Antes de tudo, queria referir que este texto foi escrito há coisa de um ano, antes portanto de começar a época transacta, e que só não tinha sido ainda aqui escrito por evidentes necessidades de edição. Achando, pois, conveniente altura para o fazer, aqui ficam as ideias (ideias essas que continuo a defender) de há um ano em relação sobretudo à utilização de dois médios-defensivos, bem como em relação à importância vital dos apoios quando a equipa tem a posse de bola...
Queria deixar claro, em primeiro lugar, que o que aqui vou dizer é pensado, sobretudo, para o caso de equipas pretensamente superiores, com ambições, que assumam o jogo. Uma equipa pequena, para quem o empate pode servir, tem o direito de ter uma interpretação diferente do jogo, mas uma equipa que queira vencer todos os desafios não pode deixar de pensar como aqui o exemplificarei.
Um dos grandes pecados – na minha opinião, o maior – do futebol dos dias que correm é a pretensa necessidade de dois trincos, ou médios defensivos. Essa utilização é a principal causa, em primeiro lugar, da pobreza em que o espectáculo se tornou, proporcionando um futebol mais defensivo, o que anula, em parte um possível futebol ofensivo do adversário, mas igualmente elimina a qualidade do seu próprio futebol. Poucos são os treinadores que não utilizam, pelo menos, 2 médios defensivos. É um erro grosseiro e, não raro, sem justificação. Para aqueles que defendem que uma equipa moderna tem de precaver a retaguarda com uma abundância de jogadores de características defensivas, algumas perguntas bastam para que se perceba que essas mesmas pessoas não conseguem avançar uma razão suficientemente aceitável para essa utilização. Em primeiro lugar, porquê dois trincos? Para fechar, o mais possível, os espaços defensivos – dirão alguns. Pois, e por que não 3 centrais? Depois, por que razão dar preferência a 2 trincos e não a 2 médios ofensivos? Será, porventura, mais importante preencher espaços defensivos que espaços ofensivos? Será mais útil ser coeso defensivamente que expressivo ofensivamente? Se sim, porquê? Acaso uma equipa que saiba defender bem, mas que ataque mal, tem argumentos para virar um resultado desfavorável quando bem lhe apetecer? Não será melhor o contrário? Saber atacar bem e não dar muita importância à defesa, uma vez que é mais fácil defender para quem não está rotinado a defender do que atacar a quem não está rotinado a atacar? Ou será melhor, isso sim, um equilíbrio de forças, conseguido por uma estrutura sólida que defende e ataca como um bloco? A estas perguntas, as mesmas pessoas não serão capazes de responder com agudez.
Mas a pergunta mais fácil, e pela qual acho que todos os argumentos desses defensores ruem, é: Para que serve o trinco? Ou melhor, quais as funções de um trinco? Os mais arrojados não hesitarão, certamente, em responder o seguinte: “Recuperar bolas”. Pois, a função do trinco é recuperar, então, bolas. Exacto. E a do médio ofensivo é pôr a equipa a jogar, ainda que os seus 10 companheiros insistam em pontapear a bola sem nexo e nunca na sua direcção? E a do avançado é marcar golos, mesmo que a sua equipa não passe de meio-campo? Francamente, essas pessoas não sabem o que é o futebol. Não se pode reduzir um jogador a uma função específica, ignorando o todo. Um trinco pode ser um bom recuperador de bolas, mas essa não é, de longe, a característica prioritária que deverá possuir. Recuperar bolas, para falar no caso do trinco, é algo que a equipa, enquanto todo, deverá realizar. Não é ao trinco que compete isso. Da mesma forma, não é ao médio de ataque que compete pautar o jogo de ataque da sua equipa. Isso é algo que a equipa toda deve ser capaz de fazer, se bem que ele, pelas suas características, possa ter uma responsabilidade acrescida. Um jogador não pode ter uma função específica tão redutora. A função específica de cada um deve ser aquela que, em primeiro lugar, se relaciona imediatamente com as pretensões da equipa. Se o trinco só serve para recuperar bolas, é uma unidade a menos sempre que se ataca? Muitos dirão que sim. Que estulta percepção do jogo! O trinco é dos elementos mais importantes no processo ofensivo de uma equipa, ainda que tenha, principalmente, um papel passivo no mesmo.
O que importa aqui definir, então, é qual é a missão do trinco. Já ficou explicado que um trinco não é um recuperador de bolas, porque isso é missão do conjunto e não de um só homem. De uma forma mais vasta, a missão do trinco é igual à missão de qualquer um dos outros jogadores: ocupar os espaços que lhe estão destinados, de acordo com a posição em que foi instruído. Isto significa, de uma forma lata, que a preocupação principal de qualquer jogador é apenas a ocupação correcta do respectivo espaço. Embora pareça simples, ocupar espaços é das coisas mais complexas e modificáveis que podem existir num jogo de futebol. Ocupar um espaço não é apenas ocupá-lo: o espaço a ocupar é influenciado pela posição da bola no terreno, pela posição dos companheiros e pela posição dos adversários. E é isto tudo que um jogador tem de ter em conta. Voltemos ao caso concreto do trinco. A sua missão divide-se em sub-missões, dependendo da situação de jogo. Sem bola, com a sua equipa a defender, tem por missão ocupar um espaço à frente da linha de defesa, não para travar as entradas dos médio ofensivos adversários, como se pensa, mas para cortar linhas de passe. É tão-somente isto a sua tarefa defensiva: cortar linhas de passe. O trinco não tem que ir ao choque; não tem que tentar ser ele a roubar a bola ao adversário, deixando desguarnecido o seu lugar; não tem que marcar directamente o adversário que ali lhe aparecer. O papel do trinco é fechar, em cada instante, o maior número de linhas de passe. Daí a importância de um jogador inteligente nesta posição, pois é necessário não apenas disponibilidade física para constantes movimentações como também uma lucidez táctica extraordinária, capaz de interpretar os lances com rapidez e correcção. A nível ofensivo, como disse, o trabalho do trinco não é menos importante, ao contrário também do que se pensa. Numa equipa que jogue em ataque organizado, a posse de bola é absolutamente vital. Assim, ao trinco compete acompanhar a circulação da mesma, fazendo cobertura por trás ao possuidor da bola, facultando uma linha de passe e, ao mesmo tempo, posicionando-se no melhor local para travar um contra-ataque, no caso de a bola ser perdida. O trinco deve, pois, suportar o portador da bola, servindo ao mesmo tempo de primeiro escudo defensivo. Imaginando um meio campo com três ou com quatro unidades, só para falar de médios centro (refiro-me, por isso, a uma táctica como o 4-3-3 ou como o 4-4-2 em losango), o trinco é aquele que deverá ocupar sempre o espaço atrás do portador da bola, quer ele seja o interior direito, o interior esquerdo, ou o médio de ataque, no caso do 4-4-2 em losango. Os outros médios sem bola devem fazer os apoios laterais, criando assim o maior número de linhas de passe disponíveis para quem transporta a bola. No caso do portador da bola ser um ala, isto no 4-3-3, o apoio directo é dado, lateralmente, pelo interior desse lado e, por trás, pelo lateral, ficando o trinco encarregue de um sub-apoio, posicionando-se nas costas do interior que dá o apoio lateral. Portanto, qualquer que seja o portador da bola, o trinco tem que estar em movimento e fornecer opções de passe. Com a bola em seu poder, tem a possibilidade de decidir o destino a dar-lhe, sendo contudo recomendado que a entregue de forma simples, para que outros mais habilitados possam decidir que destino lhe dar.
Ora bem, se em termos defensivos a utilização de dois trincos pode continuar a parecer producente (não o é sobretudo porque a equipa defende mais atrás e porque, permitindo por isso o avanço de maior número de adversários, gera mais possibilidades de sobrarem bolas para a entrada da área, onde pode aparecer um remate) a nível ofensivo parece ficar explicado que é, obviamente, um erro ter dois jogadores a fazerem coberturas a apenas um, isto no caso de três médios centro. Numa equipa que privilegie a posse de bola (e qualquer equipa que assuma o jogo tem, obrigatoriamente, de a privilegiar, sob pena de ser mal sucedida), os apoios são fundamentais. Uma posse de bola bem sucedida só é possível se o portador da bola tiver opções de passe junto de si, constantemente. Logo, se os apoios são tão importantes, 2 trincos inviabilizam uma boa posse de bola, pois não permitem um fornecimento de apoios apurado. Assim, uma equipa que jogue com 2 trincos (tirando a França, porque o Zidane até sozinho poderia jogar) nunca será uma equipa de grande volume de futebol. Terá de optar por um futebol mais rectilíneo, mais directo, apostando na velocidade ou nas capacidades individuais dos seus dianteiros, ou seja, entregando a sua sorte à inspiração de dois ou três jogadores. Em última análise, uma equipa com 2 trincos nunca joga, verdadeiramente, em equipa. Os 2 trincos servem para que os médios de ataque e os avançados tenham mais liberdade, mas não são capazes de ajudá-los, quando necessário. E um treinador que opte por 2 trincos não sabe trabalhar a posse de bola, talvez imaginando que esta se possa reter graças apenas à qualidade da recepção e do passe, que insistentemente deverão treinar. O factor mais importante para a posse de bola não é de ordem técnica (não é a qualidade de passe, a velocidade de execução, etc.) mas sim a existência, regular, de linhas de passe. E essa existência não depende da disponibilidade de um jogador, mas de toda a equipa. Todos têm que estar em sintonia. Daí a posse de bola ter de ser algo a trabalhar em equipa e não individualmente.
Outra coisa que importa salientar é a questão do "pressing". Muitos treinadores que utilizam dois trincos, pedem também aos jogadores que pressionem alto. Ora, nada mais incoerente. A utilização de dois trincos visa, ainda que erradamente, preencher espaços defensivos. Isso faz-se à custa de espaços ofensivos, que passam a estar menos preenchidos. Ora, é completamente contraditório preencher espaços defensivos e pedir que se pressione alto quando os jogadores que deveriam pressionar estão amarrados a posições atrasadas. Ou seja, uma táctica com 2 trincos impossibilita a utilização de pressão à saída da área do adversário, coisa que qualquer equipa de teor ofensivo deveria ser capaz de empreender, pois a sua prioridade deve ser manter a bola, quando a tem, e recuperá-la o mais rápido possível, quando não a tem. Contudo, muitos treinadores pedem as duas coisas às suas equipas: preocupações defensivas e "pressing" alto. A minha teoria é que não sabem por que razão devem fazer nem uma nem outra coisa.
Daqui parto para alguns exemplos práticos, tentado ilustrar este ponto de vista. Há dois anos, Co Adrianse utilizou um sistema que, para muitos, era demasiado louco e estava destinado ao fracasso: um 3-3-4. Eu próprio achei descabido, sobretudo porque a defesa do Porto oferecia pouca confiança. Porém, foi campeão, dominou sempre os jogos e raramente concedeu oportunidades de golo aos adversários, acabando mesmo por se tornar a melhor defesa dos últimos 20 anos, superando mesmo as marcas de Mourinho. E porquê? Simplesmente porque a sua equipa pressionava tão alto e com tantas unidades que recuperavam a bola sempre muito à frente. Contra equipas que se defendem lá atrás, como a grande generalidade das do campeonato português, um sistema como este é, claramente, um dos mais correctos. A fraca qualidade do sector recuado nem sequer foi posta à prova. Escolhi, contudo, este exemplo também por outra razão. Num sistema como este, com apenas três defesas e com quatro avançados, a utilização de dois trincos, no caso, o Raul Meireles e o Paulo Assunção, não é descabida. Aqui, os trincos têm uma missão defensiva acrescida, que é compensar os flancos desguarnecidos. Já a nível ofensivo, devem fazer a cobertura aos três homens que se encontram à sua frente, isto é, aos alas (porque não há laterais para fazer os apoios por trás) e ao médio ofensivo. Daqui vou para outro exemplo em que, excepcionalmente, a utilização de 2 trincos não é contraproducente: um 4-2-3-1. De notar, antes de tudo, que isto nada tem a ver com um 4-5-1 ou com um 4-3-3. E muito menos com o 4-2-3-1 que se vulgarizou desde os tempos de Bobby Robson, com 2 trincos, um médio ofensivo e dois extremos, o que mais não é que um 4-5-1 mascarado. Num 4-2-3-1, os 3 médios que sucedem ao avançado são médios centro e não extremos, fazendo os dois de cada lado, contudo, trabalho exterior. A principal diferença é que, ao não existirem alas, a equipa não tem tanta profundidade, ganhando, por outro lado, criatividade e preenchimento de espaços na zona central. Exemplos da utilização desta táctica, não sendo muito comuns, podem encontrar-se no Portugal de Humberto Coelho, em que Nuno Gomes era o avançado, João Pinto, Figo e Rui Costa os três médios sem posição fixa, e Paulo Bento e Vidigal os trincos que faziam as coberturas destes três médios. Escusado será dizer que a equipa trocava extraordinariamente bem a bola. Outro exemplo foi o Porto de Mourinho, num jogo da Liga dos Campeões contra o Manchester United, em casa, em que Mourinho, sem poder contar com Costinha, fez actuar Maniche ao lado de Pedro Mendes, fazendo estes cobertura a Alenitchev, Deco e Carlos Alberto. Além do fantástico espectáculo que proporcionaram, tiveram um resultado positivo, vencendo por 2-1, o que ajudaria a passar a eliminatória... Nesta táctica, portanto, os médios ofensivos descaídos para as alas não têm a cobertura de um médio interior, como teriam os alas no 4-3-3. Logo, essa cobertura será compensada pela utilização de mais um trinco. Por alto, pode dizer-se que deve haver sempre um médio ofensivo a mais que trincos: se houver 2, haverá 1 trinco, se 3, 2 trincos. Daqui, parto para o 4-4-2 losango, com o qual terminarei. Fernando Santos, a época passada, começou por utilizá-lo, desistindo dele porque os jogadores pareciam não entender o que o técnico pretendia e voltando a ele umas jornadas mais tarde, mantendo-o até final da época. Primeiro, o 4-4-2 losango, pela ocupação complexa dos espaços, é uma táctica que demora muito tempo a interiorizar. Exemplo disso foi o Sporting de Peseiro, que demorou até começar a atinar, mas que depois, por pouco, não limpava tudo. Este sistema, no Benfica, apesar de todas as suas virtudes, pareceu sempre demasiado infecundo. E porquê? Porque os jogadores não jogavam em apoios. E não era algo que não fizessem por não saber, mas porque não o trabalhavam, certamente. Ou seja, o desenho táctico, por si só, não é nada. Apesar de esta táctica ser das mais correctas em termos de apoios, pois permite posicionamentos perfeitos para esse efeito, não funcionará nunca na perfeição se não se cultivar um futebol apoiado, em que os jogadores joguem juntos e criem constantes linhas de passe. Ao contrário do Benfica, que se apresentou sempre muito desunido, o Sporting de Paulo Bento faz isso na perfeição. A equipa é compacta a defender e joga bom futebol porque tem os apoios e as coberturas bastante bem estudadas. Especialmente nesta táctica, os apoios têm de ser bem feitos. Sem eles, uma táctica que privilegia a ocupação de espaços centrais como esta, torna-se pouco útil e só as iniciativas individuais lhe podem valer.
Resumindo, a utilização de um só trinco e o jogar apoiado estão intimamente ligados, essencialmente porque um jogo de apoios perfeito exige a utilização de apenas um homem a efectuar os apoios por trás. A utilização de mais do que um médio defensivo implica um fornecimento de apoios deficiente e dificulta a posse de bola, a opção por um futebol curto e as transições mais lentas (absolutamente necessárias numa equipa que queira comandar os ritmos de jogo, como qualquer equipa de topo). Em 90 minutos de futebol directo, com transições rápidas, como em Inglaterra, por exemplo, esta necessidade não será prioridade. Mas é-me totalmente inconcebível que uma equipa ambiciosa, que queira ganhar sempre, seja ingénua ao ponto de praticar um futebol directo durante 90 minutos, permitindo espaços desnecessários, não retendo a posse de bola em alturas cruciais do jogo, não gerindo esforços ou ritmos, e funcionando sempre com linhas rígidas, incapazes de se estenderem ou encolherem consoante as necessidades do jogo. Quero com isto dizer que, tirando o Chelsea de Mourinho e o Arsenal de Wenger, todas as outras equipas inglesas são tacticamente ingénuas, e que essa ingenuidade pode, muitas vezes, ser observável pela utilização de mais do que um trinco.
Um dos grandes pecados – na minha opinião, o maior – do futebol dos dias que correm é a pretensa necessidade de dois trincos, ou médios defensivos. Essa utilização é a principal causa, em primeiro lugar, da pobreza em que o espectáculo se tornou, proporcionando um futebol mais defensivo, o que anula, em parte um possível futebol ofensivo do adversário, mas igualmente elimina a qualidade do seu próprio futebol. Poucos são os treinadores que não utilizam, pelo menos, 2 médios defensivos. É um erro grosseiro e, não raro, sem justificação. Para aqueles que defendem que uma equipa moderna tem de precaver a retaguarda com uma abundância de jogadores de características defensivas, algumas perguntas bastam para que se perceba que essas mesmas pessoas não conseguem avançar uma razão suficientemente aceitável para essa utilização. Em primeiro lugar, porquê dois trincos? Para fechar, o mais possível, os espaços defensivos – dirão alguns. Pois, e por que não 3 centrais? Depois, por que razão dar preferência a 2 trincos e não a 2 médios ofensivos? Será, porventura, mais importante preencher espaços defensivos que espaços ofensivos? Será mais útil ser coeso defensivamente que expressivo ofensivamente? Se sim, porquê? Acaso uma equipa que saiba defender bem, mas que ataque mal, tem argumentos para virar um resultado desfavorável quando bem lhe apetecer? Não será melhor o contrário? Saber atacar bem e não dar muita importância à defesa, uma vez que é mais fácil defender para quem não está rotinado a defender do que atacar a quem não está rotinado a atacar? Ou será melhor, isso sim, um equilíbrio de forças, conseguido por uma estrutura sólida que defende e ataca como um bloco? A estas perguntas, as mesmas pessoas não serão capazes de responder com agudez.
Mas a pergunta mais fácil, e pela qual acho que todos os argumentos desses defensores ruem, é: Para que serve o trinco? Ou melhor, quais as funções de um trinco? Os mais arrojados não hesitarão, certamente, em responder o seguinte: “Recuperar bolas”. Pois, a função do trinco é recuperar, então, bolas. Exacto. E a do médio ofensivo é pôr a equipa a jogar, ainda que os seus 10 companheiros insistam em pontapear a bola sem nexo e nunca na sua direcção? E a do avançado é marcar golos, mesmo que a sua equipa não passe de meio-campo? Francamente, essas pessoas não sabem o que é o futebol. Não se pode reduzir um jogador a uma função específica, ignorando o todo. Um trinco pode ser um bom recuperador de bolas, mas essa não é, de longe, a característica prioritária que deverá possuir. Recuperar bolas, para falar no caso do trinco, é algo que a equipa, enquanto todo, deverá realizar. Não é ao trinco que compete isso. Da mesma forma, não é ao médio de ataque que compete pautar o jogo de ataque da sua equipa. Isso é algo que a equipa toda deve ser capaz de fazer, se bem que ele, pelas suas características, possa ter uma responsabilidade acrescida. Um jogador não pode ter uma função específica tão redutora. A função específica de cada um deve ser aquela que, em primeiro lugar, se relaciona imediatamente com as pretensões da equipa. Se o trinco só serve para recuperar bolas, é uma unidade a menos sempre que se ataca? Muitos dirão que sim. Que estulta percepção do jogo! O trinco é dos elementos mais importantes no processo ofensivo de uma equipa, ainda que tenha, principalmente, um papel passivo no mesmo.
O que importa aqui definir, então, é qual é a missão do trinco. Já ficou explicado que um trinco não é um recuperador de bolas, porque isso é missão do conjunto e não de um só homem. De uma forma mais vasta, a missão do trinco é igual à missão de qualquer um dos outros jogadores: ocupar os espaços que lhe estão destinados, de acordo com a posição em que foi instruído. Isto significa, de uma forma lata, que a preocupação principal de qualquer jogador é apenas a ocupação correcta do respectivo espaço. Embora pareça simples, ocupar espaços é das coisas mais complexas e modificáveis que podem existir num jogo de futebol. Ocupar um espaço não é apenas ocupá-lo: o espaço a ocupar é influenciado pela posição da bola no terreno, pela posição dos companheiros e pela posição dos adversários. E é isto tudo que um jogador tem de ter em conta. Voltemos ao caso concreto do trinco. A sua missão divide-se em sub-missões, dependendo da situação de jogo. Sem bola, com a sua equipa a defender, tem por missão ocupar um espaço à frente da linha de defesa, não para travar as entradas dos médio ofensivos adversários, como se pensa, mas para cortar linhas de passe. É tão-somente isto a sua tarefa defensiva: cortar linhas de passe. O trinco não tem que ir ao choque; não tem que tentar ser ele a roubar a bola ao adversário, deixando desguarnecido o seu lugar; não tem que marcar directamente o adversário que ali lhe aparecer. O papel do trinco é fechar, em cada instante, o maior número de linhas de passe. Daí a importância de um jogador inteligente nesta posição, pois é necessário não apenas disponibilidade física para constantes movimentações como também uma lucidez táctica extraordinária, capaz de interpretar os lances com rapidez e correcção. A nível ofensivo, como disse, o trabalho do trinco não é menos importante, ao contrário também do que se pensa. Numa equipa que jogue em ataque organizado, a posse de bola é absolutamente vital. Assim, ao trinco compete acompanhar a circulação da mesma, fazendo cobertura por trás ao possuidor da bola, facultando uma linha de passe e, ao mesmo tempo, posicionando-se no melhor local para travar um contra-ataque, no caso de a bola ser perdida. O trinco deve, pois, suportar o portador da bola, servindo ao mesmo tempo de primeiro escudo defensivo. Imaginando um meio campo com três ou com quatro unidades, só para falar de médios centro (refiro-me, por isso, a uma táctica como o 4-3-3 ou como o 4-4-2 em losango), o trinco é aquele que deverá ocupar sempre o espaço atrás do portador da bola, quer ele seja o interior direito, o interior esquerdo, ou o médio de ataque, no caso do 4-4-2 em losango. Os outros médios sem bola devem fazer os apoios laterais, criando assim o maior número de linhas de passe disponíveis para quem transporta a bola. No caso do portador da bola ser um ala, isto no 4-3-3, o apoio directo é dado, lateralmente, pelo interior desse lado e, por trás, pelo lateral, ficando o trinco encarregue de um sub-apoio, posicionando-se nas costas do interior que dá o apoio lateral. Portanto, qualquer que seja o portador da bola, o trinco tem que estar em movimento e fornecer opções de passe. Com a bola em seu poder, tem a possibilidade de decidir o destino a dar-lhe, sendo contudo recomendado que a entregue de forma simples, para que outros mais habilitados possam decidir que destino lhe dar.
Ora bem, se em termos defensivos a utilização de dois trincos pode continuar a parecer producente (não o é sobretudo porque a equipa defende mais atrás e porque, permitindo por isso o avanço de maior número de adversários, gera mais possibilidades de sobrarem bolas para a entrada da área, onde pode aparecer um remate) a nível ofensivo parece ficar explicado que é, obviamente, um erro ter dois jogadores a fazerem coberturas a apenas um, isto no caso de três médios centro. Numa equipa que privilegie a posse de bola (e qualquer equipa que assuma o jogo tem, obrigatoriamente, de a privilegiar, sob pena de ser mal sucedida), os apoios são fundamentais. Uma posse de bola bem sucedida só é possível se o portador da bola tiver opções de passe junto de si, constantemente. Logo, se os apoios são tão importantes, 2 trincos inviabilizam uma boa posse de bola, pois não permitem um fornecimento de apoios apurado. Assim, uma equipa que jogue com 2 trincos (tirando a França, porque o Zidane até sozinho poderia jogar) nunca será uma equipa de grande volume de futebol. Terá de optar por um futebol mais rectilíneo, mais directo, apostando na velocidade ou nas capacidades individuais dos seus dianteiros, ou seja, entregando a sua sorte à inspiração de dois ou três jogadores. Em última análise, uma equipa com 2 trincos nunca joga, verdadeiramente, em equipa. Os 2 trincos servem para que os médios de ataque e os avançados tenham mais liberdade, mas não são capazes de ajudá-los, quando necessário. E um treinador que opte por 2 trincos não sabe trabalhar a posse de bola, talvez imaginando que esta se possa reter graças apenas à qualidade da recepção e do passe, que insistentemente deverão treinar. O factor mais importante para a posse de bola não é de ordem técnica (não é a qualidade de passe, a velocidade de execução, etc.) mas sim a existência, regular, de linhas de passe. E essa existência não depende da disponibilidade de um jogador, mas de toda a equipa. Todos têm que estar em sintonia. Daí a posse de bola ter de ser algo a trabalhar em equipa e não individualmente.
Outra coisa que importa salientar é a questão do "pressing". Muitos treinadores que utilizam dois trincos, pedem também aos jogadores que pressionem alto. Ora, nada mais incoerente. A utilização de dois trincos visa, ainda que erradamente, preencher espaços defensivos. Isso faz-se à custa de espaços ofensivos, que passam a estar menos preenchidos. Ora, é completamente contraditório preencher espaços defensivos e pedir que se pressione alto quando os jogadores que deveriam pressionar estão amarrados a posições atrasadas. Ou seja, uma táctica com 2 trincos impossibilita a utilização de pressão à saída da área do adversário, coisa que qualquer equipa de teor ofensivo deveria ser capaz de empreender, pois a sua prioridade deve ser manter a bola, quando a tem, e recuperá-la o mais rápido possível, quando não a tem. Contudo, muitos treinadores pedem as duas coisas às suas equipas: preocupações defensivas e "pressing" alto. A minha teoria é que não sabem por que razão devem fazer nem uma nem outra coisa.
Daqui parto para alguns exemplos práticos, tentado ilustrar este ponto de vista. Há dois anos, Co Adrianse utilizou um sistema que, para muitos, era demasiado louco e estava destinado ao fracasso: um 3-3-4. Eu próprio achei descabido, sobretudo porque a defesa do Porto oferecia pouca confiança. Porém, foi campeão, dominou sempre os jogos e raramente concedeu oportunidades de golo aos adversários, acabando mesmo por se tornar a melhor defesa dos últimos 20 anos, superando mesmo as marcas de Mourinho. E porquê? Simplesmente porque a sua equipa pressionava tão alto e com tantas unidades que recuperavam a bola sempre muito à frente. Contra equipas que se defendem lá atrás, como a grande generalidade das do campeonato português, um sistema como este é, claramente, um dos mais correctos. A fraca qualidade do sector recuado nem sequer foi posta à prova. Escolhi, contudo, este exemplo também por outra razão. Num sistema como este, com apenas três defesas e com quatro avançados, a utilização de dois trincos, no caso, o Raul Meireles e o Paulo Assunção, não é descabida. Aqui, os trincos têm uma missão defensiva acrescida, que é compensar os flancos desguarnecidos. Já a nível ofensivo, devem fazer a cobertura aos três homens que se encontram à sua frente, isto é, aos alas (porque não há laterais para fazer os apoios por trás) e ao médio ofensivo. Daqui vou para outro exemplo em que, excepcionalmente, a utilização de 2 trincos não é contraproducente: um 4-2-3-1. De notar, antes de tudo, que isto nada tem a ver com um 4-5-1 ou com um 4-3-3. E muito menos com o 4-2-3-1 que se vulgarizou desde os tempos de Bobby Robson, com 2 trincos, um médio ofensivo e dois extremos, o que mais não é que um 4-5-1 mascarado. Num 4-2-3-1, os 3 médios que sucedem ao avançado são médios centro e não extremos, fazendo os dois de cada lado, contudo, trabalho exterior. A principal diferença é que, ao não existirem alas, a equipa não tem tanta profundidade, ganhando, por outro lado, criatividade e preenchimento de espaços na zona central. Exemplos da utilização desta táctica, não sendo muito comuns, podem encontrar-se no Portugal de Humberto Coelho, em que Nuno Gomes era o avançado, João Pinto, Figo e Rui Costa os três médios sem posição fixa, e Paulo Bento e Vidigal os trincos que faziam as coberturas destes três médios. Escusado será dizer que a equipa trocava extraordinariamente bem a bola. Outro exemplo foi o Porto de Mourinho, num jogo da Liga dos Campeões contra o Manchester United, em casa, em que Mourinho, sem poder contar com Costinha, fez actuar Maniche ao lado de Pedro Mendes, fazendo estes cobertura a Alenitchev, Deco e Carlos Alberto. Além do fantástico espectáculo que proporcionaram, tiveram um resultado positivo, vencendo por 2-1, o que ajudaria a passar a eliminatória... Nesta táctica, portanto, os médios ofensivos descaídos para as alas não têm a cobertura de um médio interior, como teriam os alas no 4-3-3. Logo, essa cobertura será compensada pela utilização de mais um trinco. Por alto, pode dizer-se que deve haver sempre um médio ofensivo a mais que trincos: se houver 2, haverá 1 trinco, se 3, 2 trincos. Daqui, parto para o 4-4-2 losango, com o qual terminarei. Fernando Santos, a época passada, começou por utilizá-lo, desistindo dele porque os jogadores pareciam não entender o que o técnico pretendia e voltando a ele umas jornadas mais tarde, mantendo-o até final da época. Primeiro, o 4-4-2 losango, pela ocupação complexa dos espaços, é uma táctica que demora muito tempo a interiorizar. Exemplo disso foi o Sporting de Peseiro, que demorou até começar a atinar, mas que depois, por pouco, não limpava tudo. Este sistema, no Benfica, apesar de todas as suas virtudes, pareceu sempre demasiado infecundo. E porquê? Porque os jogadores não jogavam em apoios. E não era algo que não fizessem por não saber, mas porque não o trabalhavam, certamente. Ou seja, o desenho táctico, por si só, não é nada. Apesar de esta táctica ser das mais correctas em termos de apoios, pois permite posicionamentos perfeitos para esse efeito, não funcionará nunca na perfeição se não se cultivar um futebol apoiado, em que os jogadores joguem juntos e criem constantes linhas de passe. Ao contrário do Benfica, que se apresentou sempre muito desunido, o Sporting de Paulo Bento faz isso na perfeição. A equipa é compacta a defender e joga bom futebol porque tem os apoios e as coberturas bastante bem estudadas. Especialmente nesta táctica, os apoios têm de ser bem feitos. Sem eles, uma táctica que privilegia a ocupação de espaços centrais como esta, torna-se pouco útil e só as iniciativas individuais lhe podem valer.
Resumindo, a utilização de um só trinco e o jogar apoiado estão intimamente ligados, essencialmente porque um jogo de apoios perfeito exige a utilização de apenas um homem a efectuar os apoios por trás. A utilização de mais do que um médio defensivo implica um fornecimento de apoios deficiente e dificulta a posse de bola, a opção por um futebol curto e as transições mais lentas (absolutamente necessárias numa equipa que queira comandar os ritmos de jogo, como qualquer equipa de topo). Em 90 minutos de futebol directo, com transições rápidas, como em Inglaterra, por exemplo, esta necessidade não será prioridade. Mas é-me totalmente inconcebível que uma equipa ambiciosa, que queira ganhar sempre, seja ingénua ao ponto de praticar um futebol directo durante 90 minutos, permitindo espaços desnecessários, não retendo a posse de bola em alturas cruciais do jogo, não gerindo esforços ou ritmos, e funcionando sempre com linhas rígidas, incapazes de se estenderem ou encolherem consoante as necessidades do jogo. Quero com isto dizer que, tirando o Chelsea de Mourinho e o Arsenal de Wenger, todas as outras equipas inglesas são tacticamente ingénuas, e que essa ingenuidade pode, muitas vezes, ser observável pela utilização de mais do que um trinco.
3 comentários:
Vai lá dizer isso ao Artur Jorge e ao António Oliveira... LOL
Nuno, tens de recuperar isto. Um dos melhores textos alguma vez escrito sobre 'trincos'. Parabéns
Obrigado, Kant. Vou pensar nisso.
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