existe um esquecimento do que foi adquirido mentalmente.
A aquisição de uma técnica é, por isso, segundo esta defesa, um processo irreversível. Uma vez adquirida, temo-la para sempre. O que pode mudar é o acesso a essa técnica, sendo que este pode ser influenciado pela regularidade do acto de aceder a essa técnica, ou seja, a prática dessa técnica, ou pela modificação dos estímulos que nos fazem aceder à técnica. Um atleta, ao modificar o seu corpo, modifica a relação que tem com ele. Por outras palavras, modificará a forma como capta os estímulos exteriores. Ora bem, era aqui que pretendia chegar. Um jogador, ao modificar o seu corpo, não perde faculdades técnicas. O que acontece é que põe em conflito uma determinada "gravação", ajustada para responder de determinada maneira em função de um conjunto de estímulos específico, com um corpo que, por estar diferente, é estimulado de forma diferente. O novo conjunto de estímulos, uma vez que é diferente, não conduz à mesma "gravação" e tem de haver, nesta altura, uma readaptação da "gravação" ao novo conjunto de estímulos. Essa readaptação não constitui necessariamente, todavia, uma perda da "gravação" anterior. Trata-se somente de um ajuste.
Terá Cristiano Ronaldo perdido Técnica?
Dito isto, há quem defenda, muito seriamente, que Cristiano Ronaldo, ao modificar o seu corpo, tornando-o mais potente, perdeu faculdades técnicas. Por tudo o que foi dito acima, não concordo com isto. Perdeu, certamente, alguma coisa, mas nada do que perdeu é técnica. Terá perdido agilidade, capacidade de reacção, reflexos. Nada disto é técnica. São coisas, é certo, que podem participar do acesso à técnica. Mas não são a técnica em si. Podem facilitar a sua execução, mas não são, em concreto, a técnica. Aliás, no caso de Cristiano Ronaldo, a importância destas faculdades na sua técnica era até diminuta. A sua técnica nunca foi apurada ao ponto de necessitar do máximo de agilidade ou do máximo da capacidade de reacção imediata. Nunca foi forte, por isso, em espaços curtos; o seu drible curto estava pouquíssimo trabalhado, a sua capacidade para proteger a bola em condições espaciais reduzidas nunca foi relevante, etc. Assim, a perda necessária de algumas dessas características terá até tido uma participação diminuta na readaptação dos novos estímulos corporais à técnica pré-existente.
Ronaldo não perdeu a técnica que tinha, nem sequer perdeu capacidade individual, o que é muitas vezes confundido com "técnica". E isto por uma razão simples: aquilo que perdeu não era, já antes, predicado necessário na capacidade individual que tinha. A sua capacidade individual era manifestada mais pela potência do que pela agilidade ou pela velocidade de reacção. A competência individual de Ronaldo sempre dependeu da sua potência muscular e não dos seus atributos técnicos. Há, de facto, diferenças, mas elas não têm necessariamente a ver com técnica. O Ronaldo de antes fazia meia-dúzia de truques quando encarava os adversários no um para um, mas o factor que desequilibrava era sempre a sua explosão, a velocidade com que saía do drible. E isto ele não perdeu. Pelo contrário, a sua potência muscular actual permite-lhe ser mais forte até neste pormenor. A única diferença é que agora, antes de fazer valer a sua potência muscular, já não recorre a tantos malabarismos. E não porque não seja capaz de fazê-los (ainda que, muito provavelmente, a velocidade com que os executava não possa ser a mesma), mas antes porque percebeu a pouca importância dos mesmos no desfecho do duelo individual. Aquilo que mudou em Ronaldo foi o seu comportamento perante as situações. Ao ganhar experiência, percebeu que o recurso determinante era a forma como saía do drible e não tudo o que antecedia esse momento. Por isso, passou a conceder cada vez menos espaço aos artifícios técnicos e a dar prioridade ao arranque, à explosão, à mudança de velocidade, à velocidade de ponta. Nada disto implica que tenha perdido técnica.
Tem sido usada, para reforçar a tese de que que Cristiano Ronaldo perdeu competências técnicas, a entrevista de Nuno Amieiro a Vítor Frade, publicada no blogue Falemos de Futebol. Não tenho quaisquer problemas com as concepções teóricas veiculadas nessa entrevista e concordo que a aquisição de algumas coisas implica a perda de outras. Mas não considero que isso se passe ao nível da técnica porque simplesmente considero a técnica como um atributo próprio (ainda que, na sua formação, possa ser influenciado por um conjunto de atributos) e não uma soma de atributos. Tentando ser o mais analítico possível, aqueles que defendem que a alteração de atributos como a agilidade, a força, a velocidade, a potência muscular, os reflexos e a capacidade de resposta a estímulos, só para dar alguns exemplos, alteram a competência técnica do atleta não podem crer que exista uma coisa chamada "técnica". Essas pessoas acham que a "técnica" é uma substância predicada pela soma dos seus atributos, sendo esses atributos os acima mencionados. Neste sentido, a técnica seria uma entidade abstracta e o atleta mais competente a nível técnico seria aquele que reunisse o melhor equilíbrio entre os diferentes atributos mencionados. Ao contrário desta hipótese, considero a técnica um atributo em si e não uma substância. Isto é, para mim, a técnica é um atributo como os outros, conquanto de natureza diferente. É esta diferença de natureza que é necessário investigar.
A natureza relacional da Técnica
Atributos como a agilidade, a força, a potência muscular e afins são atributos que podem ser treináveis não-especificamente. Isto é, dependem apenas do indivíduo. Por outro lado, uma técnica, qualquer que seja, depende sempre da relação entre um indivíduo e um objecto. Equilibrar pratos no nariz, andar de bicicleta ou dançar requerem técnicas que só podem ser treinadas com o objecto sobre o qual se debruçam, respectivamente pratos, bicicletas e ritmos musicais, e também sob uma determinada forma de usar esses objectos. Nesse sentido, enquanto os outros atributos são especificamente atributos corporais, uma técnica é um atributo mental cuja execução é mediada pelo corpo. Adquirir uma técnica é, por isso, diferente de adquirir agilidade ou velocidade. Fica, portanto, evidente que a natureza de uma técnica é diferente da natureza de outro tipo de atributos. Falta explicar por que razão considero que essa diferença de natureza não faz da técnica uma substância predicada por vários atributos, mas sim um atributo como tantos outros. Se a técnica fosse uma substância, isto é, uma entidade abstracta que mais não é que um conjunto de vários atributos arranjado de uma forma específica, teria de poder ser treinável de forma descontextualizada, isto é, sem a presença do objecto sobre o qual essa técnica se debruça. Mas ninguém aprende uma técnica sem prática. Para aprender a técnica de andar de bicicleta é preciso andar de bicicleta. Logo, se aprender uma técnica depende do contacto com o objecto sobre o qual essa técnica se debruça, é impossível que ela seja apenas a soma de determinados atributos que não têm uma relação específica com esse objecto. Pelo contrário, a técnica é um atributo mental que se origina pela prática, isto é, que radica unicamente na relação entre indivíduo e objecto. Todo o ser humano adulto aprendeu, em determinada altura da vida, a andar. Andar é uma técnica porque consiste unicamente na relação entre um indivíduo e uma superfície. E é nessa relação e não nos dois pólos (indivíduo e objecto) que jaz a competência técnica.
Ao contrário, portanto, de muitos outros atributos, a técnica é essencialmente um atributo mental, um atributo cuja natureza é relacional e não intrínseca. Para que tudo isto seja coerente, tenho de defender que nenhuns dos atributos mentais são perecíveis. É o que pretendo. A técnica é um atributo semelhante à memória. Quando dizemos que memorizamos algo estamos a mentir. Memorizamos, isso sim, uma impressão de algo. E uma impressão é a relação entre um indivíduo e o algo que impressiona. A natureza da memória é, pois, igualmente relacional. Será que as memórias se perdem? Não creio. Acredito que retemos toda a experiência que acumulamos, (ou grande parte dela, pelo menos) ainda que não tenhamos consciência disso e ainda que certas coisas sejam mais difíceis de relembrar do que outras. Quando achamos que algumas das nossas memórias são pouco claras, não será apenas o acesso a elas que é deficiente? Há técnicas, como a hipnose, que nos permitem aceder a lembranças a que, de outra forma, nunca conseguiríamos aceder. Será, por isso, pelo menos legítimo afirmar que o que se modifica com o tempo é o acesso à memória e não a memória em si. E o mesmo se poderia passar com uma técnica: aquilo que se altera ou danifica é o acesso à técnica e não a técnica em si. O funcionamento de uma memória é assim muito semelhante ao funcionamento de uma técnica. Se exercitarmos recorrentemente uma memória, mantemos intacta a relação entre indivíduo e objecto. Da mesma maneira se mantém intacta essa relação, se exercitarmos recorrentemente uma técnica. Indo mais longe, possuir uma técnica consiste em possuir uma memória de uma relação entre o indivíduo e o objecto sobre o qual se debruça a técnica. Possuiremos sempre essa técnica, embora seja possível que nem sempre a tenhamos afinada, pelas mais variadas razões.
Há, porém, uma diferença relevante entre memórias e técnicas. Ao contrário do que acontece com uma memória, exercitar uma técnica depende daquilo que medeia a relação entre indivíduo e objecto, ou seja, o corpo. Seria possível, portanto, defender que, sendo o corpo precisamente o instrumento pelo qual se estabelece a relação entre indivíduo e objecto, relação essa que é a própria essência da técnica, qualquer alteração nesse instrumento resultaria numa necessária alteração da técnica. Discordo. A técnica mantém-se intacta. O que se modifica são os estímulos. Pensemos no exemplo de um pintor que tem por hábito pintar ora com os dedos ora usando pincéis. Se, por questões profissionais, estiver um ano a pintar com pincéis, perderá o jeito, a habilidade, a técnica de pintar só com os dedos? É óbvio que não. Poderá a sua prática estar enferrujada, mas a técnica não a perde, seguramente. E não consistirão, porventura, pintar com pincéis e pintar com os dedos duas técnicas diferentes, podendo o pintor dominar as duas? Penso que não. E penso que não porque o objecto sobre o qual se debruça a técnica de pintar não é nem o lápis, nem o pincel, nem os dedos. A técnica de pintar consiste na relação entre pintor (indivíduo) e tela (objecto). Os dedos e os pincéis são o corpo, isto é, aquilo que medeia a relação entre pintor e tela, sendo que o pincel é uma extensão do corpo na mesma medida em que uma caneta é uma extensão do corpo na técnica de escrever. Dito isto, é evidente que pintar com os dedos produz efeitos diferentes de pintar com pincéis. Mas o que produz esses efeitos diferentes é tão-somente a execução da técnica, que tem logicamente de ser diferente, pois é mediada de forma diferente. Assim, uma mesma técnica pode ter diferentes execuções, consoante o instrumento (e as potencialidades desse instrumento) através do qual se materializa a sua execução, mas não se modifica. Isto não implica que quem domina uma técnica seja capaz de executá-la das mais variadas formas. Como já ficou dito acima, uma técnica não se aperfeiçoa descontextualizadamente, mas pela prática. E praticar é executar a técnica, dependendo a execução do instrumento que se usa.
Ora bem, um pintor que tenha passado toda a vida a pintar com os dedos terá dificuldades, no imediato, em exprimir a sua técnica através do uso de um pincel. Mas aprender a usar um pincel não é o mesmo que aprender uma técnica. É uma questão meramente instrumental e requer apenas uma ligeira habituação. É certo que as potencialidades de pintar com pincéis são diferentes das potencialidades de pintar com os dedos, mas a técnica de desenho será igual nos dois casos. O que varia é a forma como essa técnica é colocada em prática e não a técnica em si. Um jogador de futebol, ao "engrossar", modifica a relação que tem com o corpo. Perde agilidade, reflexos, rapidez de execução. Ou seja, altera o instrumento através do qual executa a técnica que possui. Mas nada disto é técnica. A perda destas coisas pode implicar uma execução deficiente da técnica que possui, já que essa técnica está programada para reagir a estímulos diferentes daqueles que agora são captados. Mas da perda dessas coisas não se segue uma perda de técnica. O que ocorre é um conflito, um desajuste entre um conjunto de estímulos desconhecido e uma técnica conhecida e preparada para um determinado conjunto de estímulos específico. Este novo conjunto de estímulos, embora desconhecido, não irá requerer uma nova aprendizagem e não irá produzir uma nova técnica. Isso seria admitir que a mais pequena transformação corporal destruiria por completo a técnica pré-existente. O que vai acontecer é que este novo conjunto de estímulos irá ter de aprender a aceder à técnica já existente. Dessa aprendizagem, dessa habituação, não resultam perdas de técnica, pese embora as potencialidades não sejam as mesmas. Tal como um pintor, ao pintar com os dedos, não tem ao seu dispor as mesmas potencialidades que tem ao pintar com pincéis, um jogador de futebol, ao "engrossar", tem potencialidades diferentes. Provavelmente, não conseguirá executar aquilo que tem em mente com tanta rapidez, pois possuirá menos flexibilidade. Mas também é provável que consiga executar aquilo que tem em mente com mais potência. Assim, não é a técnica que se perde ou se altera; o que sofre modificações é a forma como essa técnica é executada. A execução de uma técnica corresponde àquilo a que chamei "acesso" a uma técnica. Esse acesso pode ser dificultado por ausência de prática, que no fundo é tornar menos presente a relação entre indivíduo e objecto, ou por alterações no indivíduo ou no objecto, o que implica alterações na relação entre os dois. Ultrapassar esta última dificuldade implica, como tentei demonstrar, um ajuste. "Engrossar" não implica, portanto, uma perda de competência técnica, mas um ajuste dessa competência técnica, ajuste esse que só pode ser conseguido pela prática da técnica. Ajustar uma determinada competência técnica passa então por aplicar a técnica pré-existente aos novos estímulos propiciados pela nova relação entre indivíduo e objecto.
Técnica e Talento
Falta dedicar, por fim, algumas palavras em relação à diferença entre técnica e talento. Por técnica entendo, como penso ter ficado claro, a relação de um indivíduo com um objecto, relação essa que é orientada para uma determinada finalidade. Assim, o mesmo indivíduo e o mesmo objecto podem originar técnicas diferentes, mediante a finalidade a que se proponha a própria técnica: um homem pode relacionar-se de diferentes maneiras com uma caneta, consoante o fim a que se proponha, e desenvolver a técnica da escrita, a técnica do desenho, a técnica de equilibrar canetas no nariz, etc. Uma vez que a essência de qualquer técnica é precisamente o ser uma relação específica e contextualizada entre um indivíduo e um objecto, possuir uma técnica é possuir um atributo diferente de atributos como a velocidade, a agilidade, a força, etc. Estes atributos são treináveis por si, podendo ser adquiridos através de um treino analítico, descontextualizado. Como defendi, uma técnica, por ser essencialmente uma relação entre coisas, é um atributo mental, atributo esse cujo aperfeiçoamento não está, de maneira nenhuma, dependente da quantidade existente dos outros atributos. Pode ser que, por esta altura, para muita gente, a noção de talento entre em conflito com a noção de técnica. Não creio que exista problema algum. Uma técnica consiste numa relação simples entre um indivíduo e um objecto; um talento consiste numa relação complexa entre um indivíduo e um objecto e uma situação. Assim, o talento será igualmente um atributo mental, ou seja, será um atributo da mesma natureza que a técnica. Mas será um atributo mental de natureza complexa, que envolverá, mais do que a relação entre um indivíduo e um objecto, a relação entre estes dois e uma situação complexa. Assim, de uma pessoa que sabe andar de bicicleta diz-se que tem técnica para tal, mas não se diz que tem talento. Andar de bicicleta requer técnica, não talento. Andar sobre uma corda, equilibrar pratos, fazer malabarismo são técnicas, não talentos. Aliás, nenhuma arte circense requer talento. É por isso que são artes menores, quando comparadas com as grandes artes. O mesmo se aplica a um guitarrista. É perfeitamente possível que consiga desenvolver uma técnica perfeita e que consiga tocar guitarra de uma forma exemplar. Mas isso não basta para ser talentoso. Através do uso dessa técnica será capaz de imitar os grandes guitarristas, mas é possível que não consiga criar nada de verdadeiramente grandioso. Isto porque o talento para a música é muito mais do que o domínio perfeito da relação entre o indivíduo e uma guitarra.
Contribuem para o desenvolvimento de um talento não só a técnica, mas também outros atributos mentais, como a inteligência, a criatividade, o conhecimento, a intuição, etc. Há inúmeros casos de pessoas que possuem uma técnica perfeita mas que não são minimamente talentosas. Um exímio falsificador de quadros tem de ser alguém possuidor de uma técnica perfeita, mas não é, se não for capaz de produzir arte sua com relativo valor, um artista talentoso. Também no desporto há exemplos destes. Os Globetrotters são tecnicamente perfeitos e conseguem fazer coisas em basquetebol que não está ao alcance de todos. Mas terão talento para jogar basquetebol? Isto é, conseguiriam ser tão competitivos como os melhores jogadores de basquetebol? Em futebol, são incontáveis as pessoas que são capazes de fazer truques com a bola e que dominam com perfeição a relação com a bola. Mas para serem talentosos teriam de saber jogar futebol, e muitas destas pessoas não o sabem. Falcão, o mais reputado jogador de futsal do planeta, é tecnicamente perfeito, domina a relação com a bola como poucos. No entanto, o seu talento para jogar futebol de 11 é diminuto, não obstante ser um muito talentoso jogador de futsal. É possível concluir, portanto, que ao contrário da técnica, o talento não depende apenas de uma relação específica, orientada para uma determinada finalidade, entre indivíduo e objecto, mas de uma relação entre essa relação e uma situação complexa que exige uma competência diferente de uma competência técnica. Adquirir um talento depende por isso, muito mais do que do domínio da relação com um objecto, de uma determinada percepção de uma situação complexa. Nesta percepção intervem, muito mais do que quaisquer competências técnicas, todo o intelecto. É por isso que um talento é uma capacidade complexa, passível de ser adquirida apenas pela experiência da situação complexa em questão, e nunca uma predisposição inata. Na sua aquisição influem muitas coisas, nenhuma delas possível de desenvolver na ausência da situação complexa que o determina. Há, para finalizar, ainda outra diferença importante entre uma técnica e um talento. Uma técnica, sendo a relação entre um indivíduo e um objecto, é mediada por um corpo, ou seja, a sua execução depende de um corpo que a concretize. Um talento não tem esta dimensão; não se executam talentos. A execução tem um papel relevante numa técnica, mas não o tem num talento. O xadrez é tipicamente um desporto para o qual não existe uma técnica relevante, mas para o qual é necessário talento, ou seja, formas eficazes de perceber coisas. Assim, ao contrário da técnica, que é um atributo mental que se concretiza pela acção de um corpo num objecto, o talento é um atributo mental puro, desenvolvido independentemente do corpo e do objecto e em função de uma situação complexa.
Coisas que não se esquecem
Por que razão, depois de aprendermos a andar de bicicleta, nunca mais desaprendemos? Por que é que, depois de se aprender a fazer malabarismo com três bolas, nunca mais se desaprende? Como é que conseguimos falar ao telefone e conduzir ao mesmo tempo? Por que é um canhoto consegue escrever tão bem com a mão esquerda e parece um deficiente mental com a direita? A resposta a estas perguntas tem um denominador comum: a técnica. Aprendemos uma técnica e, ao contrário do que querem crer algumas pessoas, nunca mais a voltamos a perder. Ter uma técnica ou ser capaz de uma habilidade consiste num processo de aprendizagem mental, processo esse que, uma vez concluído, fica "gravado" em nós, muito possivelmente na parte subconsciente do nosso cérebro. O acesso a essa "gravação", nestes casos, será imediato e instintivo. Executamos todas estas técnicas sem raciocinar, sem pensar se o estamos a fazer bem, mas de uma maneira natural. Isto ainda que, numa determinada altura da vida, não fôssemos capazes de fazê-lo. Noutros casos mais complexos, o acesso à "gravação" pode ser mais demorado e pode requerer, por falta de prática, uma determinada afinação.
No caso do futebol, a aquisição da técnica é um processo gradual, de constante modificação e aperfeiçoamento da relação entre indivíduo e bola, que é obviamente influenciado pelo crescimento do corpo. Durante o crescimento, a relação com os objectos tem de ser constantemente reavivada, pois o corpo, conforme vai crescendo, vai alterando a forma como reage aos estímulos. Ao contrário do que muita gente pensa, ser alto não é sinónimo de ser tosco. É verdade que o facto de ter um centro de gravidade mais baixo permite outras coisas aos jogadores, mas permite sobretudo agilidade, velocidade de reacção. É perfeitamente possível que um jogador alto seja tão dotado tecnicamente quanto um jogador baixo e há inúmeros casos de jogadores prodigiosos a nível técnico que não tinham um centro de gravidade baixo: Zidane, Riquelme, Ibrahimovic. Assim, a técnica não depende de uma certa estrutura morfológica, mas sim de um processo aquisicional. O facto de os jogadores altos, de uma maneira geral, terem menores competências técnicas não se explica pelo seu corpo, mas sim pela forma como o seu corpo cresceu. É portanto uma questão do foro da história do crescimento e da relação que se mantém, ao longo do crescimento, com o corpo. Maior parte dos jogadores grandes que são toscos terão tido, por certo, um crescimento gradual. Uma vez que o seu corpo cresceu de forma progressiva, não se estabelecia durante muito tempo de maneira a que desse tempo ao atleta para perceber exactamente como o seu corpo funcionava, o que, por fim, gerou um futebolista com competências técnicas abaixo do desejado. Por outro lado, os atletas cujo crescimento foi mais abrupto, tiveram mais tempo, em cada uma das fases de crescimento, para se relacionar com o seu corpo e para adquirir uma técnica aceitável. Por exemplo, dificilmente o crescimento de Ibrahimovic terá sido uma coisa gradual. O mais certo é ter crescido por etapas, muito de cada vez, o que lhe deu tempo para se aperceber das faculdades motoras ao seu dispor e para desenvolver uma competência técnica que, de outro modo, não poderia desenvolver.
Ter técnica é, pois, ter adquirido uma determinada competência mental. Aceder a essa competência mental, porém, não é um processo automático e depende muito da natureza da própria competência. No caso de andar de bicicleta, provavelmente porque envolve menos coisas e porque o aperfeiçoamento é menos exigente, temos poucos problemas, mesmo que o nosso corpo sofra modificações significativas. No caso do futebol, porque envolve muito mais coisas, porque implica não só a relação com o próprio corpo como a relação com uma bola e com um jogo muito específico e complexo, o acesso à técnica pode ser mais complicado. Mas detenhamo-nos, para já, em dois exemplos: bater livres e fazer truques com a bola. Estes dois exemplos são peculiares porque eliminam boa parte das variáveis que tornam o futebol um jogo cuja competência técnica depende de muita coisa. No caso dos livres, um jogador aperfeiçoa a sua técnica ao longo da carreira. Aperfeiçoar a técnica de bater livres é aperceber-se, gradualmente, das melhores condições para ter êxito nessa actividade. Ao longo do processo de aprendizagem, o jogador vai retendo as condições ideais de equilíbrio, a posição do corpo no momento de tocar na bola, o ponto específico da bola no qual deve acertar, a potência que deve dar ao remate, etc. Essa retenção nunca mais desaparece, embora o seu acesso possa não ser imediato. A interrupção da prática constante de bater livres pode tornar o acesso às condições ideais para o fazer mais complicado. Mas, nesse caso, é uma questão de retomar a prática constante, que "aviva" de certo modo a "gravação" do processo técnico. É por isso que, mesmo em idades avançadas, em idades em que já perderam grande parte das faculdades físicas, maior parte dos exímios marcadores de livres continuam exímios marcadores de livres. Lembremo-nos de André Cruz, por exemplo. Não passa pela cabeça de ninguém, certamente, que David Beckham algum dia deixe de ser periogoso a bater livres, sofra o seu corpo as alterações que sofrer (desde que essas alterações não impeçam que continue apto para praticar futebol ao mais alto nível). De igual modo, fazer truques com uma bola depende de uma aquisição técnica que não se volta a perder. Fazer a chamada "volta ao mundo" só custa antes de sabermos fazê-la. Depois de aprendermos a técnica, sai naturalmente, porque "gravamos" as condições ideais para a sua execução. Nestes dois casos específicos, a execução perfeita pode ser afectada pela ausência de prática, mas nunca existe um esquecimento do que foi adquirido mentalmente.
A aquisição de uma técnica é, por isso, segundo esta defesa, um processo irreversível. Uma vez adquirida, temo-la para sempre. O que pode mudar é o acesso a essa técnica, sendo que este pode ser influenciado pela regularidade do acto de aceder a essa técnica, ou seja, a prática dessa técnica, ou pela modificação dos estímulos que nos fazem aceder à técnica. Um atleta, ao modificar o seu corpo, modifica a relação que tem com ele. Por outras palavras, modificará a forma como capta os estímulos exteriores. Ora bem, era aqui que pretendia chegar. Um jogador, ao modificar o seu corpo, não perde faculdades técnicas. O que acontece é que põe em conflito uma determinada "gravação", ajustada para responder de determinada maneira em função de um conjunto de estímulos específico, com um corpo que, por estar diferente, é estimulado de forma diferente. O novo conjunto de estímulos, uma vez que é diferente, não conduz à mesma "gravação" e tem de haver, nesta altura, uma readaptação da "gravação" ao novo conjunto de estímulos. Essa readaptação não constitui necessariamente, todavia, uma perda da "gravação" anterior. Trata-se somente de um ajuste.
Terá Cristiano Ronaldo perdido Técnica?
Dito isto, há quem defenda, muito seriamente, que Cristiano Ronaldo, ao modificar o seu corpo, tornando-o mais potente, perdeu faculdades técnicas. Por tudo o que foi dito acima, não concordo com isto. Perdeu, certamente, alguma coisa, mas nada do que perdeu é técnica. Terá perdido agilidade, capacidade de reacção, reflexos. Nada disto é técnica. São coisas, é certo, que podem participar do acesso à técnica. Mas não são a técnica em si. Podem facilitar a sua execução, mas não são, em concreto, a técnica. Aliás, no caso de Cristiano Ronaldo, a importância destas faculdades na sua técnica era até diminuta. A sua técnica nunca foi apurada ao ponto de necessitar do máximo de agilidade ou do máximo da capacidade de reacção imediata. Nunca foi forte, por isso, em espaços curtos; o seu drible curto estava pouquíssimo trabalhado, a sua capacidade para proteger a bola em condições espaciais reduzidas nunca foi relevante, etc. Assim, a perda necessária de algumas dessas características terá até tido uma participação diminuta na readaptação dos novos estímulos corporais à técnica pré-existente.
Ronaldo não perdeu a técnica que tinha, nem sequer perdeu capacidade individual, o que é muitas vezes confundido com "técnica". E isto por uma razão simples: aquilo que perdeu não era, já antes, predicado necessário na capacidade individual que tinha. A sua capacidade individual era manifestada mais pela potência do que pela agilidade ou pela velocidade de reacção. A competência individual de Ronaldo sempre dependeu da sua potência muscular e não dos seus atributos técnicos. Há, de facto, diferenças, mas elas não têm necessariamente a ver com técnica. O Ronaldo de antes fazia meia-dúzia de truques quando encarava os adversários no um para um, mas o factor que desequilibrava era sempre a sua explosão, a velocidade com que saía do drible. E isto ele não perdeu. Pelo contrário, a sua potência muscular actual permite-lhe ser mais forte até neste pormenor. A única diferença é que agora, antes de fazer valer a sua potência muscular, já não recorre a tantos malabarismos. E não porque não seja capaz de fazê-los (ainda que, muito provavelmente, a velocidade com que os executava não possa ser a mesma), mas antes porque percebeu a pouca importância dos mesmos no desfecho do duelo individual. Aquilo que mudou em Ronaldo foi o seu comportamento perante as situações. Ao ganhar experiência, percebeu que o recurso determinante era a forma como saía do drible e não tudo o que antecedia esse momento. Por isso, passou a conceder cada vez menos espaço aos artifícios técnicos e a dar prioridade ao arranque, à explosão, à mudança de velocidade, à velocidade de ponta. Nada disto implica que tenha perdido técnica.
Tem sido usada, para reforçar a tese de que que Cristiano Ronaldo perdeu competências técnicas, a entrevista de Nuno Amieiro a Vítor Frade, publicada no blogue Falemos de Futebol. Não tenho quaisquer problemas com as concepções teóricas veiculadas nessa entrevista e concordo que a aquisição de algumas coisas implica a perda de outras. Mas não considero que isso se passe ao nível da técnica porque simplesmente considero a técnica como um atributo próprio (ainda que, na sua formação, possa ser influenciado por um conjunto de atributos) e não uma soma de atributos. Tentando ser o mais analítico possível, aqueles que defendem que a alteração de atributos como a agilidade, a força, a velocidade, a potência muscular, os reflexos e a capacidade de resposta a estímulos, só para dar alguns exemplos, alteram a competência técnica do atleta não podem crer que exista uma coisa chamada "técnica". Essas pessoas acham que a "técnica" é uma substância predicada pela soma dos seus atributos, sendo esses atributos os acima mencionados. Neste sentido, a técnica seria uma entidade abstracta e o atleta mais competente a nível técnico seria aquele que reunisse o melhor equilíbrio entre os diferentes atributos mencionados. Ao contrário desta hipótese, considero a técnica um atributo em si e não uma substância. Isto é, para mim, a técnica é um atributo como os outros, conquanto de natureza diferente. É esta diferença de natureza que é necessário investigar.
A natureza relacional da Técnica
Atributos como a agilidade, a força, a potência muscular e afins são atributos que podem ser treináveis não-especificamente. Isto é, dependem apenas do indivíduo. Por outro lado, uma técnica, qualquer que seja, depende sempre da relação entre um indivíduo e um objecto. Equilibrar pratos no nariz, andar de bicicleta ou dançar requerem técnicas que só podem ser treinadas com o objecto sobre o qual se debruçam, respectivamente pratos, bicicletas e ritmos musicais, e também sob uma determinada forma de usar esses objectos. Nesse sentido, enquanto os outros atributos são especificamente atributos corporais, uma técnica é um atributo mental cuja execução é mediada pelo corpo. Adquirir uma técnica é, por isso, diferente de adquirir agilidade ou velocidade. Fica, portanto, evidente que a natureza de uma técnica é diferente da natureza de outro tipo de atributos. Falta explicar por que razão considero que essa diferença de natureza não faz da técnica uma substância predicada por vários atributos, mas sim um atributo como tantos outros. Se a técnica fosse uma substância, isto é, uma entidade abstracta que mais não é que um conjunto de vários atributos arranjado de uma forma específica, teria de poder ser treinável de forma descontextualizada, isto é, sem a presença do objecto sobre o qual essa técnica se debruça. Mas ninguém aprende uma técnica sem prática. Para aprender a técnica de andar de bicicleta é preciso andar de bicicleta. Logo, se aprender uma técnica depende do contacto com o objecto sobre o qual essa técnica se debruça, é impossível que ela seja apenas a soma de determinados atributos que não têm uma relação específica com esse objecto. Pelo contrário, a técnica é um atributo mental que se origina pela prática, isto é, que radica unicamente na relação entre indivíduo e objecto. Todo o ser humano adulto aprendeu, em determinada altura da vida, a andar. Andar é uma técnica porque consiste unicamente na relação entre um indivíduo e uma superfície. E é nessa relação e não nos dois pólos (indivíduo e objecto) que jaz a competência técnica.
Ao contrário, portanto, de muitos outros atributos, a técnica é essencialmente um atributo mental, um atributo cuja natureza é relacional e não intrínseca. Para que tudo isto seja coerente, tenho de defender que nenhuns dos atributos mentais são perecíveis. É o que pretendo. A técnica é um atributo semelhante à memória. Quando dizemos que memorizamos algo estamos a mentir. Memorizamos, isso sim, uma impressão de algo. E uma impressão é a relação entre um indivíduo e o algo que impressiona. A natureza da memória é, pois, igualmente relacional. Será que as memórias se perdem? Não creio. Acredito que retemos toda a experiência que acumulamos, (ou grande parte dela, pelo menos) ainda que não tenhamos consciência disso e ainda que certas coisas sejam mais difíceis de relembrar do que outras. Quando achamos que algumas das nossas memórias são pouco claras, não será apenas o acesso a elas que é deficiente? Há técnicas, como a hipnose, que nos permitem aceder a lembranças a que, de outra forma, nunca conseguiríamos aceder. Será, por isso, pelo menos legítimo afirmar que o que se modifica com o tempo é o acesso à memória e não a memória em si. E o mesmo se poderia passar com uma técnica: aquilo que se altera ou danifica é o acesso à técnica e não a técnica em si. O funcionamento de uma memória é assim muito semelhante ao funcionamento de uma técnica. Se exercitarmos recorrentemente uma memória, mantemos intacta a relação entre indivíduo e objecto. Da mesma maneira se mantém intacta essa relação, se exercitarmos recorrentemente uma técnica. Indo mais longe, possuir uma técnica consiste em possuir uma memória de uma relação entre o indivíduo e o objecto sobre o qual se debruça a técnica. Possuiremos sempre essa técnica, embora seja possível que nem sempre a tenhamos afinada, pelas mais variadas razões.
Há, porém, uma diferença relevante entre memórias e técnicas. Ao contrário do que acontece com uma memória, exercitar uma técnica depende daquilo que medeia a relação entre indivíduo e objecto, ou seja, o corpo. Seria possível, portanto, defender que, sendo o corpo precisamente o instrumento pelo qual se estabelece a relação entre indivíduo e objecto, relação essa que é a própria essência da técnica, qualquer alteração nesse instrumento resultaria numa necessária alteração da técnica. Discordo. A técnica mantém-se intacta. O que se modifica são os estímulos. Pensemos no exemplo de um pintor que tem por hábito pintar ora com os dedos ora usando pincéis. Se, por questões profissionais, estiver um ano a pintar com pincéis, perderá o jeito, a habilidade, a técnica de pintar só com os dedos? É óbvio que não. Poderá a sua prática estar enferrujada, mas a técnica não a perde, seguramente. E não consistirão, porventura, pintar com pincéis e pintar com os dedos duas técnicas diferentes, podendo o pintor dominar as duas? Penso que não. E penso que não porque o objecto sobre o qual se debruça a técnica de pintar não é nem o lápis, nem o pincel, nem os dedos. A técnica de pintar consiste na relação entre pintor (indivíduo) e tela (objecto). Os dedos e os pincéis são o corpo, isto é, aquilo que medeia a relação entre pintor e tela, sendo que o pincel é uma extensão do corpo na mesma medida em que uma caneta é uma extensão do corpo na técnica de escrever. Dito isto, é evidente que pintar com os dedos produz efeitos diferentes de pintar com pincéis. Mas o que produz esses efeitos diferentes é tão-somente a execução da técnica, que tem logicamente de ser diferente, pois é mediada de forma diferente. Assim, uma mesma técnica pode ter diferentes execuções, consoante o instrumento (e as potencialidades desse instrumento) através do qual se materializa a sua execução, mas não se modifica. Isto não implica que quem domina uma técnica seja capaz de executá-la das mais variadas formas. Como já ficou dito acima, uma técnica não se aperfeiçoa descontextualizadamente, mas pela prática. E praticar é executar a técnica, dependendo a execução do instrumento que se usa.
Ora bem, um pintor que tenha passado toda a vida a pintar com os dedos terá dificuldades, no imediato, em exprimir a sua técnica através do uso de um pincel. Mas aprender a usar um pincel não é o mesmo que aprender uma técnica. É uma questão meramente instrumental e requer apenas uma ligeira habituação. É certo que as potencialidades de pintar com pincéis são diferentes das potencialidades de pintar com os dedos, mas a técnica de desenho será igual nos dois casos. O que varia é a forma como essa técnica é colocada em prática e não a técnica em si. Um jogador de futebol, ao "engrossar", modifica a relação que tem com o corpo. Perde agilidade, reflexos, rapidez de execução. Ou seja, altera o instrumento através do qual executa a técnica que possui. Mas nada disto é técnica. A perda destas coisas pode implicar uma execução deficiente da técnica que possui, já que essa técnica está programada para reagir a estímulos diferentes daqueles que agora são captados. Mas da perda dessas coisas não se segue uma perda de técnica. O que ocorre é um conflito, um desajuste entre um conjunto de estímulos desconhecido e uma técnica conhecida e preparada para um determinado conjunto de estímulos específico. Este novo conjunto de estímulos, embora desconhecido, não irá requerer uma nova aprendizagem e não irá produzir uma nova técnica. Isso seria admitir que a mais pequena transformação corporal destruiria por completo a técnica pré-existente. O que vai acontecer é que este novo conjunto de estímulos irá ter de aprender a aceder à técnica já existente. Dessa aprendizagem, dessa habituação, não resultam perdas de técnica, pese embora as potencialidades não sejam as mesmas. Tal como um pintor, ao pintar com os dedos, não tem ao seu dispor as mesmas potencialidades que tem ao pintar com pincéis, um jogador de futebol, ao "engrossar", tem potencialidades diferentes. Provavelmente, não conseguirá executar aquilo que tem em mente com tanta rapidez, pois possuirá menos flexibilidade. Mas também é provável que consiga executar aquilo que tem em mente com mais potência. Assim, não é a técnica que se perde ou se altera; o que sofre modificações é a forma como essa técnica é executada. A execução de uma técnica corresponde àquilo a que chamei "acesso" a uma técnica. Esse acesso pode ser dificultado por ausência de prática, que no fundo é tornar menos presente a relação entre indivíduo e objecto, ou por alterações no indivíduo ou no objecto, o que implica alterações na relação entre os dois. Ultrapassar esta última dificuldade implica, como tentei demonstrar, um ajuste. "Engrossar" não implica, portanto, uma perda de competência técnica, mas um ajuste dessa competência técnica, ajuste esse que só pode ser conseguido pela prática da técnica. Ajustar uma determinada competência técnica passa então por aplicar a técnica pré-existente aos novos estímulos propiciados pela nova relação entre indivíduo e objecto.
Técnica e Talento
Falta dedicar, por fim, algumas palavras em relação à diferença entre técnica e talento. Por técnica entendo, como penso ter ficado claro, a relação de um indivíduo com um objecto, relação essa que é orientada para uma determinada finalidade. Assim, o mesmo indivíduo e o mesmo objecto podem originar técnicas diferentes, mediante a finalidade a que se proponha a própria técnica: um homem pode relacionar-se de diferentes maneiras com uma caneta, consoante o fim a que se proponha, e desenvolver a técnica da escrita, a técnica do desenho, a técnica de equilibrar canetas no nariz, etc. Uma vez que a essência de qualquer técnica é precisamente o ser uma relação específica e contextualizada entre um indivíduo e um objecto, possuir uma técnica é possuir um atributo diferente de atributos como a velocidade, a agilidade, a força, etc. Estes atributos são treináveis por si, podendo ser adquiridos através de um treino analítico, descontextualizado. Como defendi, uma técnica, por ser essencialmente uma relação entre coisas, é um atributo mental, atributo esse cujo aperfeiçoamento não está, de maneira nenhuma, dependente da quantidade existente dos outros atributos. Pode ser que, por esta altura, para muita gente, a noção de talento entre em conflito com a noção de técnica. Não creio que exista problema algum. Uma técnica consiste numa relação simples entre um indivíduo e um objecto; um talento consiste numa relação complexa entre um indivíduo e um objecto e uma situação. Assim, o talento será igualmente um atributo mental, ou seja, será um atributo da mesma natureza que a técnica. Mas será um atributo mental de natureza complexa, que envolverá, mais do que a relação entre um indivíduo e um objecto, a relação entre estes dois e uma situação complexa. Assim, de uma pessoa que sabe andar de bicicleta diz-se que tem técnica para tal, mas não se diz que tem talento. Andar de bicicleta requer técnica, não talento. Andar sobre uma corda, equilibrar pratos, fazer malabarismo são técnicas, não talentos. Aliás, nenhuma arte circense requer talento. É por isso que são artes menores, quando comparadas com as grandes artes. O mesmo se aplica a um guitarrista. É perfeitamente possível que consiga desenvolver uma técnica perfeita e que consiga tocar guitarra de uma forma exemplar. Mas isso não basta para ser talentoso. Através do uso dessa técnica será capaz de imitar os grandes guitarristas, mas é possível que não consiga criar nada de verdadeiramente grandioso. Isto porque o talento para a música é muito mais do que o domínio perfeito da relação entre o indivíduo e uma guitarra.
Contribuem para o desenvolvimento de um talento não só a técnica, mas também outros atributos mentais, como a inteligência, a criatividade, o conhecimento, a intuição, etc. Há inúmeros casos de pessoas que possuem uma técnica perfeita mas que não são minimamente talentosas. Um exímio falsificador de quadros tem de ser alguém possuidor de uma técnica perfeita, mas não é, se não for capaz de produzir arte sua com relativo valor, um artista talentoso. Também no desporto há exemplos destes. Os Globetrotters são tecnicamente perfeitos e conseguem fazer coisas em basquetebol que não está ao alcance de todos. Mas terão talento para jogar basquetebol? Isto é, conseguiriam ser tão competitivos como os melhores jogadores de basquetebol? Em futebol, são incontáveis as pessoas que são capazes de fazer truques com a bola e que dominam com perfeição a relação com a bola. Mas para serem talentosos teriam de saber jogar futebol, e muitas destas pessoas não o sabem. Falcão, o mais reputado jogador de futsal do planeta, é tecnicamente perfeito, domina a relação com a bola como poucos. No entanto, o seu talento para jogar futebol de 11 é diminuto, não obstante ser um muito talentoso jogador de futsal. É possível concluir, portanto, que ao contrário da técnica, o talento não depende apenas de uma relação específica, orientada para uma determinada finalidade, entre indivíduo e objecto, mas de uma relação entre essa relação e uma situação complexa que exige uma competência diferente de uma competência técnica. Adquirir um talento depende por isso, muito mais do que do domínio da relação com um objecto, de uma determinada percepção de uma situação complexa. Nesta percepção intervem, muito mais do que quaisquer competências técnicas, todo o intelecto. É por isso que um talento é uma capacidade complexa, passível de ser adquirida apenas pela experiência da situação complexa em questão, e nunca uma predisposição inata. Na sua aquisição influem muitas coisas, nenhuma delas possível de desenvolver na ausência da situação complexa que o determina. Há, para finalizar, ainda outra diferença importante entre uma técnica e um talento. Uma técnica, sendo a relação entre um indivíduo e um objecto, é mediada por um corpo, ou seja, a sua execução depende de um corpo que a concretize. Um talento não tem esta dimensão; não se executam talentos. A execução tem um papel relevante numa técnica, mas não o tem num talento. O xadrez é tipicamente um desporto para o qual não existe uma técnica relevante, mas para o qual é necessário talento, ou seja, formas eficazes de perceber coisas. Assim, ao contrário da técnica, que é um atributo mental que se concretiza pela acção de um corpo num objecto, o talento é um atributo mental puro, desenvolvido independentemente do corpo e do objecto e em função de uma situação complexa.
12 comentários:
Não creio que alguma vez tenha dito que o Ronaldo perdeu técnica. Entretanto até fui ver ao blog do filipe para ver mesmo o que tinha dito e reparei que já lá estavam 100 comentarios que não tinha visto.
Eu acho que o ronaldo perdeu muitas coias, não acho que tenha perdido técnica (concorde ou não com o teu conceito da mesma). Acho que perdeu agilidade e capacidade no 1x1. Provavelmente essa perda de capacidade no 1x1 tenha sido o reflexo de uma época inteira a jogar como o homem mais avançado no united (07/08) e não ter usado essa sua arma. Provavelmente perdeu prática. Como disse alguém no blog do felipe que ele nos treinos já não treinava as fintas, apenas os remates. É uma das hipóteses.
Mas há uma outra questão. Sendo o ronaldo um perfeccionista, e tendo ele aperfeiçoado até ao limite todos os seus atributos poruqe razão o drible foi o único que não se desenvolveu? Aliás eu creio que até regrediu. Se foi por falta de treino ou por alteração morfológica é mais complicado de responder.
Eu creio que, derivado da sua função de homem mais avançado, o programa do United levou o ronaldo a transformar-se fisicamente e posteriormente a levá-lo a aperfeiçoar uns atributos (remate por exemplo) em detrimento de outros (drible ex).
Por último concordo contigo na tua interpretação de técnica. Mas por mais que se adquira uma técnica ela tera que ser aplicada através do corpo. E as técnicas para serem aplicadas requerem atributos físicos. Alguém que saiba fazer um salto mortal num trampolim não esqueçe a técnica. Mas quado tiver 60 anos não vai ter a agilidade para por em prática essa técnica. Da mesma forma o Ronaldo fenómeno depois da lesão e da sua alteração morfológica nunca mais conseguiu praticar o mesmo futebol. Não estou a dizer que o esqueçeu, simplesmente o seu corpo não o permitia. E com o Cristiano passa-se, a nível diferente obviamente, a mesma coisa.
cumprimentos
Eu mais uma vez estou de acordo com o Pedro Fernandez.
A nivel conceptual, penso que o Nuno distinguiu bem o conceito de tecnica e quando eu num comentario falei em "perder tecnica", deixei sempre como possivel recuperar a mesma, nunca um processo irreversivel, mas tao só derivado da falta de pratica e mudanças a nivel fisico. Mas aceito entao perante a argumentaçao do Nuno que nao se possa dizer "perder tecnica", digamos antes que é uma fase em que alguns movimentos do Ronaldo estão menos fluidos e o seu jogo passa neste momento por uma aposta maior em explorar a potencia, o que aos meus olhos se revela como uma relaçao menos proxima com a bola.
O que me parece inequivoco é mesmo o decrescimo de qualidade no drible e ai nao ha como concordar com o Nuno. O Nuno fala que até é melhor a forma como Ronaldo aborda hoje o drible, sem tanto floreado, muito mais preocupado em explorar imediatamente aquilo que o torna mais forte:a potencia, o arranque.
Sem duvidar que realmente desde cedo o que sempre permitiu a Ronaldo ser um bom driblador foi esse mesmo arranque, essa aceleraçao, essa potencia, nao menosprezo a importancia do que alguns decidiram chamar de malabarismos dispensaveis.
Eles eram na verdade, a preparaçao para esse arranque que iria permitir a Ronaldo ter sucesso no drible. A sequencia de movimentos, nao so, deixava os adversarios sem saber o preciso momento em que Ronaldo arrancava(hoje é muito mais previsivel), como dava a Ronaldo um "aquecimento", tornando os movimentos mais leves para o momento de voar.
Nunca teve o jogo de cintura que lhe permitisse com uma pedalada ou simulaçao, deixar o adversario colado ao chao, ou com o corpo virado para o lado totalmente oposto do drible, mas tinham essa funçao.
Mais. Ao contrario do Nuno, hoje é que eu vejo os malabarismos sem funçao. Hoje Ronaldo ainda os faz, mas na minha opiniao, por mero narcisismo, para mostrar habilidade. Hoje, fá-los a uma velocidade menor e acaba de os fazer, sem sequer procurar realmente ultrapassar o adversario, passando a bola atras. Nao porque esta mais experiente e nao quer arriscar...isso é refutado pelas poucas vezes em que decide tentar o drible, resultando em perda de bola na grande maioria.
Eu fui jogador de futsal desde os meus 13 aos 26. Distinguia-me principalmente pelo drible. Hoje, nao direi entao que perdi a tecnica, porque ainda tenho na minha cabeça todos os movimentos, toda a sequencia, ainda sei como tocar na bola, como enganar o adversario,etc. Mas actualmente apenas dois anos depois, ao tentar driblar na pratica, os movimentos saem pesados,a velocidade de reacçao nao é igual e a bola foge dos pés, e a agilidade para certos movimentos ja se foi.
Nao tenho qualquer duvida em afirmar que os parametros fisicos influenciam na relaçao que possamos ter com a bola...embora existam certos parametros tecnicos muito menos dependentes dos fisicos que se podem prolongar quase intactos durante muitos anos, como é um bom exemplo o do nuno, de bater livres.
Tu não perdes técnica mas ficas "destreinado".
Um malabarista pode nunca perder o jeito para a coisa mas se ficar muito tempo sem practicar podes ter a certeza absoluta q a primeira vez q o fizer a coisa não irá correr tão bem como antigamente...
Eu não partilho da ideia q o Ronaldo tenha perdido técnica. Acho q ele não perdeu nada, bem pelo contrário, ganhou foi físico e capacidade de explosão, força. Atributos q antes não tinha tão trabalhados. COm estas novas caraterísticas Ronaldo não tem precisado tanto da fintinha para passar pelos adversários..e talvez por isso, esteja "destreinado" e as fintas não saiam tão bem como antigamente. Estará "perro". Mas a técnica está toda lá.
Pedro Silva diz: "Sendo o ronaldo um perfeccionista, e tendo ele aperfeiçoado até ao limite todos os seus atributos poruqe razão o drible foi o único que não se desenvolveu? Aliás eu creio que até regrediu. Se foi por falta de treino ou por alteração morfológica é mais complicado de responder."
Pedro, o que é o drible para ti? Se for a capacidade técnica, a relação com a bola, o Ronaldo não a perdeu. Se for a capacidade de passar pelos outros no um para um, está melhor, porque o Ronaldo está mais potente. Se for as macacadas, o agitar de pernas, os coices que ele dava antes de mudar de velocidade, eram coisas que não interessavam. Não me parece que ele tenha perdido nada de importante, nada que fosse relevante para driblar os outros.
"Alguém que saiba fazer um salto mortal num trampolim não esqueçe a técnica. Mas quado tiver 60 anos não vai ter a agilidade para por em prática essa técnica."
Concordo. Mas daí eu ter reforçado que o que se modifica é o que contribui para a execução da técnica e não a técnica em si. Quando muito, o Ronaldo perdeu agilidade. Mas a agilidade, no caso do Ronaldo, não servia para nada a não ser para fazer aqueles números de circo absolutamente inconsequentes.
João Eduardo diz: "A sequencia de movimentos, nao so, deixava os adversarios sem saber o preciso momento em que Ronaldo arrancava(hoje é muito mais previsivel), como dava a Ronaldo um "aquecimento", tornando os movimentos mais leves para o momento de voar."
Isto não é verdade, João. O Ronaldo mantém a imprevisibilidade, pois a imprevisibilidade consiste unicamente na mudança de velocidade. Há dribles, como a vírgula, ou como a simulação de arranque, que podem enganar o adversário. Mas o Ronaldo nunca teve este tipo de dribles. Para dar um exemplo concreto, a chamada "bicicleta" do Ronaldo e do Robinho, por exemplo, não engana ninguém. Ou melhor, só um defesa burro é que é enganado por essas coisas, pois elas não simulam nada. São artifícios, números de circo para desconcentrar. Um defesa esperto estará sempre concentrado nos movimentos corporais e não apenas no movimento inconsequente das pernas. Por exemplo, o Figo fazia isso com muito mais eficácia, pois acompanhava o movimento da perna sobre a bola com um movimento corporal que indiciava que ia fugir por esse lado. Isso é uma simulação, porque todo o corpo do jogador parece dar a entender que o jogador vai numa determinada direcção. Aquilo que o Ronaldo e o Robinho fazem sempre é passar a perna sobre a bola, numa espécie de pedalada que não simula rigorosamente nada, e depois arrancar numa determinada direcção, muitas vezes na mesma direcção para a qual a perna tinha sido lançada. Isso não é um drible. Isso é um coice. Ou seja, o Ronaldo nunca foi bom a driblar, porque driblar consiste em enganar o adversário. Foi bom, isso sim, a dar coices. Mas os coices, em futebol, são ineficazes. E ele apercebeu-se disso e agora dá menos.
Quanto ao preciso momento em que ele arranca, é tão difícil aos defesas adivinhá-lo quando o Ronaldo se põe com malabarismos como quando ele não se põe com isso. Porque o que é difícil de adivinhar é o momento em que ele vai arrancar. E esse momento é independente dos malabarismos. Agora, é evidente que os malabarismos, se fizessem com que o defesa se virasse para um determinado lado e depois ele arrancasse para o outro, seriam eficazes. Mas não é nem foi nunca esse o caso. Quanto ao "aquecimento" de que falas, não sei, mas parece-me ridículo. Não há vantagem nenhuma em conduzir a bola a dar coices. Isto é, dar coices não permite arrancar de forma mais leve. Não há qualquer relação causal nisso.
"Ao contrario do Nuno, hoje é que eu vejo os malabarismos sem funçao. Hoje Ronaldo ainda os faz, mas na minha opiniao, por mero narcisismo, para mostrar habilidade. Hoje, fá-los a uma velocidade menor e acaba de os fazer, sem sequer procurar realmente ultrapassar o adversario, passando a bola atras."
É igual ao que sempre foi, João. Ele nunca usou os malabarismos para enganar o adversário, para simular que ia por um lado para depois ir pelo outro. Usou-os sempre de forma descontextualizada, por pura diversão, sem qualquer utilidade. E ele perde tantas bolas agora quando tenta driblar como perdia antigamente. Simplesmente porque é e foi sempre pouco forte a driblar, se driblar for entendido como enganar o adversário.
"Mas actualmente apenas dois anos depois, ao tentar driblar na pratica, os movimentos saem pesados,a velocidade de reacçao nao é igual e a bola foge dos pés, e a agilidade para certos movimentos ja se foi."
Sim, a agilidade já foi. Mas a menos que tenhas sofrido modificações muito grandes, aposto que uma boa pré-época ajudaria. Mas o que interessa aqui é que o que mudou foi a agilidade, não a técnica. No caso específico do Ronaldo, ele nunca foi especialmente ágil, logo a perda de agilidade não foi grave.
Pedro diz: "Um malabarista pode nunca perder o jeito para a coisa mas se ficar muito tempo sem practicar podes ter a certeza absoluta q a primeira vez q o fizer a coisa não irá correr tão bem como antigamente..."
Pedro, depende da técnica. Há técnica para as quais não precisas praticamente de manter um treino. Se te puseres em cima de uma bicicleta, sabes como andar de bicicleta, mesmo que não andes há 20 anos. Se te derem uma caneta e te mandarem escrever, escreves facilmente. Se me derem três bolas para as mãos e me disserem para fazer malabarismo, faço-o de olhos fechados. Não preciso de treino para fazer estas coisas. Para jogar de futebol, porque envolve um conjunto de músculos maiores, uma capacidade de coordenação motora maior e uma relação especial de equilíbrio, admito que a ausência de prática se note ligeiramente. Mas é ligeiramente. Numa tarde de treino um jogador reactiva facilmente a lembrança da técnica. Isto desde que canalize todo o tempo de treino a reactivá-la. Quando se fala em falta de ritmo competitivo de alguns atletas que vieram de lesão, esquece-se que esses atletas treinam de forma descontextualizada e que passam todo o tempo do treino a melhorar índices físicos e não a ter contacto com a bola.
Li agora a segunda parte do teu post(havia lido só até à parte do cristiano ronaldo)e vejo que falaste da influencia dos factores fisicos sobre a forma como o jogador se relaciona com a bola. Suponho entao que acreditas que apos um tempo de adaptaçao às mudanças fisicas, o jogador reencontra a melhor forma de se relacionar com a bola e no final do processo nao se perde qualidade.
Esquecerei entao o termo tecnica, mas direi que embora o processo nao seja irreversivel a nivel fisico, se Ronaldo mantiver as caracteristicas fisicas de hoje, dificilmente poderá voltar a ter a mesma capacidade de drible,mesmo com todas as adaptaçoes às mudanças.
Quanto ao aquecimento de que falei é algo que eu proprio sentia quando preparava o drible e que imagino suceder igual com quem usa o mesmo tipo de movimentos. Os pequenos saltos das pedaladas, os pequenos toques na bola sem razao aparente, deixavam-me muito mais preparado para o movimento decisivo de drible, muito maior a velocidade com que o executava do que se partisse de uma conduçao de bola normal. Isto sem falar do efeito que provocam no adversario que nao so nao sabe o momento do arranque decisivo como o momento em que o pé vai realmente tocar na bola e aqui nao ha como concordar contigo. Recorda que ha grandes diferenças do driblador de 1on1, a chamada para o duelo individual que requer mais inventividade por parte do driblador, para o driblador de obstaculos, de bola colada ao pé em velocidade que se vai desviando instintivamente dos adversarios.
Quanto a tua opiniao sobre as pedaladas como Ronaldo as faz(hoje sim), nao servirem para nada, procura antigos videos e ve quantas vezes o sucesso do seu drible se deveu a elas ate de forma directa(embora eu concorde que o seu drible sempre se baseou mais no arranque e que as pedaladas na grande maioria servirem da forma indirecta que expliquei). E muitos desses defesas nao eram uns burros.
Sim Nuno nunca deixas de saber andar de bicicleta mas concerteza q se tiveres 20 anos sem andar qd o fizeres não te vais por a fazer sprints...
É só isso q quero dizer.
João Eduardo diz: "Quanto ao aquecimento de que falei é algo que eu proprio sentia quando preparava o drible e que imagino suceder igual com quem usa o mesmo tipo de movimentos. Os pequenos saltos das pedaladas, os pequenos toques na bola sem razao aparente, deixavam-me muito mais preparado para o movimento decisivo de drible, muito maior a velocidade com que o executava do que se partisse de uma conduçao de bola normal. Isto sem falar do efeito que provocam no adversario que nao so nao sabe o momento do arranque decisivo como o momento em que o pé vai realmente tocar na bola e aqui nao ha como concordar contigo."
João, esse aquecimento de que falas não te dá qualquer vantagem em relação ao duelo propriamente dito. Quando muito, pode dar a sensação (a ti somente, nunca ao adversário) de que fazes as coisas de forma mais espontânea. Isto porquê? Porque enquanto estás preocupado a fazer coisas inconsequentes, não estás a pensar no momento certo para arrancar. Ora, tu ficas com a sensação de que és mais espontâneo. Mas isso não significa que sejas mais imprevisível e muito menos que arrancas mais "leve". O teu arranque não depende da quantidade ou da qualidade de coices ou pedaladas (como lhe queiras chamar), depende sempre da tua potência muscular e só dela... Quanto ao efeito no adversário, repito, se não forem gestos que simulem uma investida, se forem apenas coices ou coisas sem qualquer relação com o corpo, o defesa fica tão preparado para o teu arranque como se não as fizesses.
Pedro diz: "Sim Nuno nunca deixas de saber andar de bicicleta mas concerteza q se tiveres 20 anos sem andar qd o fizeres não te vais por a fazer sprints..."
Pedro, a técnica de andar de bicicleta consiste em manter uma relação de equilíbrio com o objecto em causa, a bicicleta. Não estou a falar de andar mais depressa ou menos depressa. Isso depende da tua condição física, dos teus músculos, da tua agilidade, etc. Tecnicamente, andar de bicicleta é daquelas coisas que, mesmo que fiques 20 anos sem fazer, não esqueces minimamente.
Comento sem sequer ler o texto, gosto bastante do blog e das suas ideias, mas quando vejo um texto gigante destes nem sequer me atrevo a le-lo, até porque nem ia ter tempo para tal... é gigante.
Dou a sugestão de dividirem estes textos em tipo, parte 1, 2 e/ou 3, é que normalmente os blogs são bons porque se lêem opiniões rápidas e interessantes
Bad-Religion, percebo-te bem e sei que o tamanho dos textos, por vezes, pode ser contraproducente. Pensei nessa hipótese, mas para este caso achei melhor não, pois era uma discussão relativamente recente, que interessava completar no momento. Ao mesmo tempo, a própria construção do texto, com constantes chamadas a partes anteriores do texto, tornaria a divisão da leitura algo um pouco incómodo. Tomei a precaução de dividir o texto por partes, titulando-as de maneira a que os leitores pudessem ler faseadamente. Acho que é a melhor medida, para este caso. Mas fica a sugestão, obviamente.
Bem...era para pedir uma opiniao sobre o jogo d sporting twente. FAntastico a opiniao que o pessoal tem tido..
NAo sei se ja leram mas parece que o Rui Patricio nao transmite segurança e nao presta (melhor defesa da epoca, 4 ou 5 defesas fundamentais no jogo). O polga tambem nao tem qualidade (e verdade que o tonel aparece mais nas imagens depois do chutao para a frente). E o postiga devia ter tentado o golo(sim...ganhar um penalty, tirar o redes para o resto da eliminatoria nao é uma boa opçao...um penalty que provavelmente devia dar em golo..que ma opçao) e parece que quem jogou mto foi o liedson (uma jogada d matias feranndez a bola vai direita ao postiga e ele mete o pe...de calcanhar..pensava que ia marcar??) Ah..o sporting tem q jogar com extremos porque segundo parece e a unica maneira d ganhar (ganhar o que? e contratam o obikwelu para a ala e o nelson evora para o meio?para depois saltar?) E certo que o sporting cometeu erros, mas de forma geral eram erros daqueles q sao "Os melhores", e do liedson
Joel, maior parte das apreciações do jogo do Sporting pecam por fazerem uma análise individual da coisa. Ora, individualmente a equipa é a mesma, praticamente, e não há muitas ilações a tirar. O problema do Sporting é essencialmente colectivo e tem a ver sobretudo com aquilo que a equipa técnica pede aos jogadores, com a tendência para explorar os corredores laterais quando o futebol se deve jogar, isso sim, pelo meio, com o excesso de objectividade da equipa e com a má circulação de bola. Mas vem já aí um texto, não sobre o jogo em si, mas sobre os problemas recentes do Sporting e que explicam, marginalmente, a exibição frente ao Twente...
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